Anamélia

By AlecSilva

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Anamélia
Uma pedra no meio do caminho
O gnomo do limoeiro
A rainha dos ogros
Fogo no jardim
Um toque de ouro
O cálice quase cheio
Um sacrifício necessário
As reticências do conto

O estranho casal do cemitério

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By AlecSilva

O escolhido, dependendo da natureza da história em que está envolvido, pode ser o príncipe que enfrenta dragões e tiranos para salvar uma princesa enclausurada no alto de uma torre; ou o camponês destinado a ser rei.

— Sou a escolhida para libertá-lo?! — assustou-se a jovem de olhos heterocromáticos,  olhando para o objeto imóvel que dialogava com ela.

— Sim, exato.

— E como eu poderia fazer isso?

— Eis ai a necessidade da realização de sete tarefas. Cada uma permitirá recolher um item que ajudará num ritual para que eu alcance a liberdade. E cabe a você recolhê-los para mim.

Anamélia não gostou muito daquilo, afinal nem desconfiava o que a pedra poderia querer. E também era uma noite muito fria, com ameaça de nevasca. Mas havia um anseio em seu coração sonhador.

— Prometo levá-la comigo ao meu mundo — acrescentou o objeto falante, tão bruscamente que por muito pouco a garota não teve um infarto.

— Sério?!

A alegria daquela promessa era muito radiante. Enchia a alma da jovem órfã de esperança e sonhos sempre presentes. Imagens de banhos de cachoeira com as fadas das águas ou os longos passeios ao lado dos elfos, tantas coisas passavam em sua mente imaginativa. E tudo estava apenas na aceitação das sete tarefas para auxiliar um erudito metamorfoseado em pedra.

— Qual é a primeira tarefa? — indagou, ansiosa para iniciar e acabar o quanto antes.

— Bem, vejamos — começou a pedra, naquela insensibilidade típica de todo mineral. — Há um cemitério não muito longe deste parque. Lá vivem duas criaturas horrendas, os ghouls. São monstros que se alimentam de cadáveres de todos aqueles que foram santos em vida, pois eles os invejam pelas virtudes que praticavam. Se um vivo os encontra, também o devoram; contudo, se uma pessoa se oferece para pentear os cabelos ou apará-los ou ser amamentado pela fêmea, eles concedem um único favor como forma de gratidão. Faça isso: corte e penteie os cabelos do macho e sugue os seios secos da fêmea, que contará sobre sua prole natimorta! Após isso, eles indagarão como podem retribuir suas gentilezas. Peça algumas lágrimas da donzela que morreu por amor há alguns anos, e insista nisso mesmo que eles apontem que os olhos da falecida murcharam e foram comidos pelos vermes! Quando notarem que você sabe o que quer, darão o que foi pedido.

Anamélia se arrependia de ter aceitado realizar as tarefas. A primeira já lhe parecia deveras repugnante e perigosa. O que não imaginar das seguintes, caso obtivesse êxito na inicial? Talvez ainda houvesse tempo de desistir, porém o desejo de ir a um mundo mágico era muito mais fascinante do que de permanecer naquele tão gelado e infeliz.

Embora hesitante e nauseada, a garota foi para o cemitério.

De volta ao parque, deixando para trás o bosque, sentiu o ar gélido da noite outra vez. Ajeitou o casaco; logo em seguida tirou o excesso de cabelo castanho com mechas douradas do rosto. E andou.

A cidade estava mergulhada num sono profundo, que poderia ser algo absoluto se não fossem os morcegos e corujas ali e acolá, resistindo com bravura ao frio do inverno. Ou aos vigias que se perdiam em meio às sombras conscientes que vagavam pelas ruas sem qualquer receio.

O portão majestoso do cemitério parecia outro limiar entre dois mundos. Na verdade, realmente era; entretanto, assim que Anamélia se espremeu para passar por uma brecha, não se deparou com as cores primaveris que viu no Bosque da Melancolia, e sim com o tétrico aspecto da morte. Lápides e túmulos pareciam possuir veias e artérias, pulsando um sangue ou num tom vermelho ou noutro mais escuro, quase negro; a neve era manchada por rastros rubro-negros, que iam de um sepulcro a outro, cuja maioria estava semiaberta, com alguns ossos roídos em volta. Fazia mais frio ali, e o cheiro de podridão era insuportável.

Andando com cautela, a garota fitava cada canto e recanto com temor, afinal desconhecia a aparência das criaturas que dedicavam suas existências a profanarem o descanso dos que foram santos quando vivos. E também receava que fosse devorada. Apesar disso, até que foi corajosa entre tanto sangue e corpos decompostos expostos; nunca demonstrou medo de morrer, tendo apenas uma preocupação quanto ao fato de não sentir dor.

Ela havia terminado de passar por um belo e suntuoso mausoléu, depois de uma rápida contemplação da arquitetura gótica, quando se deparou com duas figuras grotescas debruçadas sobre um cadáver. Eram seres esguios, com uma pele entre o verde e o azul, dotada de uma aparência putrefata, com poucos pelos grossos e negros; magérrimos, usavam vestes rasgadas e apodrecidas, tão gastas que era impossível determinar qual era o macho e qual era a fêmea dos dois. O mais cabeludo arrastou um defunto menor, que estava mais afastado; deveria ser uma criança com não mais do que cinco ou seis anos; pô-lo perto de seu enorme pé de dedos longos, o qual a seguir pisou no crânio e o esmagou como se faz com uma noz.

Anamélia não conseguiu desviar o olhar bicolor, testemunhando, ainda que com imenso horror, o casal de ghouls saborear o cérebro do falecido infante. Sob um luar fantasmagórico, os monstros eram como as feras do deserto africano, com suas risadas terríveis, enquanto rasgavam o ventre de sua presa moribunda. Nem humanos, nem animais, eram elos entre qualquer tentativa de racionalidade e a selvageria primitiva.

Um deles farejou o ar com seu focinho pouco alongado, erguendo um par de orelhas curtas e largas, antes ocultas sob a cabeleira crespa e grisalha. Rosnou como um cão, buscando com os olhos amarelados a única presença viva naquele recinto de morte e renascimento. Não tardou a localizar a jovem paralisada de medo, com o suor frio e o corpo trêmulo.

Urrando ensandecido, o ghoul correu sobre as quatro patas de encontro com a intrusa, cercando-a até a chegada da companheira, que a examinou por longos segundos.

Tão próximos dela, Anamélia pôde perceber mais detalhes. A cabeça magra, quase cadavérica, era afunilada, como a de um cachorro, contudo os olhos e as orelhas lembravam os de um gato; possuíam dentes amarelos e pontiagudos, o hálito de carniça e a língua como a de um lobo. O macho, mais alto e cabeludo, tinha o peito nu, exibindo cicatrizes e alguns ossos salientes; e a fêmea, apesar da blusa rasgada, deixava visíveis os seios tão murchos e caídos.

Pensando com astúcia, ciente de que aquelas feras a matariam se ela não agisse logo, a jovem escolhida gritou:

— Eu vim aqui para cuidar de vocês!

Não foi nada específico, mas fez ambos pararem e a encararem, numa postura bípede e igualmente horrível; pareciam confusos até que a garota retirasse da mochila uma tesoura e um pente. Sorrindo de maneira pavorosa, o ghoul macho se sentou, batendo as mãos de dedos finos e compridos na cabeça, grunhindo como um bobo. E assim Anamélia iniciou o corte dos cabelos espessos dele, tendo um pouco de dificuldade devido a dureza dos fios; ao concluir, penteou tudo, o que possibilitaria ao monstro enxergar melhor e não precisar afastar a todo instante a juba dos olhos.

A fêmea também se sentou, tocando um dos seios secos, porém sem a euforia do marido. E foi com grande controle sobre a ânsia de vômito que a garota se deitou no colo da criatura medonha e mamou. Inacreditavelmente algo brotou do mamilo endurecido, e era tão doce quanto o mel, numa consistência cremosa, como iogurte. Se antes ela queria vomitar, agora desejava somente se acalentar naqueles braços magros e desfrutar o carinho materno oferecido por alguém tão digno de misericórdia por seu estado deplorável de existência. Recordou-se dos anos há muito deixados para trás, quando tinha uma família, época a qual sentia muita saudade.

— Sempre quis uma menina igual a você, criança — soou uma voz melódica, que deveria ser a da ghoul que a amamentava —, mas Deus priva as aberrações de tal benção, e toda a minha prole sempre nasce morta. Meu marido bem sabe como são amargas as horas que penamos pelos cemitérios, devorando todos aqueles que nos maldizem, pois é a nossa sina por blasfemarmos ante os homens santos que abominaram o incesto de irmãos. Sim, minha querida, a minha carne também é a de meu marido, pois nascemos do mesmo ventre e na mesma noite. O amor que nos arrasta de um sepulcro a outro é maior do que o de irmãos, e consumimos isso em fornicações, matando nossos pais quando ameaçaram nos punir severamente. Nosso crime maior foi matar por amor justamente quem com amor nos criou. E meu útero secou. Nunca uma cria minha viverá para ver o mundo ou roer conosco os ossos de tudo aquilo que nos horroriza, para vagar pelas noites eternas da maldição que portamos. Enterramos nossos filhos nascidos sem vida para que os vermes os devorem, tal como devoramos aqueles que os vivos em espírito e razão enterram. Mas você nos auxiliou como poucos auxiliam. Por isso, sob o fardo da culpa que carregamos, somos obrigados a conceder um pedido como gratidão por sua atenção, por aparar as madeixas de meu marido e por mamar o leite pastoso que minha prole funesta nunca mamará. Peça algo e faremos!

Anamélia se levantou, limpando o leite sobre os lábios com a manga do agasalho.

— Quero as lágrimas de uma donzela que morreu por amor há alguns anos! — pediu, com convicção.

— Acaso sabe o que pede? — perguntou o macho, com bastante seriedade. — Conhece a magnitude do poder de tais lágrimas?

— Sei que preciso dessas lágrimas, mas desconheço qual seja o poder.

O casal horrendo arfou, notando que a jovem nada sabia sobre a importância do que pedia. Era evidente que não era para ela aquilo, afinal o que queria era algo tão profano quanto violar túmulos e devorar cadáveres.

— Lágrimas de mortos por amor são ingredientes poderosos para diversos rituais — falou a ghoul, rasgando o ombro esquerdo com a unha enegrecida e pontiaguda. — Sempre que encontramos algumas num morto, guardamo-las em frascos para bebermos em noites de lua nova, na esperança de que algumas delas nos propicie uma prole viva na gestação seguinte.

Ela fuçou a ferida com calma, sem demonstrar dor.

— Como estamos sob juramento profano — concluiu —, entregamos um frasco para você. É de uma virgem que definhou depois de tanto esperar o noivo voltar da guerra. Devoramo-lo no campo de batalha pouco depois de sua morte; e encontramos a noiva dias depois, num cemitério, com os olhos ainda lacrimejados. São preciosidades ímpares. E agora são suas.

A fêmea entregou um vidrinho pequeno, com um pouquinho de um líquido cristalino. Apesar do cheiro fétido e do sangue escuro, Anamélia o pegou, admirando seu conteúdo por breves segundos.

— Agora vá! — mandou o macho, rumando para os corpos que antes comiam.

— Sim, vá, criança! Vá! E que seu destino seja melhor do que o nosso ou o da jovem que chorou mesmo depois de morta! Vá!

E assim a primeira tarefa foi cumprida.

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