TODA QUINTA-FEIRA

By MarceloSPontes

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Neste rápido conto você vai conhecer Celso, um sujeito que detesta mudanças. Toda quinta-feira Celso cumpre... More

TODA QUINTA-FEIRA

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By MarceloSPontes

Celso acordou animado. Era quinta-feira.

Toda quinta-feira ele acordava assim. Era como se os demais dias da semana fossem um simples pedágio que ele devia pagar para poder desfrutar das quintas. Recém-desperto, sentou-se na cama por uns instantes, e com olhos embaçados depois do sono calçou os chinelos. Foi até a porta de entrada e lá encontrou sobre o capacho o jornal do dia. Com setenta e dois anos era difícil se acostumar às novas tecnologias, por isso preferia o jornal em modelo tradicional. Um jornal feito de papel e tinta, sem curtidas e comentários de terceiros que ele nem conhecia, com letras e fotos que não mudavam de lugar, um jornal tradicional era sempre sua opção mais segura. Ele preferia tudo assim.

Seguindo o ritual de todo dia, voltou para a cozinha e preparou o café da manhã. Qualquer vida é sempre um conjunto de ações mais ou menos previsíveis e sequenciais. Ajustar o filtro de papel, colocar o pó, ferver a água, despejar a água sobre o pó, aquecer as xícaras. Para Celso a vida era sempre previsível. Ele não conseguiria viver uma vida de imprevistos, de improvisos. Preferia manter-se assim, na rotina do dia a dia onde se sentia seguro e confortável. Era o conforto que lhe trazia felicidade. Passadas as intemperanças da juventude, vivia desse modo já há 72 anos, e não via motivo para mudar.

Depois do café sentou-se à mesa na varanda envidraçada que mantinha as alterações do clima no lado de fora e folheou o jornal. Foi direto até a página da agenda do dia. Lá estava a chamada. O formato era diferente, mas em essência era quase a mesma de 50 anos atrás anunciando o show musical naquela noite. Desde que o Marquês do Pombal havia tornado o ensino da língua portuguesa obrigatório em 1759, muitas mudanças ocorreram na forma de escrever. Mudanças de qualquer tipo não eram o forte de Celso. Para sua tristeza, os últimos 50 anos haviam sido repletos de mudanças: ontem já não tinha h quando ele nasceu, e hoje não havia mais dois e em têm, super-homem conservara seu hífen, mas supermulher o perdera. Ele, o piloto, a moça e o governo perderam o circunflexo, e a linguiça perdeu a trema.

Sorriu internamente. Celso não era dado a sorrisos. Ele leu certa vez que sorrir era um erro do cérebro, e não havia qualquer teoria que explicasse aquela manifestação involuntária. Nunca mais riu. Preferia conter-se, a contenção trazia o padrão, e o padrão era seu mantra de vida. Mas aquele pequeno texto de quatro linhas em Times New Roman grafado no jornal o fazia sorrir por dentro. Era hoje, quinta-feira, mais uma delas, um dia abençoado, e se Celso acreditasse em alguma divindade (ele não podia acreditar porque divindades costumavam improvisar demais na elaboração dos resultados), certamente a quinta-feira seria seu dia santo.

Passou a manhã e a tarde envolvido em seus rituais. Foi ao barbeiro logo no início da manhã, não antes de tomar um banho de exatos oito minutos, tempo suficiente para lavar todas as partes de seu corpo numa dinâmica bem ordenada e estabelecida, uma espécie de balé russo de movimentos coordenados. E depois mais quatro minutos para secar-se. Sempre iniciando pela cabeça e descendo até os pés, pois obviamente a gravidade havia de auxiliá-lo fazendo a água escorrer também de cima para baixo.

Vestiu uma roupa sóbria como lhe parecia adequado para ir ao barbeiro. Presenciava muitos homens indo ao salão de bermudas ou chinelos, como se fazer a barba ou cortar o cabelo fosse o mesmo que tomar sol em Copacabana ou surfar no Arpoador. Achava aquilo um desrespeito ao profissional, por isso sempre se vestia com esmero para uma sessão de barba e bigode. Ao chegar ao salão ninguém estranhou. Em circunstâncias normais, qualquer barbeiro não entenderia porque aquele senhor de cabelos brancos meticulosamente cortados e penteados estaria ali. Mas era quinta, e seria estranho para o barbeiro que o atendia há 40 anos se Celso não aparecesse exatamente às nove horas e vinte minutos da quinta.

Ao sair parou na padaria e tomou um café expresso acompanhado por um pão de queijo. A padaria havia passado por diversas reformas, tinha novos balcões que chegaram com os novos donos há uns dez anos atrás, um novo letreiro de letras douradas, mas o que importava neste caso era o referencial geográfico, não os detalhes. Celso sentava na mesma mesa voltado para a avenida e nem sequer via os carros passarem, pois seu olhar buscava lembranças da juventude distante, e assim, puxando da memória se lembrava da primeira vez em que a vira.

Tinha vinte anos quando os amigos o convidaram para ir até um bar onde havia música ao vivo e diziam se apresentar uma excelente cantora. Nesta época Celso ainda não havia descoberto que o improviso era perigoso, e aceitou. Era um bar pequeno, pouca luz. Casais distribuídos pelas mesas com quatro lugares e cadeiras de madeira, um pequeno palco onde somente três músicos muito pequenos caberiam e ainda conseguiriam tocar. Garçons circulavam tranquilamente, e uma atmosfera agradável tomava o lugar encoberto por uma leve névoa esfumaçada no tempo em que se podia fumar em qualquer lugar. Pediram cervejas e conversaram sobre os assuntos do dia. A música também iniciou, primeiro os músicos ensaiaram alguns solos e então ela entrou.

A primeira vez que Celso a viu achou que não suportaria o turbilhão que sentiu em seu peito. Foi como se tudo o que ele ouvira falar sobre o amor de um instante para o outro houvesse se materializado. O amor não era cruel, não era efêmero, não era sofrido. O amor era paciente, bondoso e persistente. O amor era aquela mulher.

Ela usava um longo vestido bordô colado ao corpo com um decote que permitia ver os seios na medida perfeita, deixando que a imaginação completasse o desenho, e a imaginação de Celso completou-o com exatidão. A cintura afunilada e os quadris proporcionais, sandálias tão altas em saltos tão finos que ela mais parecia flutuar do que andar. Levantou-se de uma mesa que ficava do outro lado do bar e desfilou pelo salão até o pequeno palco. Os músicos pareceram diminuir quando sua grandeza se fez presente diante do microfone. Palmas e assovios foram ouvidos, mas Celso não conseguiu mover sequer um músculo, que dirá assoviar ou bater uma palma.

E ela cantou.

Celso entendeu o dilema de Ulisses amarrado ao mastro ouvindo o canto das sereias, ainda que inebriado, sentiu-se insatisfeito. Queria mais, queria estar perto dela, e tal qual Ulisses, tentou se soltar das amarras, mas não conseguiu. A voz era linda, rouca, melodiosa e afinada. Movia-se com sutileza e sensualidade no minúsculo espaço do palco enquanto acompanhava os compassos com a simplicidade de quem conversa, fazendo com que no salão do bar não se ouvisse nada que não fosse o bater ritmado dos instrumentos e aquela voz de divindade preenchendo o espaço vazio. Assim foi por uma hora inteira. Ao final Celso aplaudiu, saindo do transe em que se colocara. Levantou-se juntamente com todos e efusivamente manifestou seu apreço por aquela moça de vestido bordô colado ao corpo, com cintura fina, de seios e quadris fartos, equilibrada sobre o maior salto que ele já vira em uma sandália cheia de brilhos. Estava apaixonado.

Ao final do show pediu ao garçom informações sobre a mulher. O garçom respondeu com a displicência de quem já fora interrogado inúmeras vezes da mesma maneira, mas garantiu que todas as quintas ela fazia shows naquele bar. Deste dia em diante, por cinquenta anos, Celso jamais mudou sua rotina de quinta-feira.

Esta era mais uma. Passou a tarde envolvido em atividades triviais, escrevendo uma nota aqui outra ali, afinando alguma coisa, organizando suas pautas. Quando se aproximou o horário do show, já à noite, preferiu ir de ônibus. Ela sempre ia de carro, ele sabia, mas ele preferia tomar o ônibus. Vestiu seu terno cinza escuro, a camisa branca de um branco inimaginável, abotoou o colarinho e optou por uma gravata azul escura. Tentou o nó duas vezes, mas insistiu em fazer sozinho, até que na terceira ficou perfeito. Conferiu os trocados na carteira e saiu.

O ônibus passava sempre no mesmo horário às quintas-feiras. Às vezes havia um atraso de alguns minutos, e uma única vez por mais de meia hora, o que obrigou Celso a ir de táxi. Mas fora uma única vez. Antigamente o motorista era sempre o mesmo e conhecia Celso, tanto que certo dia chegou até a esperá-lo parado no ponto, pois Celso sofrera um acidente e estava com uma perna engessada, demorou mais do que o normal manquitolando agarrado às muletas. Mas ultimamente os motoristas trocavam como notas numa música, e Celso nunca sabia quem seria seu condutor na próxima quinta.

Sentou-se no lugar mais próximo possível da saída, como era sua regra, e desceu no ponto onde precisaria caminhar apenas cento e cinquenta metros até o bar. Ao passar pela rua viu o carro dela estacionado no pátio e permitiu-se um sorriso interior, um sorriso carregado de lembranças.

Dentro do bar as coisas haviam mudado. Depois de tantos anos ela obviamente havia se apresentado em muitos locais diferentes, e agora nos últimos cinco ou seis anos cantava naquele estabelecimento todas as quintas. Era um público mais ou menos cativo. Pessoas que conheciam sua performance e a seguiam onde fosse, ou pessoas indicadas por outras pessoas que um dia a ouviram cantar. Mas parte do público também era de amigos, colegas e conhecidos, e ainda havia Celso, sempre. Ele entrava sem falar com ninguém e sentava em sua mesa previamente reservada ao fundo, porém com uma vista direta do palco, mas nunca na frente. O garçom nem precisava perguntar para saber o que ele pediria para beber, um uísque duplo em copo alto com gelo à parte. Algumas pessoas acenavam levemente para ele, que respondia silencioso e em movimentos quase imperceptíveis da cabeça.

E em determinado momento as luzes diminuíram e Mariana levantou de sua mesa, como sempre fizera, e caminhou até o palco sob aplausos, gritos e assovios. Celso constatou que ela havia mudado. Não tinha mais a cintura mínima, e os seios perderam o vigor daquela primeira vez em que ele a viu. Mas continuava linda. O vestido era azul escuro, como a gravata de Celso, e os saltos eram mais baixos, mas ainda altos. Ela não perdera a grandeza, a beleza nem a elegância. O tempo cobrara de Mariana o preço da existência, e ela pagava com altivez. Deslizou até o palco. Celso sentiu o coração disparar. Sempre era como se fosse a primeira vez. Seus olhos quase se encheram d'água quando trocaram um breve olhar, ela já sobre o palco. Cinquenta anos. Todas as quintas-feiras e ele sempre esteve lá, onde quer que ela estivesse.

Em todos esses anos sempre pensou em subir ao palco e beijá-la. Arrebatá-la em seus braços e mostrar a todos que eles haviam sido feitos um para o outro, que ela lhe pertencia. Muitas vezes quis dar-lhe um enorme buquê de flores após uma apresentação, sair de mãos dadas pela porta do bar, beijar sua boca como se fosse o primeiro beijo. Abrir publicamente um champanhe e fazer amor no camarim. Mas não. Nunca havia feito nada disso. Tudo não passava de desejos.

Celso sabia que passaria a próxima hora embevecido pela beleza cativante daquela mulher e sua voz rouca e harmoniosa. Sabia que não teria coragem de expor seus sentimentos eternos diante de tanta gente. Sabia que não queria seu imenso amor publicamente declarado. Contentava-se em estar ali, e em saber que ela estava destinada a ser dele. E ao final do show, sairiam por portas diferentes, sem mãos dadas, sem beijos efervescentes, sem rosas champanhe ou sexo no camarim.

Quando o show terminou ela agradeceu e se recolheu por uma porta por detrás do pequeno palco. Celso não saiu imediatamente. Olhou para o relógio. Sairia somente doze minutos depois que ela desaparecesse pela porta do camarim. Ele sabia que este era o tempo necessário para que ela trocasse os sapatos, colocasse o casaco, bebesse um copo d'água e saísse para pegar o carro no estacionamento onde acenderia um cigarro e fumaria com tragadas longas aproveitando o frescor da noite. Fora assim que ela fizera na noite em que ele a viu pela primeira vez.

Doze minutos depois de ela desaparecer do palco ele saiu, e como era de se esperar, lá estava ela fumando encostada no carro. Sobre o vestido azul escuro trajava um pesado casaco de frio, trocara as sandálias de salto por sapatilhas confortáveis. Celso caminhou hesitante em sua direção, e quando estava a apenas alguns metros ela sorriu:

"E então?", ela perguntou. "Perfeita, como sempre", ele respondeu também com um largo sorriso. Beijou-a na boca de uma maneira trivial, mas lenta e apaixonada, ela lhe entregou as chaves do carro, tomaram assento ela no acompanhante e ele na direção. "Vamos comer alguma coisa?" Celso perguntou enquanto manobrava para sair do pátio. "Não, deixei um sopa pronta antes de sairmos", ela respondeu.

No dia em que Celso viu Mariana pela primeira vez saiu doze minutos depois dela desaparecer no camarim e a encontrou do lado de fora do bar fumando. Conversaram por alguns minutos e saíram para jantar. Em três meses estavam morando juntos. Em dois anos se casaram. No quarto ano nasceu Camila, e no Sexto, Daniel. Ela seguira a carreira de produtora musical, nunca abrindo mão de cantar pelo menos uma vez por semana no bar da família, antes de seu pai e hoje comandado pelo caçula Mariano, que nasceu no sétimo ano de casamento. Celso seguira sua vocação de maestro e regia a filarmônica local. Era ele quem fazia os arranjos para Mariana cantar toda semana. Depois de cinquenta e dois anos de dedicação, respeito e amor, não era possível saber quem amava mais ao outro, se Celso ou Mariana. Certo era para eles que tudo começara numa quinta-feira num bar onde Celso fora levado pelo improviso de alguns amigos, e certo era também que para todo o sempre toda quinta-feira seria um dia especial dedicado ao amor.

Em se tratando de amar, Celso era totalmente avesso às mudanças.


*END

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