O assassinato no campo de gol...

By ClassicosLP

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Obra da inglesa Agatha Christie. More

I - Uma companheira de viagem
II - Um pedido de socorro
III - Na Villa Geneviève
IV - A carta com a assinatura de "Bella"
VI - A cena do crime
VII - A misteriosa Madame Daubreuil
VIII - Um encontro inesperado
IX - Monsieur Giraud descobre novas pistas
X - Gabriel Stonor
XI - Jack Renauld
XII - Poirot elucida certos pontos
XIII - A moça dos olhos ansiosos
XIV - O segundo corpo
XV - Uma fotografia
XVI - O caso Beroldy
XVII - Nossas novas investigações
XVIII - Giraud entra em ação
XIX - Eu uso minha massa cinzenta
XX - Uma declaração surpreendente
XXI - Hercule Poirot em cena
XXII - Descubro o amor
XXIII - Dificuldades no horizonte
XXIV - Salve-o!
XXV - Uma descoberta inesperada
XXVI - Recebo uma carta
XXVII - A versão de Jack Renauld
XXVIII - Fim da jornada

V - A história de Mrs. Renauld

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By ClassicosLP

Encontramos monsieur Hautet à nossa espera no hall. Subimos as escadas com Françoise à frente, mostrando o caminho. Poirot subiu fazendo um zigue-zague esquisito que me deixou confuso, até que ele cochichou, fazendo uma careta:

— Não é de se admirar que as criadas ouvissem monsieur Renauld subindo as escadas. Cada degrau range tanto que daria para acordar até um defunto!

No final da escadaria, havia uma discreta passagem para outro lado da casa.

— Este corredor faz comunicação com os aposentos das criadas — explicou Bex.

Seguimos pelo corredor principal até o último quarto do lado direito. Françoise bateu à porta.

Uma voz fraca nos mandou entrar. Passamos para uma grande e ensolarada suíte com vista para o mar, que se desenhava azul e resplandecente a uns quinhentos metros de distância.

Estendida sobre um sofá, apoiada em diversas almofadas e assistida pelo dr. Durand, encontrava-se uma mulher alta e deslumbrante em sua meia-idade e com seus cabelos que, outrora negros, agora apresentavam madeixas de um grisalho quase inteiramente prateado. Sentia-se que sua intensa vitalidade e força de personalidade seriam notadas em qualquer situação. Dava para perceber imediatamente que estávamos na presença do que os franceses chamam de une maîtresse femme.

Ela nos saudou inclinando a cabeça de um jeito distintamente cativante.

— Queiram se sentar, messieurs.

Tomamos assento nas cadeiras enquanto o delegado acomodou-se junto a uma mesa redonda.

— Esperamos, madame — falou monsieur Hautet —, que possa nos contar o que aconteceu na noite passada sem que isso lhe cause grande tormento.

— Em absoluto, monsieur. Reconheço que o tempo é valioso se quisermos prender e punir esses assassinos hediondos.

— Muito bem, madame. Creio que será menos estressante se eu fizermos perguntas e a senhora se limitar a respondê-las. A que horas a senhora foi dormir na noite passada?

— Às nove e meia, monsieur. Estava cansada.

— E seu marido?

— Cerca de uma hora depois, creio eu.

— Ele parecia estar perturbado ou chateado de alguma forma?

— Não, não mais que de costume.

— O que aconteceu depois?

— Adormecemos. Fui acordada por uma mão que pressionava minha boca. Tentei gritar, mas a mão me apertou forte, impedindo-me de gritar. Havia dois homens no quarto, ambos mascarados.

— Consegue descrevê-los, madame?

— Um deles era muito alto e tinha uma longa barba preta. O outro era baixo e encorpado. Sua barba era avermelhada. Os dois usavam chapéu enterrado na cabeça até a altura dos olhos.

— Hum! — refletiu o delegado, desconfiado. — Tem muita barba nessa história.

— O senhor quer dizer que eram falsas?

— Sim, madame. Mas continue, por favor.

— Era o mais baixo que me segurava. Ele me amordaçou e amarrou minhas mãos e meus pés com uma corda. O outro homem estava de pé, inclinado sobre meu marido. Ele tinha apanhado minha espátula de abrir cartas, que estava sobre a penteadeira, e a mantinha com a ponta bem em cima do coração de Paul. Quando o mais baixo terminou de me conter, uniu-se ao outro e obrigaram meu marido a se levantar e a acompanhá-los até o quarto de vestir, aqui ao lado. Em meio àquele horror, quase desmaiei, mas, apesar de tudo, procurei prestar atenção a tudo o que diziam.

"Embora falassem baixo demais, reconheci um sotaque peculiar de espanhol tal como é falado em algumas partes da América do Sul. Pareciam exigir algo de meu marido. De repente, foram ficando zangados e o tom de suas vozes se elevou um pouco. Acho que nesse instante era o mais alto que falava. 'Sabe o que queremos?', ele perguntou. 'O segredo! Onde está?' Não sei o que meu marido respondeu, mas o outro exclamou com raiva: 'Está mentindo! Sabemos que está com você. Onde estão as chaves?'.

"Então ouvi o ruído de gavetas sendo abertas. Há um cofre na parede do quarto de vestir de meu marido, onde ele mantinha sempre uma boa quantia em dinheiro vivo. Léonie me contou que levaram esse dinheiro, mas evidentemente o que eles estavam procurando não estava lá, porque ouvi o homem alto gritando, com meu marido, ordenando que se vestisse. Logo depois, parece que algum barulho na casa perturbou os homens, pois passaram para o meu quarto, empurrando Paul sem que ele houvesse terminado de se vestir."

— Pardon — interrompeu Poirot —, mas quer dizer que não existe outra saída do quarto de vestir?

— Não, monsieur, há apenas a porta de comunicação que dá para o meu quarto. Eles empurraram meu marido por essa passagem, o mais baixo, adiante, e o mais alto, atrás, ainda segurando a espátula. Paul tentou livrar-se deles e vir até mim. Seus olhos demonstravam grande desespero. Ele se virou para os bandidos e disse: 'Preciso falar com ela'. Então, aproximando-se de mim pelo lado da cama, exclamou: 'Não tenha medo, estarei de volta antes do amanhecer'. Mas, embora se esforçasse para me passar um sentimento de confiança, o terror em seus olhos era indisfarçável. Então eles o arrastaram dali, enquanto o homem alto ameaçava: 'Lembre-se: um só ruído e você é um homem morto!'.

"Depois disso — continuou mrs. Renauld —, acho que desmaiei. Apenas me lembro de Léonie já esfregando meus pulsos e dando-me conhaque para beber."

— Madame Renauld — ponderou o comissário —, mas a senhora não faz ideia do que esses assassinos estavam procurando?

— Absolutamente nenhuma ideia, monsieur.

— A senhora sabia se ele andava com medo de alguma coisa?

— Sim, ele estava diferente.

— Desde quando?

Mrs. Renauld pensou um pouco.

— Uns dez dias, talvez.

— Não mais que isso?

— Pode ser, mas só notei faz uns dez dias.

— A senhora perguntou a seu marido o que estava se passando com ele?

— Uma vez, mas ele me respondeu com evasivas. Contudo, eu estava convencida de que ele estava sofrendo de grande ansiedade. Como ele não queria falar sobre o assunto de jeito nenhum, fiz de conta que nada estava acontecendo.

— A senhora sabia que ele havia contratado os serviços de um detetive?

— Um detetive? — exclamou mrs. Renauld, demonstrando grande surpresa.

— Sim, o cavalheiro aqui presente, monsieur Hercule Poirot. — Poirot fez um gesto de reverência. — Ele chegou hoje para atender a um chamado de seu marido. — E, tirando do bolso o bilhete escrito por monsieur Renauld, entregou-o à senhora.

Ela leu o conteúdo aparentando estar muito espantada.

— Eu não fazia a menor ideia disso. É evidente que ele tinha total noção do perigo.

— Agora, madame, preciso que seja absolutamente franca comigo. Houve algum incidente no passado, na América do Sul, que possa dar alguma luz sobre este caso?

Mrs. Renauld refletiu profundamente, mas, ao final, balançou a cabeça.

— Não consigo pensar em nada. Certamente meu marido tinha muitos inimigos, pessoas de quem ele tirou proveito de uma forma ou de outra, mas não consigo me lembrar de nada especial. Não afirmo que não tenha havido nada, apenas não me dou conta de nada em particular.

O delegado cofiou a barba, bastante desanimado.

— A senhora sabe a que horas tudo se passou?

— Sim, lembro-me perfeitamente de ter ouvido o relógio batendo duas horas. — Ela fez um gesto com a cabeça indicando um grande relógio de viagem envolto num estojo de couro, que se achava bem ao centro do aparador da lareira.

Poirot levantou-se e pôs-se a examinar o relógio bem de perto até fazer um aceno mostrando satisfação.

— E aqui também vejo um relógio de pulso espatifado — observou monsieur Bex —, que os assassinos parecem ter deixado cair da penteadeira. Nem pensaram que isso poderia constituir uma prova contra eles.

Com cuidado, recolheu os fragmentos de vidro partido. De repente, seu rosto foi tomado por grande espanto.

— Mon Dieu! — exclamou.

— O que foi?

— Os ponteiros estão marcando sete horas!

— O quê? — gritou o delegado, estupefato.

Porém Poirot, perspicaz como sempre, tomou o objeto das mãos do espantado comissário e o levou até bem perto de seu ouvido. Em seguida, sorriu.

— O vidro está quebrado, mas o relógio está funcionando.

A explicação do mistério foi saudada com sorrisos de alívio. Todavia, o delegado trouxe à tona outra questão.

— Ocorre que agora não são sete horas.

— Não — concordou Poirot, calmamente. — Passam alguns minutos das cinco. Possivelmente este relógio adianta, não é, madame?

Mrs. Renauld aparentava perplexidade.

— Adianta, é verdade — admitiu. — Contudo, nunca vi adiantar tanto assim.

Com um gesto de impaciência, o delegado deixou de lado a questão do relógio e prosseguiu com seu interrogatório.

— Madame, a porta principal da casa foi encontrada totalmente escancarada. Certamente foi por ela que os assassinos entraram, mas não há evidências de que tenha sido arrombada. A senhora sugere alguma explicação para isso?

— Possivelmente meu marido saiu para fazer uma caminhada e se esqueceu de trancá-la ao retornar.

— Isso seria mesmo possível de acontecer?

— Com toda a certeza. Meu marido era a pessoa mais distraída do mundo.

Demonstrou certo ar de desconforto, como se essa característica do marido fosse eventualmente motivo de constrangimento para ela.

— Há uma conclusão que, creio, já podemos tirar — observou o comissário, subitamente. — Como os homens insistiram que monsieur Renauld se vestisse, parece que o lugar para onde pretendiam levá-lo, o local onde estava "o segredo", ficava a alguma distância daqui.

O delegado concordou.

— Sim, longe, mas nem tão longe assim, pois ele afirmou que estaria de volta antes do amanhecer.

— A que horas o trem parte da estação de Merlinville? — indagou Poirot.

— Às onze e cinquenta num sentido e às doze e dezessete no outro, mas é mais provável que tivessem um carro à disposição.

— É claro — concordou Poirot, aparentando estar um pouco confuso.

— De fato, isto pode nos oferecer alguma pista de onde eles estão — continuou o delegado, já mais animado. — Um carro com dois ocupantes estrangeiros bem pode ter sido notado por alguém. É um excelente ponto a se considerar, monsieur Bex.

Sorriu para si mesmo e então, retomando o ar grave de antes, voltou-se para mrs. Renauld:

— Há ainda outra questão. A senhora conhece alguém cujo nome seja Duveen?

— Duveen? — mrs. Renauld repetiu o nome devagar. — Não, no momento não posso dizer que conheça.

— Nunca ouviu seu marido mencionando este nome?

— Nunca.

— Conhece alguém cujo primeiro nome seja Bella?

Ele ficou observando mrs. Renauld com atenção para ver se identificava em sua reação algum sinal de conhecer a pessoa ou alguma manifestação de raiva. Entretanto, ela simplesmente meneou a cabeça de modo muito natural. Ele continuou a fazer perguntas.

— A senhora sabe que seu marido recebeu uma visita ontem à noite?

Nesse momento, ele percebeu nela um leve rubor facial, mas ela respondeu com toda a compostura:

— Não. Quem era?

— Uma moça.

— É mesmo?

Porém, o delegado resolveu não estender o assunto. Parecia improvável que madame Daubreuil tivesse qualquer conexão com o crime e ele não tinha a intenção de perturbar mrs. Renauld mais que o necessário.

Fez um sinal para o comissário, que respondeu com um aceno. Então, levantando-se, atravessou o quarto e retornou com um jarro de vidro, o mesmo que tínhamos visto no galpão encostado à casa. De dentro dele, retirou o punhal.

— Madame — perguntou gentilmente —, reconhece isto?

Ela soltou um grito breve.

— Sim, é minha espátula — e, ao ver a ponta tingida de sangue, afastou-se, os olhos expressando pleno pavor. — Isto é... sangue?

— É, madame. Seu marido foi morto com esta arma.

Rapidamente, ele retirou o punhal de perto dela. — A senhora tem toda a certeza de que foi esta arma que estava sobre sua penteadeira ontem à noite?

— Oh, sim. Foi um presente do meu filho. Ele serviu na Força Aérea durante a guerra. Apresentou-se aumentando a idade para poder se alistar — declarou, com um toque de orgulho maternal na voz. — Esta espátula foi feita a partir de uma peça de avião e ela me foi dada de presente por meu filho como uma recordação da guerra.

— Compreendo, madame. Isto nos leva a outra questão. Seu filho, onde está? É necessário que lhe enviem um telegrama o quanto antes.

— Jack? Está a caminho de Buenos Aires.

— Como?

— É isso mesmo. Meu marido telegrafou para ele ontem. Ele o enviaria a Paris a negócios, mas ontem descobriu que precisava ir sem demora para a América do Sul, então pediu que Jack fosse para lá. Havia um navio partindo de Cherbourg para Buenos Aires na noite passada. O telegrama dava-lhe instruções para pegar esse navio.

— A senhora sabe informar que tipo de negócio era esse em Buenos Aires?

— Não, senhor, não sei nada a esse respeito, a não ser que Buenos Aires não é o destino final de meu filho. Ele deve seguir por terra até Santiago do Chile.

E, em uníssono, o delegado e o comissário exclamaram:

— Santiago! De novo?

Naquele instante, quando fomos todos surpreendidos pela menção a esse nome, Poirot aproximou-se de mrs. Renauld. Ele estivera todo o tempo de pé, próximo à janela, perdido em seus pensamentos, como se sonhasse, a ponto de eu ter dúvidas se ele havia prestado atenção a tudo o que foi dito naquele quarto. Ele parou ao lado do sofá em que se encontrava mrs. Renauld, fez uma pequena reverência e perguntou:

— Pardon, madame, posso examinar seus pulsos?

Embora ligeiramente surpresa pelo pedido, mrs. Renauld estendeu os braços para ele. Ao redor de cada punho, havia marcas nítidas das cordas que feriram sua pele. Enquanto ele a examinava, pareceu-me que Poirot não mais manifestava certo olhar de excitação que seu rosto exibia minutos antes.

— Isto deve estar lhe causando muita dor — falou. E, mais uma vez, pareceu confuso.

Entretanto, o delegado falava animadamente.

— Precisamos enviar um telegrama para o jovem monsieur Renauld imediatamente. É essencial para nós sabermos tudo a respeito dessa viagem para Santiago. — Ele hesitou. — Eu esperava que ele estivesse por perto, madame. Assim poderíamos poupar à senhora todo este trabalho doloroso. — E fez uma pausa.

— O senhor se refere — disse ela, em voz baixa — à identificação do corpo de meu marido?

O delegado confirmou com um gesto.

— Sou uma mulher forte, monsieur. Posso suportar tudo o que me solicitarem. Estou pronta. Pode ser agora mesmo.

— Bem, amanhã ainda estará em tempo, posso lhe assegurar...

— Prefiro acabar com isto o quanto antes — falou, sempre em voz baixa, deixando transparecer uma expressão de sofrimento em seu rosto. — Pode me dar o braço, doutor?

O médico se apressou em ampará-la. Uma capa foi posta sobre os ombros de mrs. Renauld e uma pequena procissão seguiu até o andar de baixo. Monsieur Bex foi à frente para abrir a porta do galpão. Em poucos minutos mrs. Renauld entrou no ambiente. Ela estava muito pálida, porém determinada. Acabou levando as mãos ao rosto.

— Um momento, messieurs, preciso tomar coragem.

Ela tirou as mãos da face e fitou o cadáver. Então, o notável autocontrole que parecia predominar até aquele instante desmoronou.

— Paul! — gritou. — Meu marido! Oh, Deus! — E, curvando-se para frente, caiu desmaiada.

Num instante, Poirot estava ao lado dela. Ergueu-lhe uma das pálpebras e tomou seu pulso. Depois de certificar-se de que aquilo se tratava realmente de um desmaio, pôs-se de lado e tomou-me pelo braço.

— Sou um imbecil, meu amigo! Esta mulher é a própria expressão do sofrimento e do amor pelo marido. Pude sentir isto em sua voz. Minha pequena ideia estava completamente equivocada. Eh bien! Será preciso começar tudo de novo!


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