De: Apolo / Para: Orfeu

By cherrymayfair

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Apolo, um camponês que trabalha como carteiro da deusa Afrodite, escreve uma carta para o seu amado Orfeu. Re... More

De: Apolo / Para: Orfeu

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Meu querido Orfeu,

O trabalho está sendo árduo por aqui. Tenho que acordar muitíssimo cedo todas as manhãs para alimentar os cisnes de Afrodite e amarrar bem os cestos nas carruagens para que estas centenas de cartas sejam entregues, sãs e salvas, nos respectivos endereços. Pela tarde, vou aos estábulos de Eros lavar os seus cavalos, polir as selas, pentear as crinas, libertá-los nos campos para que se exercitem. Eros gosta de seus cavalos bem jeitosinhos, e quem sou eu para reclamar? Quanto à noite, ela é só minha, você sabe. Afrodite e Eros me dão estas horas de descanso só para mim, nesta cabana pequena e aconchegante que construí com a ajuda do velho Perseu. Você não o reconheceria mais se pensasse em como eu o descrevia anteriormente, ele está quebrado e corcunda, sua visão deteriora como uma gota de tinta aquarela pingando numa bacia de água. Nem tão rápido e nem tão lento, espalha-se como se espalham os dias do calendário.

Sempre quis uma cabana modesta, com cerquinhas adjacentes, um quintal espaçoso onde pudesse adubar e crescer minha hortinha. Janelas em todos os quatro cantos, para que haja sol em qualquer hora do dia, derramando-se no piso de madeira da cozinha, da sala e do meu quarto. Do que seria o nosso quarto. Nada de tinta, somente verniz e um telhado suficientemente forte para aguentar as tempestades. Alaranjados, retangulares, firmes sobre o teto. Pela tarde, você precisa ver, minha casa vira um lar do âmbar.

Aqui neste campo onde tenho o luxo de uma macieira bem ao lado leste do meu lar, posso me sentar à noite e assistir a escuridão precoce chegar e parir as constelações que parecem pular para fora daquelas colinas ao sul. Eu sempre te falei o quanto tinha vontade de me aventurar por lá, mas o trabalho me deixa tão cansado que, ao fim do dia, tudo o que quero fazer é preparar o meu jantar, observar se não há nenhuma praga ameaçando minha horta e, finalmente, me banhar, labutar e continuar escrevendo.

Nos dias em que não estou tão preso a essa rotina, decido descer a ladeira para conversar com os vizinhos no bairro ao norte, trocar meus tomates e minhas cebolas e minha salsa por queijo de cabra, leite e ovos, as maçãs eu deixo de graça para as crianças. A macieira já estava ali quando me mudei, então tenho para mim que seria injusto cobrar pelas maçãs. E elas crescem o ano inteiro, Orfeu. Não apenas numa determinada época, mas o ano inteiro, sem que eu me dê ao trabalho de cuidar desta árvore. Afrodite recentemente me contou que essa macieira fora plantada por uma bruxa muita velha, muito antiga, que obtinha para si todos os segredos milenares da fauna e da flora. Eu gostaria de tê-la conhecido, apresentado a bruxa a você. Convidá-la para tomar um café com torta de maçã ao fim do meu expediente no estábulo de Eros.

Eu também adoro esse bairro. Ajudei muitos destes moradores a construírem seus lares, naqueles anos de guerra infindáveis que te contei nas nossas cartas. Muita gente nova, muitas crianças tristonhas, sujas, ensanguentadas, pedindo por água e pão. Foi difícil, mas conseguimos nos estabilizar e fazer deste um lugar bom, quieto e aconchegante para se viver. Confesso que sinto falta daquela agitação, de dormir pouco e começar o dia antes do sol nascer. De acordar no meio da noite porque havia me esquecido de que não escrevera nada para ti. A letra saindo um majestoso garrancho, pela pressa, pela tristeza, pela ânsia. Por já escrever esperando pela sua resposta que só chegaria na semana seguinte. Assoviando para os cisnes nos céus que pousam no gramado através de uma longa e tranquila espiral em direção ao solo. Suas asas imensas rebatendo a luz solar como se fossem pedaços de estrelas em plena manhã, orgânicas, faiscantes, verdadeiras filhas da Senhora Vésper.

Naquelas horas de afobação e estardalhaço, eu acabava por me confundir com o endereço de algumas cartas. Afrodite ficava furiosa, me chamava de ingrato, de estúpido, entre outras coisas que eu prefiro não citar por aqui. Você conhece muito bem o temperamento dos deuses. Cheguei bem perto de ser demitido e, por procedência, sabia que corria o risco de perder o meu emprego, também, no estábulo de Eros. E após longos discursos refogados em lágrimas, eu consegui seu perdão e mantive o trabalho. Se eu ficasse apenas cuidando dos feridos, da fome, das covas, acho que enlouqueceria. As cartas me traziam o pé-no-chão necessário. O que é irônico de se constatar, considerando que todas elas são puras declarações de amor. Chegam lá no céu. Papéis perfumados com os feitiços de Afrodite, com seu toque, com suas bênçãos, para abrir os caminhos de todos aqueles que vinham e vêm ao seu auxílio.

De tal forma que eu também acabo me tornando um secretário e, a minha casa, uma central de reclamações de cartas devolvidas. As pessoas ficam realmente furiosas quando suas cartas não chegam ao destino almejado. Ou quando não são correspondidas porque o destino não quis que assim fosse (e isso está além do domínio de qualquer deidade). Algumas me enviaram maldições que me adoeciam por semanas, e lá vinha Eros com seu cavalo marrom-terra me buscar e me levar aos confins da floresta oeste para que a Senhora Panaceia pudesse me besuntar com seus óleos e me fazer tomar os seus xaropes amargos e horríveis. Banhar-me com as suas ervas fedorentas, os seus chás que me causavam eternos vômitos, expurgando de mim qualquer sinal de doença e morte. Uma dessas maldições quase me tirou a visão, e achei que teria o mesmo destino do velho Perseu. Em outra ocasião, tive pesadelos horrendos em que uma horda de harpias me sequestrava e me puxava os braços e as pernas até eu rasgar por inteiro e morrer ali mesmo, devorado por elas. Não preciso dizer o quanto que essa maldição me deixou apavorado com a ideia de dormir por meses. Mas os anos passam como passam as dores e como terminam as guerras. Como os traumas, no decorrer do tempo, tornam-se parte tão autônoma de nossas vidas, não é verdade? Eles não machucam mais, não como uma vez já machucaram tão impetuosamente, apenas existem e passeiam por ali, como crianças rebeldes que ainda não querem entrar em casa para tomar banho e jantar. E se você ousa abordá-las, elas gritam com você, e voltam correndo para a completa escuridão sem olhar para trás.

A sua carta de reclamação, no entanto, não veio com nada que me machucasse ou que pusesse a minha vida em risco. Você foi sucinto em dizer que erraram o endereço, e que não havia problemas, contanto que isso não se repetisse uma próxima vez. Após passar por poucas e boas com as fúrias alheias, achei aquilo tão dócil e sincero que decidi eu mesmo te escrever uma carta lhe pedindo desculpas que você nem mesmo pediu. Pensei várias vezes em não mandar, passei quase duas semanas matutando sobre aquilo. Se eu seria invasivo, um intruso, uma inconveniência que tiraria a sua paciência e se aproveitaria da sua boa-vontade. Mas por falta de gestos como aquele na minha vida, senti a necessidade de te enviar. Alimentei os cisnes, lhes contei sobre os lugares que eles deveriam passar, os riscos que eles poderiam correr, as montanhas nebulosas que eles deveriam evitar, e esperei.

Não demorou nem mesmo uma semana para a sua resposta chegar. E você não sabe disso, mas foi algo que, naquela semana específica e dolorosa, me encheu de alegria. Contei a notícia para o velho Perseu, para Eros e para Afrodite. Esta que, ocupada na cozinha com suas senhoras, apenas me olhou de esguelha e perguntou:

– Então você está procurando pelo amor também?

– Não sei, acho que sim – eu respondi.

– Precisa de ajuda?

– Não senhora, muito obrigado, mas posso fazer isso sozinho – respondi cautelosamente, com medo da minha petulância em negar a ajuda de um deus. Afrodite, contudo, somente voltou a cortar as cebolas e disse, espremendo os olhos lacrimejados pela ardência:

– Se você diz...

Você ainda se lembra, Orfeu, de como as cartas que começamos a escrever um para o outro eram tão longas e esparramadas em declarações e elogios? Foi como se, por todo aquele tempo em que eu não te conhecia, eu estava apenas esperando o momento em que fosse te conhecer, porque eu já te conhecia no fim das contas? Uma familiaridade tão rápida e espontânea, algo que beirava ao divino. Ainda beira, é claro. E acredito que será sempre assim. Não posso dizer com absoluta certeza, obviamente, e mesmo assim eu prefiro sentir isso, tudo isso, desta maneira.

Tu me disseste uma vez sobre a impermanência, sobre as incertezas, e eu te respondi com um poema que era sobre a permanência e a certeza de forma incerta. Nós gostávamos disso, dos desafios da linguagem, da sacralidade dos versos. Gostávamos como ainda gostamos. E como é difícil sair de uma mentalidade poética que tenta ver beleza em tudo, que traz dignidade à dor, que traz respeito às coisas mais obtusas ou incertas, profundas ou tangenciais. Até aquelas mais indescritíveis, a poesia encontra uma maneira de lhes dar vida e forma. E através de nossas cartas, foi isso o que fizemos, trouxemos vida e forma a algo tão distante e oblíquo.

Me desculpe, Orfeu, mas eu sempre quis mais, você sabe disso. Foi assim que demos início aos planos. Primeiro começamos de forma tímida. Eu conheci sobre o que você fazia naquelas terras escuras de florestas silenciosas que escondiam o reino de Hades. Quimeras felpudas resguardando as matas e estraçalhando qualquer um que ousasse se aproximar dali. Você se dava bem com elas, sabia como acalmá-las, adestrá-las e alimentá-las. Você ensinava a elas sobre a troca: se você não me matar, eu continuarei vindo aqui para cuidar das suas pulgas e trazer carne crua e bem ensanguentada. A cabeça de dragão era a mais faminta, ao passo que a de leão preferia pequenos esquilos e filhotes de coelhos, e a de cabra seguia serenamente coexistindo com pacificidade naquele mesmo corpo. Imagino que seja bastante estressante viver com mais duas cabeças além da sua própria, então não as culpo pela sua hostilidade. Você me ensinou a ver graça e beleza nas quimeras e, me desculpe mais uma vez, acho até meio engraçado quando penso a respeito.

Eu raramente via Afrodite ou Eros naqueles meses, estavam ocupados demais tentando proteger o nosso vilarejo da guerra. O que para Afrodite tornou-se um trabalho de dupla jornada, pois ela jamais abdicava da sua missão de fazer seus cisnes entregarem as cartas (e como os cisnes a odiaram...). Disse-me Afrodite que o amor, em tempos obscuros, é uma arma poderosa para o fim de uma guerra.

Você também sofreu muito com ela, com as batalhas dos homens, precisando adiar a sua missão de se infiltrar no reino de Hades por um período que lhe fora excruciante. As quimeras o protegiam a muito custo, mas nós dois sabemos o quanto que viver na presença constante de uma criatura como essa nos tira a alegria e o prazer que nos impulsiona a passar pelo dia seguinte. Quando cuidamos de uma quimera por tempo integral, precisamos arcar com os custos.

"Então assim que a guerra acabar, iremos nos ver" – eu lhe escrevi.

"Iremos sim, prometo" – você concordou, com sua letra de Is e Ts tão espaçados, como se precisasse colocar pequenos vazios nos símbolos.

No mundo onírico das nossas palavras, era fácil prometermos coisas um para o outro. Principalmente quando lhe mandei um desenho do meu rosto, rascunhado pelo velho Perseu que, até então, tinha a visão boa e a saúde de um minotauro. Daqueles que se vangloriam por terem matado os melhores cavalheiros – os filhos mimados dos deuses – nos coliseus. Minha pele marrom de sol, meus cabelos crespos e minha boca grande, minhas maçãs do rosto redondas, minhas sobrancelhas ralas, meus olhos acastanhados, meus cílios retos e cabisbaixos. Te entreguei meu rosto sem pensar duas vezes. E oito dias depois você me mandou um retrato seu, pintado por uma bruxa que, em troca, lhe pediu que você adestrasse uma quimera para ela, mesmo sabendo do risco que poderia correr, da sanidade que poderia perder. "Prefiro a violação da loucura do que a mediocridade da morte", ela lhe disse e, se me lembro bem, acho que você concordou.

Estávamos tão conectados, tão submersos um no outro que eu mal senti a guerra acabar. Nosso vilarejo se erguia e sobrevivia, nossas crianças cresciam e nossos idosos saíram de suas casas para comemorar o fim daquele horror. Houve uma grande farra na pracinha central onde Eros e seus rapazes trouxeram uma longa mesa para ofertar o banquete, entupido de vinho, frutas, carne de cordeiro, sucos e tortas. Pois não precisávamos mais estocar comida, preocuparmo-nos se haveria ou não o dia de amanhã. Até mesmo a Senhora Panaceia marcou presença, encurvada, seu rosto enrugado feito uma ameixa seca com uma constante aparência de mau-humor. Seus cabelos brancos, secos e duros presos num coque que me fazia imaginar que um gato havia passado ali e deixado uma gorda bola de pelos sobre a sua cabeça. Ela me perguntou polidamente se eu não havia recebido mais nenhuma carta amaldiçoada e eu lhe respondi que não, que enviava e recebia apenas cartas de amor.

Afrodite e suas senhoras e meninas prepararam uma grande fogueira para bailarem, e me chamaram para tocar a minha lira e as crianças para cantarem o coral. Bebemos o chá de Afrodite e entramos em completo êxtase e gratidão por tudo de vivo e tudo de bom e tudo de justo que havia no universo. Por tudo o que nos fazia gritar de alegria e chorar de alívio e agradecer, somente agradecer aos céus, pelo que significava o começo de mais um ano. Mais um ano para trabalhar. Mais um ano para alimentar e cuidar dos cavalos e enviar as cartas e te dizer o quanto eu queria que você estivesse ali comigo, comemorando ao meu lado, beijando-me os lábios e, ao fim daquela noite, ao parto do amanhecer, deitar na cama comigo e nos afogarmos em nossa pele e nossos corpos e nossa vontade de querer mais e mais e mais um do outro. Entrar em você, te desejar, te ver de perto, te tocar. Saber da sua quentura, do seu âmago, da inexorabilidade que te pertencia ferrenhamente.

Não era esse o plano? Oh, veja bem, leia essas palavras com o tom mais afetuoso que tu possas imaginar...

Eu te contei sobre aquela noite e você me escreveu que ainda precisava entrar no reino de Hades antes de nos encontrarmos. E Orfeu, quantas vezes eu não te falei que compreendia e que abdicaria de toda essa ansiedade pelo bem de suas prioridades? Que a minha própria compreensão de precisar cultivar essa paciência era sinal do quão grandiosos poderíamos ser quando finalmente nos encontrássemos?

As quimeras te adoeceram e eu não podia estar por perto para ajudar, e chegava a preocupação como chega Afrodite em minha porta, furiosa, por eu ter me confundido no trabalho. Não entenda isso como uma acusação, eu jamais te acusaria de algo que era tão crucial em sua vida executar. Mas você entende que, após tantas palavras e planejamentos, após uma frequência tão constante de cartas, a sua demora em me responder me fazia sempre pensar no pior?

Pois você conhece o meu passado e a minha história como ninguém. E descobri que contigo eu poderia ser puro alívio.

Na minha escusa infância, procurei teimosamente por alguma coisa, por algo que eu não conseguia nomear. Como uma palavra cuja pronúncia e significado só existe em outro idioma, não neste ao qual escrevo estas linhas. Caminhando por uma longa trilha de terra macia e um tapete de folhas secas que se estende à minha frente. Enlameando as minhas botas desgastadas. Um lugar que preenchia meus pulmões com um ar úmido e límpido, quase evocando o éter. Chegando próximo, bem próximo, deste brio.

Já escureceu muitas vezes neste lugar. E eu, desleixado do jeito que sou, sempre me esquecia de levar uma lamparina e uma barraca para passar a noite. Ninguém me ensinou a fazer uma fogueira, então eu dormia com frio e com medo na escuridão gélida e na companhia da brisa que produzia sons e estalos que aceleravam a minha pulsação, achando que a qualquer momento uma harpia ou uma quimera saltaria de um arbusto para me devorar. As corujas piavam às vezes, farfalhavam sobre a minha cabeça, e os uivos que vinham de muito longe me faziam orar em silêncio para que acordasse são e salvo na manhã seguinte.

Eu sempre fui assim, acredito. Procurando por coisas sem um nome específico. Sentimentos não batizados. Alegorias da vida. Símbolos e orações.

Continuei retornando a esse lugar muitas vezes. Tiveram dias em que eu ia somente para me recolher e me esconder do mundo lá fora. E toda vez que voltava para esta floresta, resolvia percorrer alguma outra parte inédita, um leste ainda não descoberto, um oeste sem o apreço das certezas. Quando muito menino, eu era bem mais corajoso do que sou agora, sabes o que quero dizer com isso.

Encontrei outras pessoas nessas andanças. Algumas me ajudaram, deram-me água e frutas. Outras, no entanto, já roubaram todos os meus bens mais preciosos, desesperadas pela luz que eu nunca tinha. Então eu entrava num acordo com elas, permitia que elas andassem ao meu lado, contanto que não tentassem mais me furtar. Acreditei em muitas delas, sempre acordava sem nada. E acabava me culpando no fim das contas.

Eu percorri muitos quilômetros imerso nestas culpas. Culpa minha ter confiado, culpa minha ter acreditado, culpa minha ter amado. Sempre a culpa. Sempre a perda. Mas que perda? Já escrevi mais de oitocentas mil palavras para entender a culpa e a perda, e até hoje ainda não consegui compreendê-las. E fiquei tão, tão cansado disso tudo, que acabei perecendo e sendo soterrado pelas folhas e galhos que caíam na força das chuvas de outono. E no inverno, eu já estava completamente desaparecido da superfície da terra.

Foi numa manhã dessas, tão sucinta e qualquer, que braços longos e mãos fortes me puxaram da terra e retiraram as folhas dos meus cabelos. Afrodite ajoelhou-se e segurou meu rosto com as duas mãos, com uma expressão que me lembro muito bem. A minha indiferença e resignação aturdiam a deusa e seu filho. Eros montado em seu cavalo logo atrás. E Afrodite com seus longos cabelos castanho-claros, quase loiros, tão cheios e ondulados, cobriam-lhe os ombros e as costas como uma larga capa de madeixas. Seu vestido branco e transparente adornado por florais rosados moviam-se com tal elegância que era como se tivessem vida própria. Seu rosto longo, oval, de testa alva, lábios carnudos e vermelhos e olhos verdes imensos feito duas petecas de vidro, assistiam-me serenamente. Afrodite ergueu-se à minha frente e inspirou o ar para assoprar com toda a sua força em meu rosto e minhas vestes, limpando-me da terra, das folhas, das minhocas e das pulgas, dos cogumelos que cresciam atrás das minhas orelhas, da pele ressequida, castigada pela chuva e pelo sol e pelas queimaduras da neve, pelos cachorros selvagens que por vezes desenterravam algum braço ou pé procurando pelo defunto que não havia.

Afrodite e Eros me deram um lar, dois trabalhos e uma única missão: que eu não deveria nunca mais esquecer de mim daquele jeito. Ficaria envergonhado se você visse o estado em que fiquei, esquelético, desnutrido, açoitado pela eventualidade da natureza. Confuso e sem qualquer discernimento das coisas que estavam bem na minha frente. De tudo o que eu deveria continuar fazendo para encontrar um jeito de não me ver mais tão indiferente, tão vazio e perdido por nunca ter encontrado o que tão voluntariosamente procurei.

Eu vim a este mundo sem família, Orfeu. De repente, muito, muito novo, dei-me conta de que eu não fazia a mínima ideia de quem havia me parido. Diferente de ti, que teve a benção do amor de uma mãe e a sagacidade de um território para viver, uma missão destinada a se cumprir, um jeito novo de esbravejar a sua fúria para o mundo, eu nasci sem terras e laços sanguíneos. Você, com sua pele esbranquiçada e seus cabelos lisos e negros como os cachorros de Hécate, lustrosos à luz do luar (imagino), seu nariz longo e detentor do teu rosto anguloso, seus lábios rosados como se duas pétalas de cerejeira fora de época tivessem repousado sobre uma colcha de neve, já sabia exatamente de quem havia descendido. Já conhecia o antes, o agora e o depois. Enquanto eu me preocupava de modo destrutivo sobre que futuro eu deveria ou poderia alcançar. Você e suas palavras me ensinaram a apreciar a sutileza mais ínfimas das horas e a construção de algo tão maior do que nós dois nunca seremos. Apenas ousamos na tentativa de ser.

Nos primeiros meses morei com o velho Perseu, enquanto construíamos juntos a minha casa. A nossa casa. A casa que um dia será de nós dois. E foi particularmente difícil de me acostumar na primeira semana sem a presença daquele senhor todo músculos e modos paternos para comigo. O velho Perseu me colocou debaixo de sua asa e me ensinou sobre tudo, ao passo que a praticidade da rotina ficou a cargo de Afrodite e de seu filho Eros, este que aos meus olhos tornou-se um irmão mais velho para mim. E de todo modo ele já me tratava desse jeito, o caçulinha que seguia seus passos, invejava a sua altura e a sua força, a nudez completa de homem formado nos banhos matutinos.

– Mas por que moramos num lugar tão escondido por aquelas colinas? – perguntei à Afrodite certa vez, interrompendo a sua sesta na beira do lago, lugar de repouso dos cisnes.

– Mais pessoas virão, tenha paciência – ela respondeu, tácita. – E você terá que cuidar de muitas delas.

– Eu não sei cuidar dos outros... – retruquei, com a voz embargada que precedia um choro infantil.

– Não se preocupe com isso. Venha cá. – Ela me chamou para o seu colo, ao que eu respondi entusiasticamente. – Teremos muito trabalho a fazer pela frente, meu menino – ela disse, ronronante, passeando a mão em minhas madeixas crespas. – Mas por agora, cuida da tua casa, para que um dia tu possas receber tuas visitas. Quando a gente aprende a erguer o nosso próprio lar, a gente também aprende a cuidar das outras pessoas. Uma casa é tão viva e orgânica como você. Ela espera, ela precisa de reparos, de limpeza, ela recebe, ela acolhe e guarda, ela também ama.

– Como uma casa sabe de tudo isso se ela não pode falar?

– É aí que você se engana. Se prestar bastante atenção, ouvirá o que elas têm a te dizer.

Você conseguia escutar, Orfeu, de tão longe, quando a sua casa lhe dizia que a casa de sua mãe anunciava o que estava por vir? Que a carta cujo endereço eu errei eram versos que diziam estou chegando para ela? E que você não sabia o quanto ela estava adoecida e, por esse motivo, aquela casa, aquela, tentou a todo custo lhe avisar que a sua mãe não teria mais sequer um único dia posterior para aguardar o que você escreveu logo em seguida?

Um lugar tão difícil de se chegar como aquele, tão absurdo, apenas os cisnes de Afrodite têm a devida força, coragem e proteção para alcançar. Porque tal como a necessidade de amar, há casas maternas que são difíceis demais de se chegar até mesmo para alguém tão forte e corajoso como você. Casas aos quais os filhos prometem a si mesmos que jamais voltarão, mas que uma hora ou outra voltam. Lutam para voltar. Porque sim. Porque nunca é necessário algum motivo maior para voltar a casa de uma mãe.

Sei que não tenho o direito de remexer essas memórias, a não ser quando você me dá o sinal. Então permita-me ser um intruso uma segunda vez. Permita-me pensar que, ao constituir uma família com Afrodite, Eros, o velho Perseu e, inclusive, a Senhora Panaceia, eu também quero – e agora tão mimado pelo amor – que você faça parte deste meu mundo. E que eu faça parte do seu. Que os nossos mundos se colidam não apenas através das cartas, mas também pelos alicerces da necessidade física. Por este lugar que ressoa ineditismo e comporta a comunhão de uma música carnal, aquela que abocanha a pele, que penetra e dói, que sussurra um segredo meu e teu no desenho das colcheias e das claves de sol e de fá.

Se eu enfrentei as artimanhas da solidão, Orfeu, tu tiveste que enfrentar a mortandade que assolava a tua mãe, e a inevitabilidade de sua partida. Eu compreendi, como sempre compreendo cada um dos teus passos concretizados, que você planejava adentrar o reino de Hades justamente para entregar aquela carta que não conseguiste fazê-la ler em vida. Embora nunca tenha me responsabilizado por aquilo, me falando o tempo inteiro que erros comuns como aquele eram ordinários e pequenos perto do que a gente tinha, e tem, eu não podia deixar de lado a minha parcela de culpa. Ou talvez só quisesse algum motivo para caçar e dar substância à antiga melancolia que uma vez me assolou e me deixou enterrado numa floresta inominável.

Estávamos tão frágeis naquelas últimas cartas...

Você sabia que sete anos numa vida como a nossa equivale a sete semanas na vida de um deus? Eu sempre me perguntei se todo esse carinho que Afrodite tem por mim é a certeza de que irei embora tão rapidamente, na sua perspectiva, tal uma ventania exacerbada que atravessa as colinas e nos avisa que o inverno é tão certo e cruel quanto a nossa ínfima e delicada existência?

Não sei se nesse momento estou fazendo muito sentido, contudo, sei que você entende muito bem os meus devaneios e as minhas solicitudes proverbiais. Eu já sabia que você passaria um tempo sem me responder, assim como sei que, quando voltar, a primeira coisa que você irá fazer será procurar pelos papéis, pela pena e pelo tinteiro. Eu serrei, martelei, lixei, poli e envernizei uma escrivaninha de madeira e a depositei de frente para a janela do meu quarto, ao lado da cama, onde repouso os materiais necessários para te escrever sem precisar procurar pela minha pena já tão desgastada pelos anos. Imperturbável por qualquer preocupação que me faça pensar onde eu deixei este objeto que uso para te escrever?

Sou bastante previsível neste aspecto e tenho o costume de deixar todas as coisas em seus devidos lugares. Há algo de ritualístico e poderoso em se manter uma rotina, ao usar minha blusa de linho marrom favorita, alimentar os cisnes antes de preparar o café da manhã, deslizar pelo bairro com minha cesta de verduras e uma sacola com maçãs. E dessa maneira a rotina se transforma em ritual que se transforma na essência da magia. Não aquela gritante e espalhafatosa como uma ciranda de crianças sapecas no meio da praça, mas aquela que se esconde nos detalhes: o segurar das mãozinhas suadas, os olhares de cumplicidade, as expressões satisfeitas ao fim de um longo dia de brincadeiras. É assim que vejo as minhas palavras e as suas também, comungadas nos papéis, resguardadas pelos envelopes.

Então eu sabia, Orfeu, eu sabia quando você estava triste e não me contava. Eu sabia o quanto a sua missão lhe tirava, aos poucos, a sua estabilidade. Atordoado por aquelas quimeras que demandavam toda a sua atenção. A sua letra me denunciava. O seu modo de despencar a letra para um lado, e não para o outro, me explicava exatamente como você estava se sentindo naquele momento. Eu nunca te disse isso, mas você também era previsível ao seu próprio modo. E não se assuste ao saber disso, não há absolutamente nada de vergonhoso na previsibilidade. Acredito que dois espíritos como os nossos, que já se conhecem há tanto tempo mesmo antes de se conhecerem, já esperam que essas coisas aconteçam. Já haveriam de acontecer de um jeito ou d'outro.

"Tenho a doença constante da tristeza e da apatia irrefreável que chega depois dela", você me escreveu, a sua cursiva me dizendo o quanto que te custou pôr aquilo no papel. E a gratidão que senti em seguida me fez condenar-me, logo após, por estar feliz pelo fato de você ter me revelado o que te comia por dentro. Contudo, não era o assunto da confissão, meu querido, era a confissão em si. O ato, a oração, o alimento da intimidade. Na casa das palavras, tu és aquele que entra com uma trouxa pesada de roupas e eu sou aquele que te recebe com o jantar na mesa.

E falando em jantar, amanhã será o aniversário do velho Perseu, prepararemos um grande banquete na pracinha central para agradecer por tudo o que ele fez pela nossa comunidade. Trezentos anos nas costas, você acredita? Ele é tão simples e modesto em sua existência que eu, com apenas cento e um, preciso me lembrar que ainda não sei muito desta vida e das próximas que ainda virão. O velho Perseu me enchia com seus relatos aventurosos e até hoje não sei dizer quais deles são historinhas inventadas ou quais realmente aconteceram. Acho que isso não tem muita importância, a gente inventa a vida que a gente gosta de contar. E mesmo que esteja com a saúde debilitada, ele ainda teima em ajudar a cuidar e reparar as nossas crianças como fez comigo naquela época.

E quanto a você, Orfeu? Você conseguiu concluir o que tanto almejou? Uma última visita? As últimas palavras que você gostaria que ela tivesse lido? Espero não estar sendo rude ao te perguntar essas coisas. Você costuma caminhar entre a extrema sensibilidade e a arguta impetuosidade, e talvez esses dois estados não sejam tão diferentes assim quanto eu acho que são. Espero não estar escrevendo isso muito tarde, mas você sabe, eu me preocupo contigo. Me preocupo tanto ao ponto de achar que fiz alguma coisa de errado. Que em algum momento fui insensível ou egocêntrico. Eu sei, são apenas neuroses minhas. Permita-me reescrever melhor:

Eu tenho você em mim como tudo que pulsa e infla e nutre. Eu tenho suas palavras em mim como alimento e disposição que me tira da cama e me veste e me reflete na sua própria forma. Eu queria te dizer que, depois de todo aquele tempo, nos primeiros anos, procurando em tantos lestes e oestes diferentes, eu encontrei você logo depois de me encontrar também. Um passo de cada vez eu te digo o quanto torço para que você vença essa apatia nebulosa e a gente se veja e se abrace e se beije. E assim, nessa hora, nesse dia, eu possa te dizer tudo o que prefiro falar pessoalmente. Há tantas coisas que você ainda não sabe, há tantos dias difíceis que escondi de você para não te preocupar, há tantos anos para enfrentarmos. E talvez outra guerra chegue amanhã, e talvez corramos o risco de perder tudo, mais uma vez, por conta da fúria dos homens. Mas isso aqui, tudo isso que temos, não é chama que destrói, é fogo que transmuta. É benção dos deuses, é destino que se cumpre e diz: agora sim, porque é assim que tem que ser. E o destino, meu querido, é teimoso demais para ouvir qualquer um.

Esse é o meu testemunho sagrado, o meu suave labor de vida, o nosso legado.

Receba todo o meu amor por esta carta, meu belo Orfeu. Use-o como armadura. Eu deixo.

Com carinho,

Apolo.






Andrew Oliveira

Foto/Edição: cherrymayfair

instagram.com/cherrymayfair

20/11/18

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