Segredos de Guerra

By AlexBitten

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O que você faria se descobrisse uma prova incontestável de que já viveu outra vida? Fugindo de um trauma do p... More

Unidade de Elite
Lembranças
Continuação da História

A Entrevista

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By AlexBitten

O carro dobrou a esquina e veio devagar, espantando um casal de pássaros que estava no asfalto se aquecendo nos raios do sol naquele início de manhã de outono. A motorista entrou à esquerda, parou diante de uma cancela, olhou para o letreiro escrito em um metal polido "Centro de Convivência Souto Lima".

O guarda uniformizado saiu da guarita com um tablet e olhou para o automóvel importado SUV esportivo novo em folha, de cor branca, design arrojado, com película escura nos vidros que impediam ver o seu interior.

O vidro do motorista desceu com um leve barulho e o guarda sorriu para a bela mulher que surgiu por trás do vidro, usando óculos escuros. O seu cabelo era claro e liso, o rosto era fino, em perfeita harmonia com o nariz e a boca delicada.

— Bom dia! – disse o guarda.

— Bom dia! — respondeu a jovem sorrindo.

— Até que enfim parou de chover e o sol resolveu sair.

— É verdade, há dias que não vejo o sol e um dia como hoje é uma benção. Deixe me apresentar, eu sou a doutora Caroline e tenho uma entrevista com a doutora Laura.

— Um momento, por gentileza.

O guarda olhou o tablet por alguns instantes.

— Doutora Caroline Guedert, entrevista às 09:00h com a doutora Laura. Sim doutora, sua reunião está confirmada. — Disse o guarda sorrindo.

— Obrigada.

Ele olhou no relógio e conferiu o horário.

— A senhora chegou cedo, ainda faltam vinte minutos para as 09:00h.

— Gosto de chegar um pouco antes, para compensar eventuais imprevistos.

— Pela placa do seu carro, percebi que a senhora veio da Capital. É bem longe daqui, doutora Caroline.

— Sim, é verdade.

— E para chegar neste horário, a senhora dirigiu a noite toda ou está hospedada em algum hotel na cidade?

— Confesso que dirigi a noite toda.

— É por isso que está usando esses óculos escuros assim tão cedo?

A jovem observou melhor o guarda a sua frente. Ele era um negro de cabelos grisalhos, nariz achatado e sorriso farto.

— Para dizer a verdade, sim, mas estou acostumada a dirigir grandes distâncias.

— Então deseja trabalhar conosco?

— Sim.

— Por acaso a doutora está concorrendo à vaga do doutor Michel?

— Sim, estou.

— Ele era um médico muito especial e todos nós sentimos muita saudade dele. Desde que aquela tragédia aconteceu, o Centro Médico Souto Lima procura alguém para substituí-lo. Muitos já foram entrevistados pela doutora Laura, mas ela ainda não escolheu ninguém, é muito exigente com os médicos que trabalham neste lugar.

Ela achou estranho aquele guarda falar com ela daquela maneira, mas a forma com que conversava, sua simpatia e seu sorriso faziam com que ela parecesse conhecê-lo há muito tempo.

— Eu não conheci o doutor Michel pessoalmente, mas li alguns de seus livros e, sem dúvida ele era um excelente médico. A sua morte foi uma grande tragédia.

O guarda fechou o rosto lembrando do médico, de sua história e da dor de sua perda.

— Tem toda razão. Sabe de uma coisa, doutora Caroline, ele era um bom homem, um dos melhores que já passou por aqui e todos os funcionários e pacientes sentiram muito quando aconteceu aquela tragédia. Desculpe-me perguntar, doutora Caroline, mas a senhora gosta de velhos? É que o Centro Souto Lima cuida de velhos e pessoas especiais, e o doutor Michel cuidava dos velhos muito bem. Velhos não, quero dizer, dos pacientes idosos.

— Sim, eu gosto de cuidar de pacientes idosos.

— A doutora já esteve aqui antes?

— Não, é a primeira vez.

— Certo, mas não se preocupe. Para chegar ao estacionamento, basta seguir em frente, dobrar na primeira entrada à direita. Depois terá que caminhar um pouco. Foi uma decisão da doutora Laura, que projetou este lugar junto com seu marido, o falecido doutor Ítalo, que Deus o tenha. A senhora chegará ao prédio principal, que fica a sua direita, após passar pelo Grande Jardim, como costumamos chamar. Ele ocupa boa parte do terreno, tem árvores nativas, bancos, um belo gramado e uma fonte. Eles projetaram o Grande Jardim para os pacientes poderem caminhar ao sol, fazerem exercícios, essas coisas. Após passar por ele, a doutora chegará ao prédio principal e, ao entrar pela porta de vidro, encontrará bem à frente, nossas recepcionistas. Elas lhe indicarão como chegar a sala da doutora Laura.

— Obrigada. – Disse a jovem doutora para o guarda – a propósito, como é o seu nome?

— Mário. O meu nome é Mário, o mesmo do meu avô. Minha mãe dizia que me deu o mesmo nome, porque o meu avô era um homem que gostava de conversar com as pessoas.

— Sabe Mário, acho que o seu nome lhe cai muito bem.

— Eu agradeço, doutora Caroline, e desejo sorte em sua entrevista.

— Obrigada.

O guarda ficou observando o veículo se afastar e seu sorriso terminou no exato momento em que o carro partiu. Ele caminhou até a guarita, pegou o telefone e ligou para alguém.

— Ela acabou de passar.

A doutora Caroline dirigiu o carro pela estrada interna do complexo médico até o estacionamento, onde havia uma dezena de carros estacionados. Pegou uma pasta com documentos, sua bolsa e ligou o alarme do veículo. A bela mulher vestia uma blusa branca de colarinho francês sobre um tailleur bege comportado que ia até os joelhos e um scarpin de salto baixo, da mesma cor de sua roupa. Ela ajeitou a pequena corrente de ouro com um crucifixo no pescoço, passou as mãos nos dois pequenos brincos no formato de um pássaro voando e conferiu o horário no relógio de prata delicado que usava no pulso direito.

Caroline caminhou por uma calçada em meio a um gramado extenso e bem cuidado, com árvores bem aparadas e plantadas em locais estratégicos. Havia vários bancos de madeira pintados de verde, dispostos de maneira que metade ficava sob o sol e o restante debaixo das árvores. Arbustos pequenos e bem cuidados haviam sido plantados ao longo da calçada. O cheiro de terra e da grama molhada encheram os seus pulmões, e ela viu alguns pacientes caminhando pelo gramado, uns sendo conduzidos por enfermeiras em cadeiras de rodas e outros sentados em bancos, folheando revistas ou lendo livros.

Ela parou diante do grande prédio de três andares, robusto e bem conservado, com as vigas largas de concreto do corpo principal do edifício em destaque, detalhes em perfis de alumínio pintados eletrostaticamente de branco, encaixados de forma harmônica e preenchidos por grandes placas de vidro. A porta se abriu automaticamente e ela entrou na ampla recepção, com teto alto e luminárias de led. A decoração era minimalista, com sofás brancos, aparadores, quadros com telas de natureza morta e abstrata. Ela ia se dirigir ao balcão onde havia duas secretárias quando percebeu que uma mulher que se aproximava com vários prontuários os deixou cair, espalhando todos os papéis pelo chão.

— Meu Deus!

— Deixe-me ajudá-la. — Disse abaixando-se e começando a recolher os papéis.

— Obrigada, mas eu sou meio desastrada mesmo.

— Tudo bem, não se culpe, isso acontece com qualquer um. Hoje em dia, todos nós temos o hábito de querer fazer as coisas mais depressa do que podemos e, por isso, algumas delas não saem bem como deveriam.

Elas levantaram ao mesmo tempo. A mulher devia ser uns dez anos mais velha que Caroline, vestia um jaleco branco, tinha quase a mesma estatura, os cabelos castanhos eram curtos, cortados um pouco acima dos ombros. O rosto era redondo terminando em um queixo pequeno, os olhos tinham traços orientais, o nariz era fino e arrebitado, e logo abaixo vinha uma boca larga com lábios finos.

— Meu nome é Marcela, prazer em conhecê-la.

— O meu é Caroline.

— Você veio visitar alguém, Caroline?

— Na verdade, eu vim atrás de uma oferta de emprego.

— Você é médica?

— Sim.

— Está tentando conseguir a vaga do doutor Michel?

— Sim.

— Não quero desanimá-la, mas não será fácil. Mais de dez médicos já tentaram, mas a doutora Laura, que é proprietária deste lugar, rejeitou todos. Eles eram grandes amigos, alguns dizem que tinham um caso, outros que era apenas um amor platônico, mas nada foi provado e eles sempre foram muito discretos. O doutro Michel era um homem muito especial e todos nós que o conhecíamos, também sofremos muito. Eu lhe desejo sorte, doutora Caroline.

— Obrigada, Marcela, acho que vou precisar.

Caroline caminhou até parar diante da recepção, cuja secretária, uma mulher que já passava dos cinquenta anos, usando um vestido verde, com um decote "V" generoso, se aproximou.

— Bom dia.

— Bom dia, minha jovem, em que posso ajudá-la?

A mulher era alta, tinha um corpo esbelto, com cabelos castanhos compridos que combinavam com seu rosto largo e carismático.

— Tenho um encontro marcado com a doutora Laura, às 09:00h.

Ela estava bem maquiada, abriu um sorriso largo com a boca pintada de batom vermelho vivo, ajeitou os óculos e consultou a agenda no computador que estava instalado no balcão.

— Doutora Caroline Guedert?

— Sim.

— Pegue aquele elevador ali. — Disse apontando para o lado – e vá ao terceiro andar. Quando sair, caminhe pelo corredor até o final e então dobre à direita. Não tem como errar.

— Obrigada.

— Doutora Caroline?

— Sim.

— É para a vaga do doutor Michel que está aqui?

— Sim.

— Posso lhe dar um conselho?

— Claro.

— Tire os óculos, a doutora Laura gosta de olhar nos olhos das pessoas quando está conversando.

— Ah, sim, claro! Que descuido o meu! — Disse retirando os óculos e mostrando duas olheiras causadas por dirigir toda a noite.

— Nossa! Querida, você é muito bonita, mas seu olhar está péssimo.

— Eu dirigi a noite toda, não deu tempo para retocar a maquiagem.

A mulher olhou no relógio, abriu uma gaveta e retirou um estojo de maquiagem.

— Tome, pode usar. O banheiro é ali e você tem três minutos.

Ela pegou o estojo, ficou pensativa por alguns instantes e depois sorriu para a mulher e agradeceu-lhe.

Ela foi ao banheiro e voltou com uma aparência bem melhor. Ao devolver o estojo de maquiagem, havia uma xícara de café no balcão.

— Agora sim, está bem melhor. Eu trouxe um pouco de café, mas não coloquei açúcar. Beba, irá lhe fazer bem.

— Obrigada, é muito gentil da sua parte.

— A doutora Laura tem o açúcar como um inimigo mortal e de tanto me cobrar eu me acostumei a beber café sem adoçá-lo, mas se quiser, posso trazer açúcar para você.

— Não, está ótimo, eu também bebo café sem açúcar.

Ela tomou alguns goles.

— Que indelicadeza a minha, eu não sei o seu nome.

— Lúcia, eu me chamo Lúcia.

Caroline se despediu, caminhou até entrar no elevador e apertou o botão do terceiro andar.

Quando a porta se fechou, Marcela aproximou-se de Lúcia.

— O que achou?

— Eu simpatizei com ela.

— Eu também, e as informações sobre ela dizem que é muito competente, ela pertencia à equipe do renomado doutor Salomão, e ele não poupou elogios quando conversei com ele. Mas é delicada demais, Marcela, parece uma boneca de porcelana e, infelizmente ela não tem a menor chance de conseguir a vaga do doutor Michel.

— Você acha?

— A doutora Laura irá fritá-la em um caldeirão de óleo fervente.

A doutora Caroline conferiu o horário e quando as portas do elevador se abriram, ela caminhou por um largo corredor. O piso era revestido de porcelanato em tom de areia, as paredes eram de concreto até a metade e depois eram de vidro fosco, mostrando salas, consultórios e ambulatórios. Alguns médicos e enfermeiros conversavam em uma das salas e olharam para ela com curiosidade e interesse.

Caroline chegou no final do corredor e dobrou a direita, conforme Lúcia havia indicado. A sala não tinha as paredes de vidro, havia uma porta de madeira de lei e um letreiro escrito em letras douradas "Doutora Laura".

Ela respirou fundo, bateu à porta e entrou.

— Bom dia.

A sala era ampla, bem decorada, com filetes de madeira clara e escura nas paredes e três quadros com fotografias em preto e branco de florestas cobertas de neve. Havia um sofá de três lugares de couro branco no canto, uma mesa de centro de vidro com um vaso de flores e um aparador com alguns porta-retratos. A escrivaninha ficava no fundo da sala, iluminada pelos raios do sol, porque as cortinas de um tecido estampado estavam recolhidas e amarradas por uma fita larga e delicada. Atrás da escrivaninha, havia uma mulher sentada em uma poltrona grande, com os braços cruzados sobre o tampo de vidro. A luz do sol iluminava a mulher por trás e não permitia ver a sua face.

— Bom dia. Entre, doutora Caroline, eu estou esperando por você. — Disse com uma voz fria, grave e pausada.

— Ela entrou e caminhou sobre um tapete persa, parando diante da escrivaninha.

— Sente-se, por favor.

Caroline sentou-se, colocando a bolsa e a pasta no colo, e conseguiu ver os detalhes da mulher a sua frente. Ela vestia um terno preto com uma camisa vermelha, que combinava com um lenço da mesma cor amarrado no pescoço. Os cabelos eram grisalhos, o rosto tinha rugas que lhe davam uma aparência forte e decidida, e essa impressão era ampliada por seus olhos azuis faiscantes. O nariz era pequeno, contrastando com a boca de lábios estreitos, pintados com um batom rosa claro. As unhas eram pintadas na mesma cor e no pulso esquerdo havia dois braceletes finos de ouro e um relógio valioso de uma marca que ela cobiçava há muito tempo.

Em um primeiro impulso, a doutora Caroline ia estender o braço para apertar sua mão, mas depois desistiu da ideia, porque a doutora Laura não havia movido um músculo sequer. Os olhos azuis percorreram o seu corpo, estudando sua roupa, cabelo, maquiagem, e ela podia jurar que até mesmo a posição em que estava sentada estava sendo avaliada.

— A doutora gostaria de beber alguma coisa?

— Não, obrigada, doutora Laura, eu já bebi um café na recepção.

— Sem açúcar, é claro. Eu presumo que uma médica com um mínimo de conhecimento deve saber sobre os malefícios do açúcar e evitá-lo.

— Sim, eu não uso o açúcar há algum tempo. – Disse lembrando da informação preciosa de Lúcia.

— Muito bem. Podemos iniciar a sua entrevista?

— Claro.

— O que a doutora achou deste lugar? Acredito que tenha vindo caminhando, passou pelo jardim, pela recepção e pelo corredor onde ficam as salas dos médicos?

— Sim, eu passei por esses locais. – Disse sorrindo meio sem jeito.

— Muito bem. E qual a sua impressão por onde passou?

— Achei o jardim, ou melhor, a área externa grande, arborizada, com planejamento, o que indica que no inverno é agradável para ficar ao sol e no verão deve ser mais agradável ainda ficar sentado nos bancos que ficam na sombra das árvores. A recepção é ampla, o que facilita a locomoção de cadeiras de rodas, macas ou pacientes com muleta. Já este andar me pareceu com um design característico dos consultórios onde já trabalhei, com exceção das paredes de vidro, e eu confesso que achei bem interessante, porque apesar de ser um pouco mais difícil de climatizar do que um único ambiente, mas na minha opinião, é melhor, porque permite mais privacidade.

— E quanto aos meus funcionários? Você chegou a falar com algum?

— Sim, falei com três dos seus funcionários.

— E qual a sua impressão?

Caroline pensou em falar que o guarda fazia perguntas demais, as enfermeiras eram desastradas e fofoqueiras e que a secretária, além de se vestir com roupas inadequadas e reparar em suas olheiras, ofereceu um estojo pessoal de maquiagem, mas, em seguida, lembrou-se do sorriso e da simpatia do guarda, de que a enfermeira poderia estar sobrecarregada e que a secretária era uma pessoa bondosa e apenas quis ajudá-la.

— Seus funcionários são felizes por trabalhar aqui, trabalham com afinco e adoram ajudar as pessoas. — respondeu encarando os poderosos olhos azuis.

A doutora Laura absorveu a resposta e continuou.

— Diga-me, doutora Caroline, o que sabe sobre este local?

— Bem, este hospital...

— Não somos um hospital.

— Desculpe, — respondeu tentando corrigir — é o termo que achei mais apropriado.

— Mas está enganada, esse lugar é um centro de convivência para idosos e pacientes especiais, mas não é um hospital. Não temos pronto atendimento e os pacientes que estão aqui precisam preencher uma série de requisitos para serem aceitos. Não basta somente querer ou ter dinheiro para estar aqui, claro que são questões fundamentais, "sine qua non", mas é necessário que este local o aceite.

— Eu entendi. — respondeu automaticamente.

— Perguntarei novamente, o que sabe sobre este lugar?

Caroline respirou fundo e sentiu o cansaço por ter dirigido a noite toda, pois o aviso para a entrevista tinha sido repentino e por isso ela não tinha conseguido um voo. Pensou em rejeitar, mas desejava trocar de emprego o mais rápido possível, seria o primeiro passo para mudar de vida. Ela já estava decidida a sair da Capital e era por isso que dirigira a noite toda e agora estava ali, exausta, procurando colocar as ideias em ordem para responder aos questionamentos da melhor forma possível.

— O Centro de Convivência Souto Lima foi fundado pela senhora e por seu marido, o doutor Ítalo. É um local que recebe pacientes com idade avançada e funciona como um centro de convivências para lazer e tratamento de doenças. O local possui geriatras em diferentes especialidades e é referência internacional no tratamento de idosos. Ele foi parcialmente destruído por um bombardeio durante a Guerra, e seu marido e fundador, o doutor Ítalo Souto Lima, perdeu a vida nesse dia. O lugar foi reconstruído pela senhora, sendo de grande importância para o tratamento dos soldados feridos, e foi usado no desenvolvimento de novos medicamentos, como, por exemplo, a Merocilina. Esse foi apenas um dos medicamentos que foram desenvolvidos neste lugar durante a Guerra em parceria com a Universidade Federal. É o que sei sobre este centro e por isso estou aqui, porque gostaria de trabalhar em um lugar como este. Eu me candidatei para preencher a vaga deixada pelo doutor Michel, o renomado médico que morreu em um acidente de automóvel há três meses.

A doutora Caroline percebeu que ao dizer o nome de seu marido, a doutora Laura permaneceu imóvel, mas ao falar o nome do doutor Michel, seus olhos se moveram e ela balançou levemente a cabeça, então concluiu que ele tinha sido mais do que um funcionário.

— Muito bem, isso basta.

— Eu sei tudo sobre a senhorita, doutora Caroline — disse tamborilando as pontas dos dedos na pasta — desde a época em que entrou na Universidade.

— Então, se estou aqui, é porque o meu currículo agradou à senhora?

— Sim e não, eu diria apenas que cumpriu os requisitos mínimos. – Ela abriu a pasta onde havia alguns papéis. — Eu sei, por exemplo, que você veio de uma família humilde, estudou em colégio público e passou no vestibular de medicina em primeiro lugar. Ao se formar, foi para Paris e fez mestrado e doutorado na Université Paris Descartes, e então retornou para trabalhar no Hospital Universitário Federal por três anos, na ala geriátrica, desenvolvendo um papel relevante junto aos pacientes que atendeu.

Ela cruzou os braços sobre a pasta.

— Estou correta?

— Sim, está correta.

A doutora Laura lançou um olhar felino.

— Diga-me, doutora Caroline, a senhorita acredita que alguém na minha posição, que precisa decidir uma importante contratação com esta, irá se basear apenas em um currículo?

— Não, claro que não, somente um currículo não, e por isso estou aqui, para poder apresentar as minhas habilidades.

— As suas habilidades, baseadas nas minhas pesquisas, demonstram ser mais do que suficientes para assumir o cargo que está vago.

— Então quer dizer que estou contratada? – Perguntou ansiosa e depois se arrependeu por ter sido tão direta.

— Quando eu disse que pesquisei a sua vida, quero dizer, toda ela.

Um calafrio percorreu a espinha da doutora Caroline.

— Eu preciso fazer isso, porque o cargo que está vago é muito especial para este lugar. Sei que algo aconteceu recentemente em sua vida, algo muito grave, que a fez abandonar uma carreira promissora em um renomado hospital. Sei das suas capacidades e também que deixou a respeitada equipe do doutor Salomão e, para mim, isso mais parece um suicídio profissional. A questão é simples, doutora Caroline, a senhorita está buscando uma nova oportunidade ou está fugindo por...

— Basta! – Caroline disse levantando-se. – A senhora tem todo o direito de pesquisar o meu passado profissional, eu faria o mesmo se estivesse no seu lugar, mas não tem o direito de pesquisar a minha vida particular! A senhora não me conhece e eu não permitirei que faça comentários sobre assuntos que não lhe dizem respeito! A senhora não tem esse direito! Sim, eu tive um problema particular e sim, eu quero mudar de emprego! É por isso que estou aqui! Eu vim atrás de uma oportunidade, que é uma necessidade para a senhora, mas vejo que é impossível! E sabe por que é impossível, doutora Laura?

— Não, não sei. Poderia esclarecer para mim por gentileza?

— A senhora não deseja substituir o doutor Michel! Ele era um ótimo profissional, um escritor renomado e seus trabalhos estão espalhados pelo mundo! Mas ele sofreu um acidente, está morto e todos neste lugar já assimilaram isso!

Caroline colocou as duas mãos na mesa.

— Todos, menos a senhora!

A doutora Laura permaneceu em silêncio.

— Eu não dirigi a noite toda para que alguém que eu não conheço faça qualquer comentário sobre a minha vida particular, isso eu não permitirei! E além disso... Ahhh... passar bem, senhora Laura!

Ela pegou as suas coisas e se dirigiu para a porta.

— O emprego é seu. – Disse a doutora Laura sem alterar a voz.

Caroline parou e se virou para a mulher.

— O que foi que disse?

— Que o emprego é seu, se desejar, a menos, é claro, que não o queira mais ou que não aceite o valor que tenho a oferecer, mas acredito que a minha oferta será melhor do que o seu emprego atual.

— Mas eu não entendi! Como assim, o emprego é meu?

Ela pegou o telefone e digitou alguns números.

— Cibila, por favor, mande-os entrar.

— A porta se abriu e entraram o guarda, a recepcionista e a enfermeira.

— Mas...

— Acalme-se, — disse a doutora Laura — eles a conhecem, mas há uma necessidade urgente em refazer as apresentações. Na verdade, este é o doutor Mário, meu supervisor, esta é a doutora Lúcia, a nossa psicóloga e esta é a doutora Marcela, a gerente do setor de Enfermagem. A senhora pode estranhar, mas foi entrevistada por mim e por eles. Os candidatos que chegam até aqui obviamente passaram na fase de análise da sua experiência profissional, mas não foram aprovados, porque reclamaram que o guarda faz perguntas pessoais e fala demais. Outros não ajudam uma pessoa que comete um erro, perdem tempo com fofocas ou não aceitam usar algo que já foi usado por alguém. Isso, é claro, sem contar o consumo do açúcar.

A doutora Laura levantou uma das sobrancelhas.

— Agora, diga-me, doutora Caroline, como é que um médico que pensa e age dessa maneira pode cuidar adequadamente de uma pessoa idosa?

— Então tudo não passou de um teste?

— Sim, disse o doutor Mário. Todos os candidatos são testados desde que passam pela portaria, e você foi a única que conseguiu passar por todos eles.

— E nós estamos muito felizes. – Disse a doutora Lúcia.

— Seja bem-vinda. — falou a doutora Marcela.

— Então, — disse a doutora Laura — aceita trabalhar conosco?

— Eu aceito. — Respondeu a doutora Caroline intrigada com o método nada convencional criado pela doutora Laura.

— Muito bem. Doutora Marcela, por gentileza, poderia levá-la até o departamento pessoal para que possam instruí-la sobre os detalhes de sua admissão.

— Venha, por favor, queira me acompanhar.

Caroline se virou para a mulher atrás da mesa.

— Obrigada, doutora Laura.

— Pelo quê?

— Por me aceitar.

— Não me agradeça, eu estou apostando em você, doutora Caroline e eu espero que prove que fizemos a escolha certa em contratá-la.

— Venha, doutora Caroline. — Disse a doutora Marcela.

Assim que as duas mulheres saíram, o doutor Mário e a doutora Lúcia aproximaram-se da mesa da doutora Laura.

— Ela foi uma boa escolha. – Afirmou o doutor Mário.

— Eu acredito que ela tem o perfil que estamos procurando. – Concordou a doutora Lúcia.

— Pode ser, — disse a doutora Laura — mas acredito, ou melhor, tenho certeza de que ela não conseguirá se adaptar e, em menos de um mês, irá embora.

— Por que você acha isso? — Perguntou o doutor Mário.

— Porque ela está destruída por dentro, da mesma forma como os bombardeios fizeram com este lugar durante a Guerra.

— Mas este lugar foi reconstruído. – Afirmou a doutora Lúcia.

— Esse é o ponto de interrogação que existe em minha mente neste momento. Será que a doutora Caroline terá forças para se reconstruir?

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