A Criatura

By AngelinaDourado

49 11 25

Não é segredo algum que o brilhantismo da doutora Helga Rosenstein é fruto de uma perversidade sem limites em... More

Capítulo Único

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By AngelinaDourado

A primeira coisa que sentiu quando veio à vida, havia sido dor. Por todo o seu corpo, cada extensão de seus músculos, queimando as centenas de suturas que uniam a pele e os membros, percorrendo todo o seu interior recheado de órgãos mortos e preenchidos com estofado. Não deveria estar vivo, jamais deveria ter nascido – se é que poderia chamar aquilo de nascimento – naquele laboratório, ia contra toda a ordem e natureza das coisas, por isso a dor da vida lhe era tão insuportável. Mas a Dra.Rosenstein não dava atenção nem para a ordem ou para a dor alheia, apenas desejou despertar sua criatura.

Seu corpo era humanoide, mas com um alto custo devido às inúmeras cicatrizes que possuía na pele pálida e cinzenta, lembranças do tempo que se assemelhava muito mais a um boneco remendado. A doutora havia lhe dado olhos, que apesar de poder enxergar jamais retornaram a cor viva, sendo de um tom leitoso fantasmagórico; havia lhe dado orelhas com ouvidos aguçados feito os de um morcego; e apesar de não ter um nariz propriamente dito além das coanas, seu faro era astuto como de um sabujo. Mas a Dra.Rosenstein não havia lhe dado uma boca, pois como uma criatura viva feita dos mortos, não precisava se alimentar, e jamais a mulher gostaria que tivesse a liberdade de dizer o que bem queria.

Quando despertou, sobre nada sabia, e a doutora foi sua referência para tudo que conhecia no mundo. Não demorou a compreender seu propósito, proteger ela seja do povo a denunciar seus crimes ou dos próprios experimentos, a Criatura daria a própria vida pela Dra.Rosenstein.

O que sentia pela mulher era confuso em sua mente, uma adoração religiosa, mas também medo de seu olhar gélido e de sua falta de piedade. Por vezes implorava por sua atenção como um filho pede a mãe, outras preferia permanecer longe de seus tapas e chicotes. Quando ela o trancava em sua cela com nada mais que uma cama de palha, passava a noite chorando por ficar sozinho no escuro, mas retornava de bom grado aos braços da mulher assim que a porta era aberta mais uma vez.

Ela poderia castigá-lo e até mesmo o usar de cobaia quantas vezes quisesse, A Criatura jamais revidava, não conseguia diante de sua criadora, deusa e mãe, mesmo com o dobro do tamanho e talvez com mais força que o mais selvagem dos ursos. Não podia lutar com ela que havia lhe tomado toda a sanidade de seu cérebro murcho desperto da escuridão da morte.

Mas por mais que a Criatura se visse completamente controlada pelas garras da mulher, ao menos nunca lhe fora tirado o direito de sonhar. Queria poder sair daquela casa de pedra sombria, ouvir de perto o canto dos pássaros, o riso das crianças e sentir a grama fresca sob seus pés, com o Sol beijando sua pele de fantasma. Queria se ver livre da corrente que tinha no pescoço e poder andar livre pelo mundo ao menos uma vez.

Gostaria de pedir isso a Dra.Rosenstein, mas não apenas não era capaz de falar, como tinha um medo colossal por sua reação. Às vezes sua inocência o dava esperanças, como aquela vez em que ela lhe deixou ficar com uma pelúcia que encontrara no lixo, mas seu lado mais racional também o fazia lembrar das muitas surras que havia levado por ter feito algo de errado.

– Vamos criatura tola, não tenho o dia inteiro! – A doutora lhe deu mais um puxão em sua coleira de ferro, o fazendo dar um passo a mais. Vindo da porta dos fundos ouvia o cantar dos pássaros que tanto adorava. - O que você tem hoje? Venha antes que eu decida te encher de agulhas mais uma vez.

A Criatura não gostava das agulhas, mas queria muito explorar o que havia atrás daquela porta. Uma coragem que não sabia que possuía além dos mandos da Doutora atravessou por sua alma já condenada ao inferno por tão perversa origem. Manteve-se firme com seus mais de dois metros de altura, apontando com o longo braço pálido em direção à saída, os olhos suplicando o que era incapaz de exprimir em voz alta.

– Sair? É isso o que você quer? – A mulher indagou com desdém em seu tom, os óculos parcialmente rachados refletindo a luz da manhã e escondendo por um momento seus olhos cheios de fúria. – Não pode, sequer é capaz de sair sem minha companhia. Pare de se portar como uma criança mimada, não o criei para isso!

E Helga Rosenstein puxou a corrente que prendia A Criatura mais uma vez, mas sentiu em suas mãos enluvadas o ferro rijo, com o experimento segurando a própria corrente com um olhar determinado nunca antes visto.

Não era capaz de ferir sua criadora, A Criatura sabia e a doutora também. Por isso o tenebroso ser imaginou os castigos tortuosos que receberia por tamanha audácia que tivera, mas ao invés disso se surpreendeu com um sorriso afiado fazendo-se presente no rosto pálido da mulher, que afrouxou a corrente.

– Você realmente deseja isso? – Ela indagou com as sobrancelhas escuras erguidas e um sorriso cínico a confundir A Criatura que a encarava. – Pois bem, então vá dar uma volta.

Helga Rosenstein tirou do bolso de seu jaleco manchado uma chave, aproximando-se de sua criação e se pondo na ponta dos pés para destrancar a coleira de ferro que o prendia. A Criatura ficou atônita por um instante tateando incrédulo o próprio pescoço que nunca havia permanecido livre, estranhando a sensação.

– Pode ir, a porta está aberta. – Disse de maneira tranquila, apenas deixando A Criatura mais confusa ainda com aquela reação. Não imaginava que seu protesto fosse realmente funcionar, muito menos daquela forma tão pacífica. – Vai logo seu tolo! Ou irei mudar de ideia.

A Criatura então começou a percorrer por conta e de passos hesitantes seu caminho até a liberdade que nem em seus maiores sonhos imaginou que um dia conquistaria. Quando a grande porta de madeira e ferro foi aberta, sentiu o coração de suíno em seu interior pulsar de alegria ao sentir a brisa em seu rosto.

Correu, com uma vitalidade e entusiasmo que jamais conseguiu desfrutar antes. Pode sentir a terra e a grama, encantar-se com o azul límpido do céu e suas nuvens feitas de algodão, os olhos se arregalando ao ver as folhas de outono caindo das árvores e repousando em seus ombros largos. Desfrutou das águas de um lago, tentando pegar com suas mãos os peixes que nadavam ao redor. Seguiu os passos das trilhas de formigas e sentou-se por horas na sombra apenas vendo os pássaros voarem aqui e acolá.

Jamais esteve tão feliz em toda sua vida feita pelo e para o sofrimento, sentindo lágrimas de felicidade aparecerem pela primeira vez em sua face repleta de cicatrizes.

Foi ao crepúsculo a pintar o céu em tons de laranja que então A Criatura notou um filete de fumaça saindo de uma chaminé no horizonte. Por vários minutos observou com curiosidade e dúvida frente aquilo, se questionando se poderiam ser as pessoas que ameaçavam a vida de sua criadora vez ou outra, ou a possibilidade de conhecer pela primeira vez outros indivíduos com quem pudesse aproveitar em companhia a beleza daquele vasto mundo.

Poderia muito bem ter permanecido na segurança da floresta, mas já havia se arriscado tanto naquele dia que A Criatura só era capaz de imaginar todas as novas possibilidades naquele instante, inebriada por um sentimento de liberdade que jamais teve em sua vida cativa.

Aproximou com seus passos largos até o vilarejo que se formava diante de si, observando com um olhar surpreso e petiz as construções simples de pedra e teto de madeira e palha, o moinho a rodar de maneira imponente e os celeiros abarrotados de feno.

O primeiro ser a lhe cumprimentar foi um cão pequeno que se aproximou desconfiado, mas que logo cedeu aos seus afagos. A Criatura provavelmente teria sorrido se fosse capaz, mas seus olhos já espelhavam a felicidade naquele pequeno gesto. Porém, ambos os seres se sobressaltaram quando de repente um grito ressoou em suas costas, fazendo o experimento de Helga se virar atônito.

Uma mulher com um balde de água derrubado diante de si o olhava com uma expressão mortificada, antes de correr por entre as cabanas suplicando por ajuda. Dezenas de cabeças apareceram então para espiar pelas janelas, portas abertas revelando rostos apavorados e enojados com o que viam diante de si. A Criatura virava seu olhar de um lado para o outro não compreendendo toda aquela comoção, até sentir algo chocar-se contra suas costas, notando um homem que tentava derrubá-lo com a pancada de uma pá, mas o experimento de Rosenstein era resistente demais a golpes tão supérfluos, somente encarando sem entender nada o homem de feições raivosas e longo bigode.

Tentou se aproximar do homem, para quem sabe descobrir o que angustiava ele e toda aquela gente, mas ele recuava e apontava a ferramenta de forma defensiva, por vezes até acertando a grande criatura que parecia não sentir os golpes.

Mas a lâmina em suas costas A Criatura sentiu, o tecido semi morto ao ser prejudicado começava a também ceder as velhas costuras ao redor, fazendo a dor agir por todos seus nervos tão bem transplantados dentro dele. Queria gritar, mas só ficou preso em sua garganta, enquanto sentia cordas a prenderam seu pescoço, braços, pernas, tronco, feito cobras famintas que o derrubaram por desequilíbrio, seu peso fazendo a poeira do chão voar pelos ares.

Tudo escureceu diante de si como a noite, dado as dezenas de pessoas que o rodearam e em seguida começaram a tentar abatê-lo como um javali, ficando cada vez mais sedentos por seu sangue pútrido ao notarem o quão difícil era tirar sua vida. Assim como em seu nascimento, tudo o que a Criatura sentia era dor, mas agora também havia desolação e uma profunda tristeza a lhe tomar a alma ao ouvir os gritos de "Monstro! Demônio! Aberração!" conforme sua carne era dilacerada. Por um momento permaneceu inerte, deixando as centenas de golpes machucarem seu corpo sem pudor algum, mas logo toda aquela apatia causada por sua desolação foi substituída por um sentimento ardente em seu peito, fazendo os olhos tornarem-se fulminantes e tomando toda a força de seus músculos para começar a se reerguer, estourando as cordas que o prendia e ressurgindo enquanto gotejava o sangue escuro e gosmento.

Seus agressores ficaram atônitos e apavorados ao ver o monstro imenso se levantar como se sequer houvesse sido atingido. Alguns correram aos berros, outros ainda tomados de ira tentaram golpear A Criatura mais uma vez, mas acabando por terem seus crânios esmagados, pescoços partidos e membros desmembrados, A Criatura atacava com a mesma facilidade com que se quebrava um graveto.

Tudo o que sobrou foi a terra embebida em sangue, misturado entre das pessoas dilaceradas e da Criatura ferida. Os pedaços de corpos estavam jogados por todas as direções, e os ainda vivos estremeciam de pavor dentro de suas casas com todo o horror trazido pelo monstro.

A Criatura arfava, sentindo a pele queimar pelos ferimentos e dos membros parecerem frouxos por conta das suturas desfeitas. Em algum momento, sua visão se embaçou pelas lágrimas que caíam de seu rosto, sentindo um profundo vazio e solidão a devorar sua alma condenada.

Pois apenas ela o compreendia, e naquele momento A Criatura só queria reencontrar aquela que havia lhe dado tão horrível vida.

Saiu do vilarejo cambaleando, uma de suas pernas começando a se desprender do corpo e ter que andar arrastando-se pelas colinas, manchando a grama e a terra com todo o rubro que o cobria. Gritos de dor e desolação que jamais sairiam se acumulavam em sua garganta.

Conseguiu chegar até o velho castelo de pedra um pouco antes do amanhecer, já rastejando o corpo misturado de carne, lama e sangue. Com dificuldade para manter-se em pé, esmurrou a porta dos fundos com suas mãos grandes, de maneira desesperada e sem parar até que finalmente fosse aberta pela doutora.

Mesmo que ajoelhada A Criatura chegava quase na altura dos ombros de Helga Rosenstein, e ao abraçar sua criadora, manchou o jaleco branco de terra e do sangue tanto do seu quanto do ceifado. As lágrimas caíam sem controle algum de seu rosto pálido como a neve, com os soluços enclausurados na garganta fazendo seu corpo inteiro estremecer de agonia. A doutora envolveu sua criatura com um dos braços enquanto acariciava sua cabeça com uma ternura que jamais havia tido, onde um sorriso singelo lhe cobria a face por baixo dos olhos cínicos e ardilosos.

– Eles o machucaram, minha criação? – Indagou em falsa surpresa, sentindo os braços da Criatura envolverem ainda mais o seu corpo numa tentativa desesperada para sentir alguma segurança. – Veja quanto sangue! Foram muito cruéis contigo, uma verdadeira vítima de grande injustiça. Mas é assim que eles tratam tudo que é diferente, querido. Por isso que deveria ter me escutado, eu sei o que é melhor para você e isso jamais teria acontecido se não fosse tão teimoso.

A Criatura ergueu seu rosto em direção ao de Helga Rosenstein, suplicando em silêncio com seus olhos leitosos e marejados para que pudesse ser perdoado por tamanha indisciplina e implorando para que consertasse seu corpo disforme.

– Criatura tola, sou a única pessoa que lhe compreende. – Disse secando uma lágrima que ameaçava cair de um dos olhos do experimento. – Mas o que posso fazer se não sou valorizada? Se prefere permanecer do lado de fora, que fique.

Um arrepio tenebroso passou por todo o corpo do monstro, que agarrou-se de forma ainda mais desesperada o corpo esguio da criadora, até a fazendo se desequilibrar por um instante, enquanto negava com a cabeça de forma repetitiva.

– Oh, então deseja voltar? Sabe, outros não seriam misericordiosos a esse ponto, mas você é importante demais para mim. Então lhe darei uma chance. – A doutora disse abaixando-se e pegando o rosto dA Criatura entre suas mãos, o encarando com um olhar evasivo e de uma seriedade agressiva em seus olhos cinzentos. – Que isso jamais se repita. Entendido?

A Criatura tomada por tamanho trauma se retesou diante das palavras tão duras em sua direção, mas prontamente assentiu de maneira submissa enquanto ainda chorava. Com sua silenciosa resposta, a Dra. Rosenstein deu um sorriso afável em sua direção, reerguendo-se e tirando de um dos seus bolsos a coleira de ferro, colocando novamente no experimento que permaneceu feito uma estátua.

- Ótimo. - Disse satisfeita, pegando em uma das mãos dA Criatura para guiá-la novamente pelo castelo, mas não deixando de dar um leve puxão em sua corrente – Agora vamos cuidar dessas feridas.

Dessa forma retornou de maneira mais sólida do que nunca o estranho e macabro vínculo entre Criadora e Criatura, marcado de ferro e sangue naquelas paredes frias de pedra do castelo Rosenstein. Com o monstro de Helga nunca mais questionando os dizeres da doutora.

[2488 palavras]

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