O Morro dos Ventos Uivantes...

By KateBrasil23

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Esta é uma história de amor e obsessão. E de purgação, crueza, devastação. No centro dos acontecimentos estão... More

*Comunicado *
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34

CAPÍTULO 24

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By KateBrasil23

Ao fim de três semanas, pude enfim sair do quarto e movimentar-me pela casa. E, na primeira vez que fiquei a pé até à noitinha, pedi a Catherine que me lesse qualquer coisa porque os meus olhos ainda estavam fracos. O senhor já se tinha ido deitar e estávamos as duas na biblioteca. Acedeu ao meu pedido, embora com bastante relutância, e eu, imaginando que o meu tipo de livros não lhe agradava, disse-lhe para escolher o que mais gostasse.

Escolheu um dos seus favoritos e leu-o ininterruptamente durante quase uma hora, altura em que começou a fazer perguntas.

--Ellen, não estás cansada? Não será melhor ires deitar-te? Vais piorar, se ficares a pé até muito tarde, Ellen.

--Não, menina, não estou cansada --respondi. Vendo que eu não arredava pé, lançou mão de outro estratagema para mostrar o tédio que aquela ocupação lhe causava. Começou a bocejar e, espreguiçando-se, disse:

--Ellen, estou cansada.

--Então pare de ler e conversemos --respondi. Pior ainda: ficou inquieta e a suspirar, e não parou de olhar para o relógio até às oito horas, altura em que se retirou finalmente para o quarto cheia de sono, a julgar pela sua cara sonolenta e pelas vezes que tinha esfregado os olhos. Na noite seguinte parecia ainda mais impaciente e na terceira disse que tinha dores de cabeça e retirou-se. Achei o seu procedimento muito estranho e, depois de ter ficado sozinha alguns minutos, resolvi ir ver se ela estava melhor e dizer-lhe para se vir estender no sofá, em vez de estar lá em cima no escuro.

Não a encontrei em parte alguma e os criados também não a tinham visto. Escutei à porta de Mr. Edgar, mas o quarto estava silencioso. Voltei para o quarto dela, apaguei a vela e sentei-me à janela.

Estava uma bela noite de luar. Uma finíssima camada de flocos de neve cobria o chão, e pensei que talvez ela tivesse ido passear para o jardim para espairecer. Cheguei mesmo a detectar um vulto a mover-se lentamente do lado de dentro da cerca, mas não era ela; quando saiu da sombra, reconheci um dos moços da cavalariça.

Ele ficou durante muito tempo a vigiar a estrada, que se perdia para lá dos campos, e depois começou a correr como se tivesse avistado alguma coisa, reaparecendo em seguida com o cavalo de Miss Catherine pela arreata, e ela ao lado dele, como se tivesse acabado de desmontar.

O rapaz levou o cavalo para a cavalariça, passando por cima da relva para não fazer barulho. Cathy entrou em casa pela janela da varanda da sala de estar e subiu em bicos de pés até ao quarto, onde eu estava à espera dela.

Abriu a porta muito devagar, tirou os sapatos cobertos de neve, desapertou as fitas do chapéu, e ia começar a tirar a capa, sem saber que eu a observava quando, de repente, me levantei e apareci. A surpresa deixou-a petrificada por instantes: balbuciou uma explicação desarticulada e não se mexeu.

--Minha querida Miss Catherine --comecei eu, demasiado impressionada pela sua recente bondade para ser ríspida com ela. --Por onde é que andou a passear a uma hora destas? E por que tentou enganar-me com as suas mentiras? Onde esteve? Diga lá!

--No fundo do parque --gaguejou. --Eu não menti.

--E não foi a mais lado nenhum? --perguntei.

--Não --respondeu baixinho.

--Oh, menina! --exclamei eu, desgostosa. --Sabe bem que se tem andado a portar mal ou então não me teria mentido. Isso entristece-me. Preferia estar três meses de cama a ouvi-la mentir com essa desfaçatez.

Ela avançou para mim e, irrompendo em lágrimas, lançou-se ao meu pescoço.

--Sabes, Ellen, tenho tanto medo de que te zangues. Promete que não te zangas e conto-te toda a verdade. Detesto ter de mentir.

Sentamo-nos nos poiais da janela. Assegurei-lhe que não a repreenderia, fosse qual fosse o segredo, embora já suspeitasse de qual era. E então, ela começou:

--Tenho ido ao Alto dos Vendavais, todos os dias, desde que adoeceste, excepto três: uma antes, e duas depois, de teres saído do teu quarto. Dei ao Michael livros e estampas para me aparelhar a Minny todas as noites e para que, depois de eu voltar, a levasse de novo para a cavalariça. Não te esqueças de que também não o deves repreender. Chegava ao Alto por volta das seis e meia e geralmente ficava lá até às oito e meia e depois voltava para casa. Não era para me divertir que lá ia: a maior parte das vezes sentia-me mal comigo mesma. Só de vez em quando me sentia feliz, talvez uma vez por semana. De início, ainda pensei dar-me ao trabalho de te persuadir a deixares-me cumprir a promessa que fizera ao Linton, uma vez que me tinha comprometido a visitá-lo no dia seguinte, mas como adoeceste logo a seguir, não tive a mínima dificuldade e, enquanto o Michael reparava a fechadura do parque, apoderei-me da chave e contei-lhe como o meu primo queria que eu o visitasse, porque era doente e não podia vir à Granja e as objeções que o meu pai levantava à minha ida até lá. Foi então que negociei com ele para me arranjar o cavalo. Ele gosta de ler e está a pensar ir-se embora para casar e, por isso, ofereceu-se para fazer o que eu quisesse se eu lhe emprestasse alguns livros da nossa biblioteca. Mas eu preferi dar-lhe alguns dos meus, o que lhe agradou ainda mais.

--Na minha segunda visita, o Linton parecia muito mais animado e a Zillah, a governanta, limpou a sala, acendeu a lareira e disse-nos para estarmos à vontade, já que o Joseph tinha ido a uma reunião religiosa e o Hareton Earnshaw saíra com os cães para ir roubar faisões nas nossas moitas, como soube mais tarde.

--Ela trouxe-me ainda um pouco de vinho quente e alguns pães de gengibre e pareceu-me uma pessoa extremamente afável. O Linton sentou-se na cadeirão e eu sentei-me na cadeira de baloiço perto da pedra da lareira. O que nós rimos e conversamos! Tínhamos tanto para contar. Fizemos planos para o Verão. Não vou repetir o que planejamos, pois acharias ridículo.

--Certa vez, porém, quase nos zanga: nos. Ele teimou que a melhor maneira de passar um dia quente de Verão era numa encosta coberta de urze, no meio do brejo, a ouvir o zumbido das abelhas nas flores e o canto das cotovias lá no alto, deitado sob o céu azul :, e o sol resplandecente. Esta era a sua ideia de felicidade paradisíaca. A minha, pelo contrario, consistia em baloiçar-me nas ramadas sussurrantes de uma árvore, embalada pela brisa, com as nuvens brancas lá no alto correndo velozmente. E eu gosto não só de cotovias, mas também de tordos, melros, milheiros e cucos, chilreando à nossa volta, com os brejos em pano de fundo, recortados por vales frios e sombreados, mas orlados de grandes tufos de erva alta, ondulando ao sabor da brisa, e bosques, e cursos de água a cantarolar e o mundo inteiro acordado e rejubilante. Ele queria que tudo permanecesse num êxtase passivo, enquanto eu queria que tudo brilhasse e bailasse em jubilosa glória.

--Disse-lhe que o paraíso dele seria para mim uma semi-morte, e ele retorquiu que o meu seria um desbragamento; afirmei que o dele me poria a dormir e ele garantiu que não conseguiria respirar no meu e, a partir daí, começou a ficar muito rezingão. Por fim, concordamos em experimentar os dois paraísos assim que o tempo o permitisse e, então, beijamo-nos e ficamos amigos novamente. Depois, ficamos em silêncio durante uma hora, até que eu reparei naquela sala esplêndida, no chão polido e sem carpetes, e pensei como seria bom brincar ali se retirássemos a mesa; pedi então ao Linton que chamasse a Zillah para nos ajudar e para brincar connosco à cabra-cega. Ela teria de nos apanhar como tu costumavas fazer, lembras-te Ellen? Ele não queria, disse que não tinha graça nenhuma, mas acabou por concordar em jogar comigo à bola. Encontramos duas no armário, no meio de um monte de brinquedos velhos, peões, arcos, raquetes e penas. Uma tinha um C. e a outra um H. Eu quis ficar com a que tinha um C. porque poderia ser um C. de Catherine e o H. poderia ser de Heathcliff, o nome dele. Mas a dele estava rasgada, deitava farelo pelo H., pelo que não quis ficar com ela.

--Ganhei-lhe quase sempre: ele zangava-se, engasgava-se, tossia e voltava para a sua cadeira. Contudo, naquela noite recuperou facilmente a boa disposição. Estava encantado com duas ou três canções --as tuas canções, Ellen --e quando chegou a hora de me vir embora, pediu e implorou que eu voltasse lá no dia seguinte, o que eu prometi. A Minny e eu regressamos a casa num ápice e passei a noite a sonhar com o Alto dos Vendavais e com o meu querido e amoroso primo.

--No dia seguinte, acordei triste: em parte, porque tu estavas doente e, em parte, porque gostaria que o meu pai soubesse e aprovasse as minhas visitas; mas depois do chá estava um luar lindíssimo e, à medida que cavalgava, a tristeza dissipou-se.

--Aproxima-se mais uma noite bem passada, pensei eu, mas o que mais me reconfortava era, acima de tudo, saber que o meu primo também teria uma noite feliz.

--Subi a trote pelo jardim e, quando me preparava para contornar a casa, apareceu o tal Earnshaw, que pegou nas rédeas do cavalo e me obrigou a entrar pela porta principal. Afagou o pescoço da Minny, disse que era um excelente animal e pareceu-me que estava à espera de que eu conversasse com ele. Mas eu disse-lhe apenas que deixasse o cavalo em paz, senão ainda lhe dava um coice, ao que ele respondeu, com o seu sotaque boçal:

--Não me magoaria muito se desse», ao mesmo tempo que olhava para as pernas do cavalo.

--Eu estava tentada a experimentar; contudo, ele afastou-se para ir abrir a porta e, enquanto levantava o ferrolho, olhou para cima, para a inscrição que lá estava gravada, com uma expressão grotesca, misto de rudeza e orgulho:

--Já sei ler, Miss Catherine!.

--Ótimo! exclamei. _Mostra lá, por favor, a tua sabedoria.

--Ele então soletrou, arrastando as sílabas, o nome_Hareton Eanshaw.

--E os números?- perguntei, ao aperceber-me de que tinha chegado ao fim.

--Ainda não aprendi- respondeu.

--Sempre és muito burro!- disse eu, rindo-me do seu fracasso.

--O idiota olhou-me fixamente, por entre um esboço de sorriso e um franzir de sobrolho, como se hesitasse entre aderir ou não à minha chacota, como se estivesse indeciso, sem saber se ela provinha de uma certa sem-cerimônia ou do que realmente era: puro desprezo.

--Desfiz-lhe quaisquer dúvidas ao recuperar subitamente o meu ar compenetrado, pedindo-lhe que se fosse embora, já que eu tinha ido ao Alto para ver o Linton e não a ele.

--Corou. Sei-o porque estava uma noite de luar. Depois, tirou a mão do ferrolho e retirou-se envergonhado, verdadeira imagem da vaidade mortificada. Acho que se considerava tão instruído como o Linton só porque conseguia soletrar o seu próprio nome, e estava deliciosamente desconcertado por eu não pensar o mesmo. 

--Chega, Miss Catherine --disse eu, interrompendo-a

--Não a vou repreender, mas não gosto nada da forma como procedeu. Se se tivesse lembrado de que o Hareton é tão seu primo como Master Linton, ter-se-ia dado conta da indelicadeza com que o tratou. Pelo menos, é louvável da parte dele desejar ser tão culto como Linton e, se calhar, não aprendeu tudo isto só para se exibir; a menina já antes o devia ter feito sentir-se envergonhado da sua ignorância, disso não duvido, e ele só queria ultrapassar essa desvantagem e agradar-lhe. Zombar da sua tentativa fracassada foi uma crueldade; se a menina, por acaso, tivesse sido criada nas mesmas circunstancias, acha que teria mais educação? Ele, em criança, era tão vivo e inteligente como a menina, e custa-me vê-lo agora desprezado, só porque aquele miserável do Heathcliff o tratou tão injustamente.

--Bem, Ellen, não te vais pôr a chorar, pois não? --exclamou Catherine, surpreendida com a minha severidade.

--Mas espera e já vais ver se foi ou não para me agradar que o Hareton aprendeu o _A_B_C, e se tinha valido a pena ser civilizada com aquele bruto.

--Entrei. O Linton estava deitado no cadeirão e sentou-se para me cumprimentar.

--Hoje sinto-me muito mal, minha querida Catherine disse ele, e, por isso, a conversa fica por tua conta. Anda, senta-te aqui ao pé de mim. Tinha a certeza de que cumpririas a tua palavra e, antes de te ires embora, vou obrigar-te de novo a prometer que voltas cá amanhã.

--Eu já sabia que não devia aborrecê-lo quando estava mal disposto, e, por isso, falei baixinho, não fiz perguntas e evitei irritá-lo fosse com o que fosse. Tinha-lhe levado alguns dos meus melhores livros e o Linton pediu-me que lhe lesse um trecho de um deles; estava prestes a começar quando o Earnshaw abriu a porta de rompante e entrou por ali dentro como um furacão, depois de ter reflectido no que eu lhe dissera. Veio direito a nós, agarrou o Linton por um braço e atirou-o abaixo do cadeirão.

--«_Vai para o teu quarto!» gritou, com a voz embargada pela fúria, e o rosto transfigurado. «_E leva-a para lá quando ela te vier visitar. Não pensem que me impedem de estar aqui. Saiam daqui os dois!»

--Desatou a insultar-nos, sem dar tempo ao Linton de responder, levando-o à sua frente quase até à cozinha, ao mesmo tempo  que me ameaçava de punho cerrado ao ver-me ir atrás deles, como se me quisesse bater. Por um momento tive medo e deixei cair um livro; ele deu-lhe um pontapé e fechou-nos a porta, deixando-nos do lado de fora da sala.

--Ouvimos uma gargalhada perversa vinda da lareira e, virando-nos, vimos o odioso do Joseph, esfregando as mãos esqueléticas, a tremer de frio.

--_Eu sabia aquele os punha de lá pra fora! É um rapaz e peras! Está a portar-se à altura! Sabe tão bem como eu quem é que devia mandar aqui. Ah! Ah! Ah! Chegou-lhes a valer! Ah!Ah! Ah!

--_Para onde vamos?-perguntei ao meu primo, ignorando as zombarias daquele velho atrevido.

--O Linton estava branco e trémulo. Não estava nada bem, Ellen! Não estava mesmo: o aspecto era péssimo! A sua cara magra e os seus grandes olhos transbordavam de fúria desvairada e impotente. Agarrou a maçaneta da porta e abanou-a com toda a força, mas encontrou-a fechada por dentro.

--«_Se não me deixares entrar, mato-te! Se não me deixares entrar, mato-te!» gritou o Linton. «_Com os diabos! Vou-te matar! Vou-te matar!»

--O Joseph emitiu mais uma das suas sonoras gargalhadas.

--«_Olha, é tal qual o pai!» disse ele. «_É tal qual o pai! Temos sempre qualquer coisa de um lado e do outro. Não se preocupe, Hareton, ele não consegue apanhá-lo».

--Peguei nas mãos do Linton e tentei puxá-lo dali para fora, mas ele fez tal gritaria que achei melhor largá-lo. Por fim, os seus gritos foram abafados por um avassalador ataque de tosse que o atirou para o chão, a deitar sangue pela boca.

--Corri para o pátio, agoniada de pavor e gritei pela Zillah o mais alto que pude. Ela ouviu-me logo, pois estava a ordenhar as vacas num coberto por detrás do celeiro e, vindo a correr, perguntou-me o que se passava.

--Eu não conseguia falar e, por isso, arrastei-a para dentro de casa e fui à procura do Linton. O Earnshaw tinha vindo cá fora para ver a confusão que provocara e levava agora o pobrezinho para o andar de cima. A Zillah e eu subimos atrás deles, mas o Hareton deteve-me quando cheguei ao cimo das escadas e disse-me que eu não devia entrar, que devia era ir para casa. Respondi-lhe que ele tinha matado o Linton e que eu ia entrar.

--O Joseph fechou a porta à chave e declarou que eu não ia entrar coisíssima nenhuma e perguntou-me se eu queria ficar tão doida como o Linton.

--Pus-me a chorar e a gritar até a governanta aparecer e afirmar que ele ficaria bom num instante, mas que não conseguiria recuperar com todo aquele barulho, levando-me quase de rastos lá para baixo, para a sala.

--Sabes, Ellen, estava capaz de arrancar todos os cabelos da cabeça! Solucei e chorei tanto que os meus olhos incharam e quase não via nada, e o patife por quem sentes tanta compaixão, ali à minha frente, dando-se ao luxo de me mandar calar de vez em quando, negando que a culpa fosse dele. Finalmente, assustado com as minhas ameaças de contar tudo ao papá, que o mandaria para a prisão para ser enforcado, começou a chorar e saiu precipitadamente, para que não testemunhássemos a sua cobardia.

--Contudo, ainda não estava livre dele por completo: quando, por fim, conseguiram convencer-me a vir-me embora e eu já me encontrava a umas cem jardas da casa, o Hareton saltou de repente da sombra, susteve a Minny e agarrou-me.

--«_Miss Catherine, lamento muito» começou. «_Foi uma pena que...--Dei-lhe com o chicote, pensando talvez que ele me quisesse matar, mas ele largou-me, soltando um dos seus horríveis palavrões, e eu vim a galope para casa, desaustinada.

--Nessa noite não te dei as boas-noites e, na noite seguinte, não fui ao Alto dos Vendavais, embora bem o desejasse; mas estava estranhamente nervosa e, ora receava ouvir que o Linton estava morto, ora tremia perante a ideia de me encontrar com o Hareton.

--No terceiro dia enchi-me de coragem, ou pelo menos, não pude suportar mais aquela espera e aquele jogo das escondidas. Parti às cinco horas, e fui a pé, pensando que conseguiria esgueirar-me até ao quarto do Linton sem ser vista. Todavia, os cães puseram-se a ladrar mal me pressentiram, denunciando a minha presença: a Zillah veio ao meu encontro, dizendo que o menino estava a convalescer bastante bem e levou-me para um pequeno aposento, muito limpo e atapetado, onde, para minha grande alegria, vi o Linton deitado num pequeno sofá a ler um dos meus livros. Contudo, durante uma hora inteira não falou comigo nem olhou para mim, Ellen. Que mau feitio o dele! O que me deixou ainda mais pasmada foi que, quando realmente abriu a boca, foi para dizer que a :,culpada de todo aquele burburinho era eu e que o Hareton estava inocente!

--Incapaz de ripostar, a não ser pela violência, levantei-me e saí do quarto. Quando ia a sair, ele lançou-me um débil «_Catherine», pois não esperava que eu reagisse daquela maneira. Mas eu não voltei para trás e o dia seguinte foi o segundo dia em que lá não fui, sentindo-me quase tentada a não o visitar nunca mais.

--Mas era-me tão penoso deitar-me e levantar-me daí em diante sem nunca mais ter notícias dele, que a minha decisão ficou sem efeito, antes mesmo de ser tomada. Tinha-me parecido errado fazer toda aquela caminhada, mas agora era impossível retroceder. O Michael veio perguntar-me se era preciso selar a Minny e eu disse-lhe que sim e, enquanto a Minny me levava através dos montes, mais me convencia de que não estava a fazer mais do que a minha obrigação.

--Como era obrigada a passar pelas janelas da frente para ir até ao pátio, era inútil tentar ocultar a minha presença.

--«_O menino está na sala» disse a Zillah quando me viu encaminhar-me para a saleta.

--Entrei. O Earnshaw também lá estava, mas saiu logo. O Linton estava sentado no cadeirão, meio adormecido. Aproximei-me da lareira e comecei a falar, muito séria, tentando fazer parecer que tudo o que eu dizia era verdade.

--«_Como não gostas de mim, Linton, e como pensas que venho cá só para te magoar, e insistes que é para isso que cá venho, este será o nosso último encontro. O melhor é dizermos adeus um ao outro. E podes dizer a Mr. Heathcliff que não me queres ver nunca mais e que não precisa de inventar mais mentiras sobre este assunto.

--«_Senta-te e tira o chapéu» respondeu ele. «_És muito mais feliz do que eu, não deverias ser como eu. O meu pai já fala até demais dos meus defeitos, já me despreza o suficiente e, assim, é natural que eu próprio duvide de mim. Chego até a duvidar se não serei tão inútil como ele diz e, depois, fico tão irritado e tão azedo que detesto toda a gente! Não valho nada; tenho quase sempre mau feitio e sou de má rés. Se quiseres, podes ir-te embora e ver-te-ás livre de muitos aborrecimentos. Mas faz-me justiça, Catherine: acredita que se eu pudesse ser tão doce, tão simpático e tão bom como tu, teria todo o gosto em sê-lo, mais ainda do que ser saudável e feliz. E acredita que a tua amabilidade fez-me gostar de ti ainda mais do :, que se merecesse o teu amor e, embora não pudesse nem possa deixar de te mostrar como verdadeiramente sou, tenho muita pena de ser assim; é algo de que me arrependerei até morrer.

Senti que ele dizia a verdade e que devia perdoá-lo e que, mesmo que ele voltasse a discutir no minuto seguinte, deveria perdoá-lo novamente. Reconciliamo-nos e choramos os dois durante todo o tempo que lá estive. Não só de tristeza, mas também porque tinha pena de que o Linton tivesse aquela natureza tortuosa. Ele nunca deixará os seus amigos sossegados e nem ele próprio terá alguma vez sossego!

--Desde aquela noite, passamos a encontrar-nos sempre na tal saleta, pois o pai dele regressou no dia seguinte. Só três vezes, salvo erro, estivemos contentes e felizes desde o nosso primeiro encontro; o resto das minhas visitas foram fatigantes e conturbadas, ora devido ao seu egoísmo e ódio, ora por causa dos seus sofrimentos. Mas uma coisa eu aprendi: a suportar o seu feitio com quase com tão pouco ressentimento como a sua doença.

--Mr. Heathcliff evita-me propositadamente. Quase nunca o vi. No último domingo, cheguei mais cedo e ouvi-o injuriar o pobre do Linton de forma cruel, pela maneira como se tinha portado na noite anterior. Não vejo como é que ele pode ter sabido, a menos que tenha escutado atrás da porta. O Linton tinha-se portado de forma irreverente; contudo, o problema era só meu. Interrompi o sermão de Mr. Heathcliff quando entrei e disse-lhe isso mesmo. Mr. Heathcliff soltou uma gargalhada e retirou-se, dizendo que se alegrava por eu encarar o assunto por esse prisma. A partir daí, disse ao Linton que deveria proferir em voz baixa as suas palavras mais azedas.

--Pronto, Ellen, agora já sabes tudo e não me podem impedir de ir ao Alto dos Vendavais, a não ser que queiram tornar duas pessoas infelizes e, se não contares nada ao papá, as minhas visitas não perturbarão a tranquilidade de ninguém. Não lhe vais contar, pois não? Serias muito má se o fizesses.

--Amanhã lhe darei a resposta, Miss Catherine --disse eu.

--Isto requer algum estudo pelo que a vou deixar repousar enquanto reflito sobre o que me pediu.

Refleti de facto, mas em voz alta e na presença do meu patrão, pois fui diretamente do quarto dela para o dele e contei-lhe toda a história, excepto as conversas de Miss Catherine com o primo, e também não mencionei o Hareton.

Mr. Linton ficou talvez mais alarmado e angustiado do que deixou transparecer. Na manhã seguinte, Catherine soube que eu a tinha traído e que as suas visitas secretas iam acabar.

Chorou e debateu-se em vão contra a interdição e implorou ao pai que tivesse piedade do Linton. Tudo o que conseguiu foi a promessa de que Mr. Linton escreveria ao sobrinho autorizando-o a vir à Granja sempre que desejasse e explicando-lhe que não veria nunca mais Miss Catherine no Alto dos Vendavais. Tivesse ele conhecimento do carácter e do estado de saúde do sobrinho, e talvez tivesse achado conveniente nem sequer conceder a Catherine essa pequena consolação.

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