Entre a Terra e o Mar

By MariliaGB

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Iara tinha o costume de caminhar pela praia quase todas as tardes, fazendo um serviço voluntário de catar o l... More

Entre a Terra e o Mar

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By MariliaGB





A areia áspera e quente da praia tinha um contraste perfeito com o vento constante. Iara respirou fundo, sentindo o cheiro do mar, colocou os fones de ouvido, apertou o play no celular e então começou sua caminhada.

Como era de costume, Iara segurava os chinelos nos dedos para sentir melhor as ondas do mar quando elas avançavam sobre a areia. O cabelo negro que herdara da mãe indígena estava preso em uma trança lateral; sua pele morena como chocolate ao leite reluzindo ao sol enquanto aproveitava mais um fim de tarde com aquela bela paisagem até onde a vista alcançava.

Porém, antes mesmo de a primeira música acabar, uma garrafinha de plástico vazia e parcialmente coberta pela areia apareceu em seu caminho. Era incrível como as pessoas pareciam incapazes de recolher o próprio lixo e dar o devido fim a ele ao irem embora. Isso já acontecera tantas vezes que, agora, Iara sempre tinha uma sacola de lixo no bolso dos shorts, e assim começou a catar outras sujeiras que foi encontrando pelo caminho.

Garrafas de plástico, latinhas de cerveja e refrigerante, bitucas de cigarro, copos de plástico, sacolas e embalagens .

Era tanta coisa que ela encontrava diariamente que nem dava para acreditar que vivia em um mundo civilizado. Foi tanto que o saco rasgou ao final de sua caminhada, derrubando todo o lixo de volta na praia.

Ela soltou um gemido de frustração e se abaixou para pegar tudo de novo. Sem uma sacola reserva, -se forçada a tentar catar tudo nas mãos para levar à lixeira mais próxima. Sem ela perceber, uma das várias garrafas rolou até encontrar seu caminho ao mar e flutuar para longe; isto é, até que alguém a pegasse e a arremessasse de volta para Iara, acertando suas costas.

Largando tudo na areia, a garota enraivecida se levantou e esquadrinhou a direção de onde o projétil viera, encontrando apenas um garoto no mar, a encarando não muito longe de onde ela estava.

— Ei, você! — ela gritou, não se importando com os olhares curiosos das pessoas ao redor. — Acha que jogar garrafas nas pessoas é engraçado? Fica jogando lixo na praia também? Sabia que pode demorar séculos para uma dessas ser consumida pela natureza? Por que é tão difícil pra algumas pessoas simplesmente procurarem uma lixeira pra jogar o lixo fora?

Ela terminou seu pequeno discurso olhando as pessoas em volta. O garoto, surpreso, não tinha palavras e ficou abrindo e fechando a boca como um peixe até que resolveu mergulhar e nadar para longe.

Estalando a língua, ela se abaixou novamente para catar o lixo e levar ao seu devido lugar. Teve de fazer o percurso mais duas vezes para se livrar de tudo que havia catado antes. Quando terminou, Iara foi para sua casa, esperando contar os eventos para sua prima, com quem dividia o pequeno e simples apartamento, e se divertir com as reações de Isabella.

Iara voltou à praia quase todos os dias daquela semana, sempre ao final da tarde, depois do trabalho na loja de roupas.

Geralmente, ela não prestava atenção em quem estava na praia, com exceção do garoto que jogara a garrafa nela, mas era só porque ele era muito esquisito. Para começar, ele era tão pálido que parecia que nunca vira o sol, e ele estava sempre no mar, longe das pessoas. Além disso, ele ficava a encarando, e isso irritou Iara. Ela até pensou em confrontá-lo, mas ele nunca saía da água. Nem mesmo depois que a noite caía e ela tinha certeza de que o mar estava bem gelado, pois quase ninguém mais aguentava ficar nele. Então, ela voltava para casa, pois teria que acordar cedo no dia seguinte, de qualquer forma.

No entanto, no domingo, seria diferente. Em seu dia livre, ela foi no horário de costume, no final da tarde, e novamente o garoto estava lá.

Como sempre, Iara fingiu que o ignorava e fez sua caminhada, jogando fora os lixos que encontrava pelo caminho. Dessa vez, porém, ela seguiu para uma área meio isolada da praia, com várias pedras marrons que avançavam para o mar.

Não era recomendado subir nas pedras, pois eram escorregadias, mas isso não a impediu, ainda segurando os chinelos em uma mão. E como ela esperava, o garoto estava a seguindo sutilmente.

— Ei, você, peixinho!

Ele se aproximou lentamente, olhando ao redor com uma expressão desconfiada. Havia algumas pessoas por perto, que observavam curiosas, outras apenas ignoraram e continuaram com seus afazeres.

— Peixinho?

— Claro, oras! Você não sai da água! — Ela colocou as mãos na cintura, elevando a voz ao máximo. — Qual é o seu problema? Por que fica me seguindo?

A voz do garoto continuou baixa, como se ele quisesse que apenas ela o escutasse.

— Você não polui o mar.

Iara ficou sem reação por alguns momentos.

— É... — Ela deu de ombros. — E daí?

— Eu não entendo. Pensei que todo mundo fizesse isso.

Ela continuou confusa, mas acabou rindo.

— Você está doido? Claro que tem muita gente fazendo o que não deve, mas também não é assim! Tem gente preocupada com o meio ambiente, tá?

— Sério? É que não parece do lado de cá.

— Quê? — Ela balançou as mãos sem interesse. — Quer saber? Você é muito estranho, peixinho. Só me faça um favor e me deixe em paz.

Ela se virou e deu alguns passos cuidadosos de volta para a praia, no caminho de pedras.

— Aldan.

Iara o olhou com uma sobrancelha levantada.

— É o quê?

— Não é peixinho. É Aldan.

— Que nome estranho. Você não é daqui, não é? — Em resposta, ele balançou a cabeça negativamente. — Imaginei.

Ele mergulhou e estranhamente não emergiu por perto. Então ela continuou a caminhada.

Os próximos dias foram um pouco mais complicados no trabalho; chegou carregamento de roupas novas e a equipe teve que reorganizar a loja toda. Sendo assim, Iara acabou não indo à praia por um tempo, mas, quando foi, lá estava o garoto esquisito longe de todo mundo e seguindo-a com os olhos. E foi quando ela decidiu que já havia tido o suficiente. O garoto não se mancava!

No final da tarde do domingo seguinte, ela foi para a praia, mas dessa vez sua prima foi junto para dar apoio moral. Ambas chegaram à praia e Iara logo avistou o garoto esquisito, indicando a localização dele para Isabella, mas sem apontar. Foi fácil, ele era o único mais afastado de todos, tão distante da praia que apenas surfistas tinham coragem de ir até lá.

Ambas caminhavam pela areia tranquilamente, indo em direção às pedras em que Iara subira na semana anterior.

— Você vai entrar na água? Não acho uma boa, ele deve ser um bom nadador se não sai da água. — Isabela olhou de relance para a direção onde o garoto solitário nadava.

— Eu estava pensando nisso, por isso não vou entrar.

— Me dá seu celular, vai que ele te puxa pra água ou sei lá. Mas, se acontecer alguma coisa, eu grito por ajuda e chamo a polícia.

Iara assentiu e entregou o celular para a prima.

— Não acho que vai precisar chegar a esse ponto, mas talvez eu precise ameaçar envolver as autoridades.

— Espero que não precise, mas boa sorte.

Iara respirou fundo,  mentalmente, e então caminhou com passos firmes até os rochedos. Ela subiu nas pedras e andou por sua superfície até aquela que avançava mais distante no mar, quase perto dele, que logo se aproximou, sabendo que ela queria falar com ele como fizera antes.

— Já não te falei pra parar de ficar me observando desse jeito? O que você quer, afinal?

Aldan deu de ombros.

— Eu te disse meu nome, mas você não me disse o seu.

O queixo dela caiu e, quando ela reencontrou sua voz, praticamente gritou:

— E você acha que eu vou dar meu nome para um louco que fica me perseguindo?

— Não posso te perseguir.

Iara grunhiu e estendeu os braços na direção dele.

— É o que você já está fazendo!

— Como assim? Eu estou longe, foi você quem chegou perto de mim.

— Acha que não estou te vendo? Foi porque você fica me observando o tempo todo! — Ela cruzou os braços. — Só me deixe em paz ou eu vou ter que chamar a polícia!

Ele não ficou apreensivo como ela esperava, apenas confuso, então mudou de assunto. 

— Você estava certa. Eu vi outras pessoas na praia catando lixo, mas não muitas.

— Tem gente que trabalha com isso, sabia?

— Você não veio todos os dias.

— Claro que não, eu não trabalho catando lixo. Faço isso porque quero.

— Por quê?

— Como assim?

— Por que decidiu fazer isso?

Iara abriu a boca e depois fechou, debatendo se deveria contar e continuar a conversa com um garoto que parecia louco e ficava a observando o tempo todo. Mas, se ela fosse honesta, ele nunca fizera nada demais, nem sequer fora atrás dela, afinal ele nunca saía da água. Na verdade, ela nem tinha certeza de que poderia colocar a polícia no caso, mas esperava que ele ficasse com medo e fosse embora.

— Bem... Eu sempre gostei de passear pela praia, mas ela estava constantemente suja; eu não gostava disso e percebi que não adiantaria deixar isso pros outros. Se eu quisesse ver alguma mudança, teria de fazer isso eu mesma. — Ela deu de ombros e levantou as mãos em sinal de "pare". — Olha, já chega, eu vou embora agora.

No que ela se virou para voltar para a praia pelas pedras, o chinelo dela escorregou; ela tentou, mas não conseguiu se manter de pé e caiu no mar.

A corrente marítima era mais forte do que ela imaginava, deixando-a atordoada pela surpresa.

Geralmente ela gostava de ficar no mar, mas, no momento, só queria encontrar a superfície, então abriu os olhos, apesar do incômodo que isso causava. Bolhas cobriram sua visão por alguns momentos, mas logo se dissiparam, permitindo que ela pudesse ver adiante.

Iara não podia acreditar no que via: o garoto mergulhara também e estava olhando para ela, mas o problema era o que havia abaixo da cintura dele. Não era um calção de banho e um par de pernas, como seria o esperado; ele tinha uma cauda como a de um peixe e, pelo jeito que se movia, não podia ser falsa. O susto foi tanto que ela arfou involuntariamente, engolindo água no processo.

Aldan esticou as mãos e a pegou pelos braços para puxá-la para cima. Ela tossiu algumas vezes e respirou fundo até que conseguiu falar numa voz quase quebrada, que teria sido bem mais alta se a garganta não estivesse doendo:

— Você é uma sereia?! — Ela tentou se afastar, nadando para longe.

— Um tritão.

A correção dele veio tão natural e séria que não dava para dizer que era brincadeira.

Iara estava tão incrédula que nem conseguia formar sentenças. Então ela nadou de volta para as pedras e subiu nelas rapidamente. Na praia, Isabella olhava preocupada. Para acalmá-la, Iara fechou a mão, levantando o polegar para indicar que estava bem, apesar de ela mesma ainda nem ter certeza disso, tremendo e não por causa do frio.

Aldan mergulhou mais uma vez e veio à superfície segurando os chinelos de Iara. Ainda atordoada, ela apenas se afastou dele, o fazendo deixar o par nas pedras ao lado dela e voltar para o fundo do mar. Olhando com mais atenção, ela viu a cauda dele no momento em que ele começou a submergir, antes de sumir de vista completamente.

Iara pegou seus chinelos e levantou com as pernas bambas, saindo de lá o mais rápido que pôde.

Iara não contou o que vira para a prima ou para qualquer pessoa. Iriam achar que ela estava louca. Em vez disso, ela apenas disse que caíra, ele a ajudara e talvez tivesse entendido o recado para se afastar.

Não retornou àquele local por alguns dias, ainda tentando entender os acontecimentos. O que ela vira só podia ser algum tipo de pegadinha, e era isso o que ela dizia a si mesma.

Iara só voltou à praia dias depois e não viu nem sinal de Aldan. E isso se repetiu ao longo da semana, quando ela retornava para suas caminhadas sobre a areia ao final do dia. Até que chegou um dia, semanas depois, em que ela o avistou no mar, longe de todo mundo e mais distante do que qualquer surfista. Ela não conseguia reconhecer seu rosto onde ele estava, mas simplesmente sabia que era ele. Afinal, quem mais estaria num local como aquele?

O medo que sentia antes sumira durante as semanas que se passaram e fora substituído por uma curiosidade insaciável. Ela jogou fora o saco plástico com o lixo que catara e seguiu para as pedras novamente. Quando Iara chegou no ponto mais distante que as pedras permitiam, Aldan se aproximou cautelosamente.

— Você não parece tão assustada agora — ele comentou.

— Acho que não estou mais, eu não sei. Foi um sonho?

— Não. Você é a primeira humana com que eu converso, vocês são sempre esquisitos assim?

— Alguns mais, outros menos — ela disse, ainda tonta só de pensar na origem dele. Deixou os chinelos de lado, em uma parte alta das pedras para que não fosse levado por alguma onda forte, e se sentou com os pés dentro d'água. A curiosidade a corroendo ao focar o olhar no corpo dele escondido pelo mar. — Posso ver sua cauda?

Apesar de achar o pedido dela estranho, ele levantou a ponta sobre a água. Iara esticou a mão, tocando nas escamas molhadas. Era quase como se estivesse tocando em um peixe gigante, de um verde-escuro como os olhos de Aldan.

— É de verdade mesmo? — Ela ainda não conseguia acreditar.

— Por que não seria?

— Porque... Porque vocês não existem! Ou não era pra existirem.

— Eu existo, sim, e há muitos outros. Vocês não nos veem porque decidimos ficar longe de vocês e moramos nas profundezas dos oceanos. Vocês não se lembram de onde vieram?

— Como assim?

— Humanos vieram do mar. Tudo veio do mar. Muito antes da terra se dividir e criar continentes, a massa terrestre era uma só, rodeada por um único oceano, assim como o povo que existia nela. Porém, desavenças dividiram opiniões e geraram brigas no povo. Metade quis ficar nas profundezas e a outra metade buscou o ar da superfície. Esse grupo perdeu suas escamas e ganhou um par de pernas. São vocês.

Ela balançou a cabeça.

— Não, isso não faz nenhum sentido. E afinal, por que você está aqui?

— Eu estava com raiva e cansado de ver o que os humanos fazem com a nossa casa, sujando e deixando nossos animais doentes. Eu queria entender o motivo disso, por que os humanos nos odiavam tanto. Mas, pelo que eu vi em vários lugares, na verdade não é que eles tentem sujar tudo, pelo menos não a maioria. Eles simplesmente não se importam, como você mesma me disse no primeiro dia que cheguei a essa praia. E você foi uma das únicas que fizeram algo a respeito disso.

— Por isso que você não parava de me observar? Porque o que eu fazia era raridade?

— Porque você era única e interessante. — Ela sorriu com os elogios. — E chegou a brigar comigo pelo motivo que me trouxe à superfície. Isso foi bem inesperado pra mim. — Ele terminou com uma pequena risada.

— Isso foi porque você jogou uma garrafinha em mim! E eu pensei que você estava zoando comigo! Eu jurava que você era um garoto mimado, que ficava poluindo a praia como a maioria das pessoas. —  Sua voz sumiu e, quando voltou, ela mudou de assunto. — E sei que não parece, mas tem muita gente que se preocupa com o meio ambiente.

— Também tem muita gente que não se importa. Já perdi a conta de quantos plásticos tirei de animais. Até pensei em perguntar pras pessoas por que faziam isso, pois queria entender, mas não tive coragem.

— E não deveria mesmo. Se você fosse visto pelas pessoas erradas, poderiam te capturar pra fazer experiências ou para lucrar. Seria um caos total.

— Que horrível, vocês são tão estranhos. Não é à toa que o Conselho dos Anciãos nos proíbe de vir à superfície.

— Proibição que você está ignorando neste momento, não é?

Ele sorriu em resposta.

— O que posso dizer? Acho que estou na época de me rebelar.

— Você só estava curioso, essa é a verdade. Se fosse questão de idade, muita gente já teria visto sereias e tritões por aí.

— Acho que é mais interessante para a maioria ficar nas profundezas.

— Tenho que concordar. Eu mesma amo ficar na água, é tão boa e tão relaxante. — Ela olhou para cima. O céu já estava ficando escuro, o sol já se escondera havia algum tempo. — Eu tenho que ir agora. Tenho muito o que fazer ainda.

— Está bem. Te vejo amanhã?

Iara sorriu e assentiu antes de se levantar e pegar os chinelos. Com um aceno de despedida, ela seguiu em direção à praia.

O trabalho na loja de roupas foi bem puxado no dia seguinte por causa das promoções de queima de estoque, mas o pensamento de encontrar com Aldan a deixou animada o suficiente para passar pela praia antes de voltar para casa.

Ela colocou o chinelo e a bolsa em uma pedra no caminho e se sentou à beira-mar; seus olhos castanhos brilhando de antecipação para vê-lo novamente.

Aldan não a estava observando como antes, ele nem estava à vista. No entanto, logo apareceu emergindo e nadando em sua direção.

— Você não estava por aqui, como descobriu que eu já tinha chegado?

— Achei que você não gostou de quando eu fiquei te observando, então fiquei nadando por aí, mas de vez em quando ficava de olho pra ver se você já tinha chegado.

— Entendi, obrigada. A propósito, eu fiquei pensando nisso ontem, mas quantos anos você tem pra dizer que está na "época de se rebelar"?

— Cinquenta e sete.

Iara riu.

— Você está brincando, não é? Não parece que tem nem vinte!

Aldan deu de ombros com um sorriso maroto.

— O que posso dizer? Lendas dizem que aqueles que escolheram o ar vivem menos do que nós.

— Inacreditável!

— E você?

— Vinte e três... Mas, me diga, como é viver lá embaixo? O que você gosta de fazer pra se divertir?

— Basicamente nadar e explorar lugares novos. Os oceanos são gigantescos e nem nós que moramos nas profundezas conhecemos tudo.

— Muito menos nós. Sabemos mais do espaço do que do mar. Parece bem divertido. — Ela riu, olhando-o de cima a baixo. — E você fica aí realizando um sonho meu de criança só por existir!

— Como assim?

— Quando eu era criança, eu queria ser uma sereia. E uma fada também.

— Fada?

— São como humanos, mas com asas. E são bem pequenas, só que não existem de verdade.

— Sereias existem.

— É. — Ela moveu os pés sob a água, de vez em quando colocando-os para fora antes de submergi-los. — Então quem sabe elas existem, não é mesmo? Mas tudo o que sabemos é que são mitos. De qualquer forma, eu quis ser muitas coisas. E, claro, teve a fase das profissões. Eu queria ser veterinária.

— E por que não é uma? Isso é algo que poderia se tornar, não é?

— Sim, mas eu precisaria entrar na faculdade, o que não aconteceu. Ainda estudo por conta própria, porém não consigo nem pagar uma faculdade privada e não passei nos vestibulares para a pública. — Ela deu de ombros. — Consegui um trabalho e as coisas foram mudando. Pelo menos saí de casa e fui morar com a minha prima.

Curioso sobre ela, ele apoiou os braços nas pedras ao seu lado. Aldan não conseguia, nem queria, conter o sorriso que a pura presença dela lhe causava.

— Por que quis sair de casa?

— Não me dava muito bem com o meu pai e minha mãe morreu quando eu nasci. Ou seja, era um caos.

Ele assentiu, mas resolveu mudar de assunto, já que a conversa estava tomando um rumo um pouco amargo.

— E você? O que faz pra se divertir?

— Não muito, na verdade. Trabalho bastante e não tenho tanto tempo livre quanto gostaria, mas amo vir para cá quando posso. E gosto de passar o tempo com a minha prima, Isabella, é minha melhor amiga. Gostamos de jogos de tabuleiro e cartas quando conseguimos nos encontrar com outros amigos. Um cinema também é legal, mas anda tão caro que fica difícil de ir.

— Não sei o que são essas coisas.

— Quem sabe um dia eu te explico? Mas agora eu tenho que ir.

— Espere, tenho uma coisa pra você. — Ele mergulhou antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, e então Iara o esperou por alguns minutos, até que ele voltou com uma concha espiral de quase vinte centímetros. — Para você se lembrar de mim quando só tiver água ao seu redor.

— É linda! Obrigada. — O queixo de Iara caiu ao segurar aquela concha perfeita. A colocou no ouvido e o que ganhou foi um olhar confuso dele. — Dá pra ouvir o mar aqui dentro.

— Sério?

Iara estendeu o objeto ao ouvido dele e Aldan parou para escutar.

— Acho que você não percebeu isso por estar aí dentro, mas o eco que a concha faz lembra o som das ondas chegando na areia.

— Parece mesmo.

— Bom, então te vejo amanhã. — Mordendo o lábio inferior para conter um sorriso, ela se levantou segurando o presente com cuidado, seguindo o caminho de volta para casa.

Isabella, curiosa, quis saber o motivo de tanta felicidade da prima, acompanhada por uma concha difícil de se encontrar. Iara teve que encontrar formas de explicar, sem mencionar a cauda do seu novo amigo.

Depois disso, quase todos os dias ela se encontrava com Aldan naquele mesmo lugar nas pedras.

Os dias foram passando e se transformando em semanas, que viraram meses, ambos se sentindo mais perto um do outro com o passar do tempo. Às vezes ela mostrava partes de seu mundo na pequena tela do celular, e outras ele trazia amigos para ela ver. Foi assim que ela conseguiu realizar o sonho de nadar com golfinhos. Algumas vezes, quando ela vinha sem celular ou bolsa, usava roupa de banho para poder nadar com o tritão, geralmente nos fins de semana.

Em um domingo, ela chegou um pouco mais cedo do que o normal para passar mais tempo com ele. Ficaram tanto tempo na água que o sol já estava se pondo, e eles foram se afastando tanto da praia que ela ficou pequena ao longe. Iara estava tão confortável que só percebeu a distância quando olhou na direção da areia.

— Estamos tão longe! Como vou conseguir nadar de volta? A correnteza está puxando pro lado contrário, não está?

— Sim, como você notou?

— Essa foi a direção em que fomos naturalmente e a gente nem percebeu.

— Eu percebi. Posso sentir a correnteza naturalmente. A água tem vida própria e vai pra onde ela quer. O povo do mar teve que aprender a senti-la. Pra voltar, a gente só precisa ir diagonalmente. Mas não se preocupe, eu não vou deixar que nada de mau lhe aconteça. — Então, Aldan começou a nadar, levando-a com ele.

Iara também ajudou e, movendo as mãos na água, imaginou como era para ele senti-la se movimentando; seria como ela sentia a direção em que o vento sopra?, ela se perguntou.

Aldan nadava calmamente e, mesmo assim, era rápido e preciso. Não poderia ser diferente com tantos anos de prática.

— Iara, eu já vi humanos com os rostos colados um no outro algumas vezes. Por que vocês fazem isso?

Ela conteve uma breve risada.

— Acho que você está falando de um beijo. É uma das formas de afeto que temos, usada para as pessoas com quem estamos mais emocionalmente envolvidas. Vocês não fazem isso?

— Não assim.

— Então como é?

— "Invadindo" o espaço do outro e entrelaçando as caudas. Mais ou menos assim. — Ele levou a cauda dele para perto de suas pernas, e ela levou um susto.

— Isso é bem diferente.

— E esse tal de beijo é bom?

— Talvez eu possa te mostrar. — Iara segurou o rosto dele suavemente e se inclinou para frente, para que seus lábios tocassem nos dele. Aldan a trouxe para mais perto, aproveitando o momento e se deliciando com a estranha forma de afeto humano.

— Isso é... interessante — ele disse ao se separarem.

Ela sorriu em resposta, gostando tanto quanto ele. Ambos já estavam perto dos rochedos para ela voltar para a praia. As noites de verão não eram tão geladas, então ela não se incomodou com o frio ao sair do mar. Ela se despediu mais uma vez e voltou para sua casa.

Não deveria ser tão difícil para Iara dar cada passo, e ela não deveria estar tão surpresa com que acontecera, mas os eventos a fizeram refletir a noite toda. No dia seguinte, ao encontrar com Aldan ao final da tarde, seu coração ainda estava aflito e ele percebeu isso assim que a viu.

— O que foi?

— Eu... — Ela engoliu em seco, movendo os pés sob a água impacientemente. — Acho que é melhor não nos vermos mais. Isso não vai dar certo. É impossível. Vamos apenas nos machucar assim.

— Não diga isso. Nosso tempo juntos é maravilhoso.

— Exatamente por isso. Um pássaro pode amar um peixe, mas onde viveriam? — ela resumiu o problema com uma analogia tirada de um antigo filme.

Ele entendeu o significado por trás de suas palavras e pegou a mão de Iara, olhando fundo nos olhos dela.

— Então damos escamas ao pássaro, ou asas ao peixe.

Ela inclinou a cabeça.

— O que você quer dizer?

— É raro, mas é possível que um siga o outro. Eu posso ir para a terra, ou você pode vir para o mar. Posso abrir mão das minhas escamas, ou posso te dar suas próprias.

— É sério? — ela balbuciou e ele assentiu.

— Isso já aconteceu antes, com uma amiga da minha avó.

No entanto, ela não era inocente a ponto de acreditar que isso aconteceria sem algo em troca.

— Qual é o preço?

Ele engoliu em seco. Sua voz saiu calma e sóbria.

— Primeiramente, é um caminho que não tem volta. Se você quiser vir para o mar, a transformação vai doer, mas, se tiver um bom coração, terá sucesso. E eu sei que você tem. Além disso, tudo o que precisa é de um pouco de sangue de alguém que nasceu no mar, e metade de sua vida.

O queixo dela caiu.

— Você daria metade de sua vida pra mim?

Ele entrelaçou seus dedos com os da mão dela.

— Eu te daria tudo.

— Não posso permitir que jogue fora metade de sua vida, por mais que você viva muito mais do que os humanos. Isso não seria justo.

— Não jogaria fora, daria para alguém que importa pra mim mais do que tudo. É justo pra mim.

O coração dela se apressou de um jeito avassalador, uma mistura incrédula e lisonjeada.

— E se você vier para a terra?

— Você vai precisar me dar um pouco do seu sangue, um corte na mão é o suficiente. E o mesmo acontece com a transformação, e a minha expectativa de vida será como a de um humano.

— E o que você quer fazer?

— O que você quiser. Se você quiser vir para o mar, eu te ajudarei a se acostumar com as profundezas, assim como eu tenho certeza de que você ficará ao meu lado se eu for para a terra.

— E o pessoal do mar? Eles me aceitariam fácil assim? Seus pais também?

— Quando a transformação é feita, eles têm de aceitar. E quanto à minha família, eles também terão de te aceitar. O povo do mar ama de verdade apenas uma vez. — Ele apertou a mão dela gentilmente. — E o meu coração escolheu você.

Iara ficou comovida com a sinceridade direta dele, e se inclinou para lhe dar mais um beijo.

— Amo você também.

Iara olhou para seus pés debaixo d'água e depois para a cidade atrás dela, ponderando. Teria ela tanto a perder?

— Eu acho que a única pessoa de quem vou sentir falta de verdade é a minha prima. Ela sempre esteve ao meu lado quando precisei, é minha melhor amiga. E eu nem contei pra ela sobre sua origem.

— Ela vai precisar saber. —  Entendendo o caminho da conversa, ele emendou. —  E não significa que nunca mais vá poder vê-la, mas seria bastante difícil.

— Eu sei. — Uma lágrima escapou de seus olhos e Aldan esticou a mão para limpá-la, molhando ainda mais o rosto dela. Iara não se importou. Quando continuou, ela já estava decidida. — Eu quero vir para o mar. E por quanto tempo vamos poder viver?

— Não dá pra ter certeza, mas estimo que por volta de uns cem anos daqui por diante. E então viraremos espuma do mar.

— É isso o que acontece com o povo do mar?

Ele assentiu.

— E sei que não é tão longa quanto a que eu teria, mas será completa, pois gosto mais da pessoa que sou quando estou ao seu lado.

— Eu também.

— Sendo assim, eu volto em três dias para te levar às profundezas do oceano.

Com um último beijo de despedida, ela voltou para sua casa e ele mergulhou.

Iara não conseguiu contar para Isabella, sabendo que a prima a acharia louca, no mínimo. Não por fugir com um garoto – essa nem seria a pior parte –, mas por aonde ele a levaria.

Sendo assim, ela pediu demissão do seu trabalho e passou todo o tempo livre com sua prima e seus amigos. Iara explicou tudo em anotações que deixaria sobre sua cama, revelando todos os segredos e passando o pouco que tinha para Isabella. Ela não precisaria de seus pertences aonde iria.

Ela se despediu de Isabella, sabendo que ela encontraria as anotações no momento certo, e então foi pela última vez até os rochedos da praia. Como esperava, Aldan a esperava lá. 

— Está pronta? — ele perguntou uma última vez.

— Sim.

Ele estendeu a mão para ela.

— Então venha comigo.

Iara entrou na água e tirou as roupas que não usaria mais, deixando-as jogadas nas pedras. Se a maré alta não as levasse ou se não fossem roubadas, certamente Isabella as encontraria e saberia que o que lera era verdade.

— E agora?

— Você bebe isso e mergulha. — Ele lhe entregou um pequeno vidro com um líquido roxo. — Vai sentir como se estivesse se afogando por um momento, mas vai ficar tudo bem e eu estarei ao seu lado.

Iara assentiu e assim o fez. A transformação foi como ele dissera, doeu e não teve como ela respirar por um tempo, que pareceu longo demais. E então, passou. Acabou e ela nunca se sentira tão confortável debaixo d'água. Como se fosse o lugar que ela estivera esperando a vida toda e não sabia.

Eufórica, ela beijou Aldan mais uma vez, e ele, segurando sua mão, a guiou para o fundo do mar.

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