– Eu tenho a impressão que você não sai muito de casa – Alan comentou, vendo Gael encolhido contra o banco traseiro do carro de Judith.
Depois da consulta, Gael disse que iria embora. Como ele estava exausto e sonolento, Judith e Alan propuseram o levar para casa, já que ele estava sem seu carro. Gael odiava receber caronas.
– Eu não me sinto muito estável... – Confessou.
– Bem... A gente não te contou isso, mas nós vamos buscar Ícaro depois te levaremos para casa, ok? – Sua voz hesitou e Gael o olhou frustrado.
– Eu não estimo ficar na presença de crianças – Se lembrou do quanto crianças não se importavam de se sujar. Sentiu calafrios, pensando na quantidade de germes que elas carregavam no corpo. E suas piores recordações rementiam a crianças.
– Ícaro é um garotinho muito gentil e nós só vamos buscá-lo. Logo depois iremos te levar para casa – Prometeu Alan, vendo Gael olhar perturbado para a cadeirinha de segurança ao lado.
– Alan, você pode trazê-lo até aqui? Eu vou estacionar no final da rua – Judith alertou enquanto o ômega já tirava o cinto.
– Você quer junto comigo? – Perguntou, abrindo a porta de Gael que assentiu rapidamente.
Ele preferia ficar com Alan do que com Judith. Não era por mal, mas sim porquê Gael selecionava muito bem as pessoas que entravam em sua vida. Ele estava abrindo frestas na sua muralha de tijolos que havia construído em torno de si. Mas elas eram mínimas, e até então ele só havia feito isso para Alan.
Um passo de cada vez.
Um tijolo de cada vez.
– Você não precisa ir junto comigo até a casa dele. Você pode me esperar – Gael negou, dando corridinhas até que estivesse ao lado do ômega que se surpreendeu por ele estar próximo.
Alan não gostava da parte de Gael que era sensível a toques. Mas ele entendia que às vezes precisava se afastar um pouco para entender obras de arte. E era isso que Alan estava aprendendo: a fazer arte sem tocar em telas ou pincéis; fazer música sem cordas, apenas com palavras gentis. Porque quando ele menos percebesse, estaria sentindo a alma melodiosa de Gael.
Mas até então ele precisaria de paciência.
– Por que está me observando com tanta precisão? – Ter Alan olhando para ele era mais desafiador do que ter outras pessoas focando em seus olhos.
– Você é tão estranho...
Percebeu Gael o olhar surpreso, antes de tudo transformar-se em indiferença novamente.
Isso significava que ele estava bravo e, porra, não era estranho no sentido ruim. Tentou se explicar, mas Gael o interrompeu com sua voz neutra:
– Poemas, telas, livros e pesquisas se tornarão algo eterno e famigerado se forem diferente de todo o resto. Ser igual aos outros é ser irreverente a si mesmo, é perder fragmentos seus na esperan...
Alan interrompeu, dizendo que não era nada daquilo, mas quando viu os cílios de Gael tremerem, ele entendeu o quanto ele estava cansado. Foi ai que notou que isso era o que Gael escutava ao longo de sua vida.
Puta que pariu....
Alan estava tentando ser melhor, mas então ele mesmo dava um jeito de ser o pior.
– Gael, eu sinto muito... Eu estava me referin...
– Dói! – Ouviu a voz de Ícaro dentro de casa, seguidos de leves murmurinhos de choro, antes de ouvir passos rápidos como se alguém estivesse correndo.
– O que é isso? – Gael perguntou, tentando espiar pela janela.
Alan correu para a porta da frente, deduzindo o que estava acontecendo. Tocou a campainha várias vezes.
– Alfinha! Você está aí? – Perguntou em voz alta, para que percebessem que alguém estava ouvindo. Sua aflição começou a aumentar quando ouvi um baque.
Gael tapou os ouvidos ao som da campainha, não entendo porquê Alan estava tão agitado. Foi só quando a porta abriu num estrondo que viu que algo estava definidamente errado.
– Ícaro? – Gael olhou alarmado para o garotinho que tinha as bochechas manchadas de lágrimas, estendendo os braços para Alan e rosnando baixinho.
– Papai, ele... ele... – Ofegou, incapaz de falar entre soluços; o rosto choroso se esfregando em Alan num pedido de consolo.
O ômega o agarrou rapidamente, limpando às lágrimas com a manga de seu casaco.
– O que foi, alfinha? – Perguntou docemente, ignorando às vozes irritadas que vinham da sala.
– EU MANDEI VOCÊ NÃO SAIR DE DENTRO DE CASA, QUE PORRA VO... – A voz de repente silenciou, antes do corpo de um homem sair na soleira da porta, olhando alarmado para Alan que tinha à criança em seu colo. – Olá, Alan.
De alguma forma, Gael não gostou do jeito que o timbre dele mudou ao cumprimentar. Ele não sabia reconhecer o que era, mas tinha certeza que não era algo bom.
– O que está havendo? – Interferiu, coisa que jamais faria, fazendo o homem o olhar assustado, sem saber que tinha mais gente por perto.
– Ele só está fazendo birra. Venha aqui. Agora – Tentou puxar o garotinho para si, o que fez Ícaro gritar e se agarrar a Alan com todas as suas forças.
O alfa rosnou agressivo e Ícaro começou a chorar mais. Gael fechou os olhos com força. Ele odiava soluços e lágrimas, e as do garotinho estavam o fazendo quase ter um colapso.
– Acalme-se. Rosnar para crianças não é apropriado – Alan disse entredentes, a um passo de arrebentar o alfa ao meio.
– Sinta-se à vontade se quiser educá-lo.
Alan começou a ferver, rangendo o maxilar numa tentativa de conter o impulso de começar uma briga.
– M-me leva com você... – Ícaro sussurrou, a voz falhando.
– Shhh, está tudo bem. Você está seguro – Afagou a bochecha do garotinho que fechou os olhos ao sentir os feromônios tranquilizantes de Alan no ar.
Ícaro começou a fazer barulhinhos que se assemelhavam a choramingos; escondendo seu rosto no ombro de Alan.
– Pare de ser irritante, você está incomodando – O alfa tentou novamente agarrá-lo, mas o ômega não deixou, olhando-o ameaçadoramente enquanto as pupilas começavam a dilatar.
O alfa se afastou, surpreso, antes de aderir sua postura arrogante de sempre.
– O que foi? Acha que a culpa desse chororô é minha?
– Ícaro não chora facilmente. Deve ter um motivo palpável.
– E que motivo seria esse? – Olhou afiado para Alan que transbordava ira.
– Talvez medo... dor?
O alfa não se abalou, apenas deu de ombros.
– Talvez queira apenas chamar a atenção?
– Ou talvez porquê ele tenha um pai abusi...
– Judith anunciou que o horário do cinema são as 17 horas, e estamos no limiar do atraso – Gael interrompeu formalmente, fazendo os dois o olharem surpresos. Ele estava vendo o desastre que iria acontecer e definitivamente não queria ver Alan e aquele alfa mesquinho se espancando. – Sabiam que o filme sai da bobina e entra no projetor? Os furos nas películas se encaixam nas rodas dentadas, então começa-se o movimento de rotação que fará com que os fotogramas se...
– Que diabos ele está falando? – O homem o olhou como se ele fosse louco.
Mas Gael continuou com seu discurso, pegando subitamente o garotinho do colo de Alan que se assustou com o movimento.
Ícaro também parecia surpreso: ter sido colocado no colo de Gael que caminhava rapidamente em direção ao final da rua enquanto continuava a falar coisas estranhas o fez ficar ainda mais confuso.
Todos estavam confusos, até Gael chamar por Alan que se mexeu, indo o acompanhar. Além disso, ele fez Ícaro acenar para o pai, com o auxílio de sua própria mão, antes de praticamente correr em disparada para o lugar mais longe daquela casa.