Um sonho. Duas cidades. Um am...

By marcelasgomez

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O que acontece quando você descobre que o grande sonho da sua vida é bem maior do que você jamais imaginou? C... More

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Um sonho. Duas cidades. Um amor.

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By marcelasgomez

Um sonho. Duas cidades. Um amor.

Marcela Gómez

ISBN: 978-85-916578-0-3

O livro completo será publicado, mas ficará disponível por apenas 1 semana depois que postar o último capítulo. Semanalmente irei publicar 1 capítulo aos sábados ou domingos e agradeço se deixarem seus comentários e estrelinhas. Segue o link do amazon para quem não pode esperar cada semana e quer ler o livro todo de uma vez. Garanto que é baratinho e vale a pena!

http://www.amazon.com.br/Um-sonho-Duas-cidades-amor-ebook/dp/B00MMX1ZBG/ref=sr_1_2?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1407979411&sr=1-2

Capítulo 1

Caminho pelos corredores do Aeroporto de Barajas, em Madri. Há uma grande mistura de sons ao meu redor, são motores de aviões, carrinhos de bagagens, anúncios de aeronaves decolando ou aterrissando, além dos incontáveis idiomas, os quais não sou capaz de distinguir. Mas, isso não me importa. Só consigo pensar que esse é apenas o início da realização do grande sonho da minha vida. Algo pelo qual lutei muito para conquistar e que exigiu muito esforço, não só meu, Amélia Sofia González Cavalcante, mas também de minha avó querida, Alice Cavalcante, que me dedicou forças, confiança e preces.

Não só conhecerei, como viverei durante dez maravilhosos meses no país que me encantou há muito tempo, por meio de uma gasta revista de turismo, daquelas que você recebe quando entra no avião. Encontrei-a na recepção de um consultório médico enquanto aguardava ser atendida. Nela vi, pela primeira vez, uma foto da Igreja da Sagrada Família, do arquiteto espanhol Antônio Gaudí (não resisti! Escondi a revista entre meus livros do colégio e a levei comigo). Essa igreja era diferente de tudo que havia visto até então. Estava inacabada, apesar de estar sendo construída há muitos anos, mas logo percebi que se trata da coisa mais fantástica que o homem seria capaz de fazer. Parecia tão grande. Difícil imaginar a proporção daquelas torres tão irregulares e imponentes, assim como as de um castelo de areia que costumo encontrar na praia, aqueles feitos por crianças. Era como se Deus estivesse criando através de Gaudí.

Naquele dia, meus planos de me tornar uma renomada advogada foram por água abaixo e soube o que faria pelo resto de minha vida, arquitetura.

Assim que entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, busquei informações sobre intercâmbio acadêmico para a Barcelona. Em casa, todos viam aquele desejo como uma loucura. Meu pai abominou a ideia, apesar da sua distante origem ibérica (bisneto de espanhóis) e não cansava de me importunar com discussões sobre o quanto essa viagem poderia ser perigosa. Minha mãe acreditava que eu não era madura suficiente para viver sozinha em um país distante, mas resisti.

Comecei um estágio em um escritório de arquitetura, mesmo ainda estando no primeiro semestre do curso. Sequer era remunerado, mas torcia para que depois de alguns meses de muita dedicação, começasse a receber um salário. E como havia planejado, depois de três meses trabalhando duro e aprendendo muito lá, passei a receber uma ajuda de custo do escritório. Todo o dinheiro ia para minha conta bancária. Não gastava um centavo dele, já que para minhas despesas do dia a dia, como transporte, material para as aulas e alimentação, podia contar com meus pais. De todos da família, vovó Alice era a única que sabia exatamente aonde eu chegaria. E todo mês, me dava uma pequena parte de sua aposentadoria, que também ia direto para o banco.

Meus olhos lacrimejam ao me lembrar da minha velhinha.

Durante um ano, não gastei dinheiro algum além do estritamente necessário. Minha diversão era passar horas na Internet, pesquisando sobre Barcelona ou vendo filmes em espanhol (dica de amiga: não existe melhor professor que o gato do Javier Barden). Minhas amigas me ameaçavam de abandono total várias vezes, mas acabaram por entender que nada me afastaria do meu objetivo. Juntei toda a papelada necessária para me matricular na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, da Universidade Politécnica de Catalunia, e estudei arduamente para o teste de seleção que, caso obtivesse a melhor nota, me proporcionaria uma bolsa de estudos mensal no valor de mil e duzentos euros. Dinheiro que custearia minha vida lá. Era tudo o que eu precisava para alcançar meu objetivo.

No dia da prova, já tinha tudo preparado para viajar, fiz a matrícula na Universidade de Barcelona, tranquei o semestre na UFRJ, consegui o visto de estudante e comprei as passagens de avião, que comprometeram quase todas as minhas economias. Porém, nada disso significaria minha viagem, caso não alcançasse a melhor nota de todos os alunos que pretendiam viajar também. Estava nervosa, minhas mãos suavam em bicas e passei a noite em claro, mas me concentrei e pedi benção a todos os santos que conhecia de todas as religiões existentes, até os da Igreja dos Surfistas de Deus.

Será que essa igreja existe mesmo ou surgiu de uma daquelas piadas sem graça do professor de cálculo estrutural?!

Enfim, dois dias depois, corri até o quadro de avisos que ficava ao lado da porta da sala do departamento de assuntos internacionais da faculdade e vi meu nome no topo da lista dos aprovados. Essa foi uma das maiores alegrias que havia sentido em minha vida, somente superada por pisar em solo espanhol.

Capítulo 2

Enquanto me lembro de tudo o que havia passado para estar ali, as brigas constantes em casa, o apoio da minha avó, as horas infindáveis de estudo, me aproximo do guichê da imigração do aeroporto de Madri e o nervosismo me controla novamente.

Será que eles irão com a minha cara?! Com essa pele quase translúcida, talvez nem acreditem que sou brasileira. Podem até pensar que sou do ETA, movimento separatista que existe na Espanha. Há alguns meses, vi que suspeitavam que a explosão de um carro numa praça em Granada tenha sido de sua autoria. Ai! Deus me livre. Todo mundo sabe que o Brasil é uma mistura de genes de todas as cores, sabores e nações. Não tenho culpa de ter herdado as pernas finas do meu pai e não o corpão cheio de curvas da mamãe, brasileira nata, nascida e criada na praia do Flamengo e cuja pele é igualzinha a de um jambo. Falando em praia, como será que tá o tempo no Rio, sai de lá com uma chuva torrencial. O trânsito terrível, quase...

- Buenos Dias! - Disse, tentando parecer simpática.

O homem por trás do vidro balbucia:

- Buenos Dias. Pasaporte.

Entrego o documento, juntamente ao comprovante de matrícula da Universidade Politécnica de Catalunia e aguardo por segundos intermináveis.

- Estudiante?

- Si! Soy de Brasil y mi sonho é estudiar arquitetura aqui. Soy fã de Gaudí y me apaixonei por su trabajo. Conoces la Sagrada Familia? Quando chegar a Barcelona, voy até lá para...

- Madre mía! - Ele movimenta a cabeça para os lados. Não sei se é porque não entende meu portunhol ou se não aguenta meu papo, mesmo.

Ai meu Deus! Irritei o homem.

Ouço um ruído que ecoa por alguns segundos na minha cabeça. É o carimbo que me dá acesso de vez a este país lindo e maravilhoso, cheio de gente linda e maravilhosa, como este simpático homem maravilhoso. Lindo seria exagero.

Feliz! Feliz! Feliz!

Capítulo 3

O aeroporto de Barajas é muito grande, maior que imaginava, tem um teto cheio de enormes ondas. É no mínimo diferente, ousado. Posso identificar as características das obras de Santiago Calatrava, outro arquiteto espanhol que conheci nas aulas de arquitetura contemporânea da professora Helô. Aulas intermináveis e difíceis de acompanhar, já que ela era portuguesa. Uma daquelas com sotaque pesado e indecifrável. Provavelmente ela mistura o português a um dialeto originado em...sei lá...na Alemanha, no mínimo.

Foco, Sofia!

Preciso prestar mais atenção no que devo fazer e deixar as formas arquitetônicas um pouco de lado. Descobrir onde encontro um táxi para me levar à rodoviária, é meu primeiro objetivo em terras espanholas. Segundo, na verdade, já que o primeiro foi passar pela segurança.

Saio do prédio e já vejo uma fila de táxis (Obrigada, Nossa Senhora protetora das Desengonçadas!) Essa é a santa a quem sempre recorro quando algo exige minhas fracas habilidades de bom-senso e orientação, nem sempre nesta ordem. Aproximo-me do primeiro da fila, o motorista apenas abre o porta-malas e nem se dá o trabalho de me ajudar com a bagagem.

Alguns minutos e alguns euros depois, chego a Estación Sur de Autobuses, a rodoviária, onde compro a passagem para o próximo ônibus com destino a Barcelona, infelizmente ele só sairá em uma hora e meia. Claro que nem tudo seria tão fácil. Tento ser positiva e constato que terei tempo suficiente para um lanche e esticar as pernas, já que enfrentarei mais 625 quilômetros, distribuídos aproximadamente em oito horas de viagem.

Mesmo custando o triplo, a viagem de trem parece bem mais atraente agora, depois de mais de doze horas de voo. A promessa de duas horas e meia de viagem seria tentadora se eu ainda tivesse escolha.

Passadas duas horas bem entediantes, com "um olho no peixe e outro no gato". Quer dizer, um olho na mala e outro no relógio, finalmente estou a caminho de Barcelona. Respiro fundo e me enterro na poltrona 15 - Ventana, que quer dizer janela (arrasei!), e, apesar de ter prometido a mim mesma curtir todo o visual existente entre as duas cidades, em cinco minutos, caio em sono profundo.

Com um apito, acordo assustada. Olho ao redor, meio confusa. Preciso de dois segundos para entender o que está se passando. Num pulo, levanto da poltrona do ônibus, batendo a cabeça no guarda-volumes.

- Cheguei! Cheguei! Che...aiiii...guei!

Pego minha bolsa, meu casaco, que serviu de travesseiro e desço correndo pelas escadas do ônibus. Ao sair do veículo, vejo a fila bem organizada de passageiros que pegam suas malas. (Fila?! Estou realmente bem longe de casa). Chega a minha vez e o "motorista-maleiro" me pergunta:

- Billete?!

Como é?!

- Perdón. Pu-e-des repetir?!

Abençoada seja Marta, minha amiga boliviana, que me ensinou o "básicão"!

- Su billete, señorita! Con el numero de su equipaje.

Equipaje. Isso eu sei o que é! Bagagem! Ah!!! O papel com o número da minha mala. Era só ter dito mais devagar que eu teria entendido de primeira. Cooperação, pessoal!

- Señorita?! - Disse um pouco ríspido.

- Aqui está. Aqui está. Gracias.

Enfrentado o desafio das malas numeradas, saio da rodoviária de Barcelona. Agora só é preciso encontrar outro táxi para me levar, finalmente, até o apartamento ou piso, como os espanhóis falam, onde viverei os próximos e incríveis dez meses da minha vida.

Escolhi o piso pelo site da universidade. Parece estar em bom estado nas fotos e fica apenas alguns quarteirões da faculdade, pertinho da Avenida Diagonal, importante ponto de referência, e o mais determinante, cabe no meu bolso. Lá há outro quarto, no qual mora uma garota, que já vive aqui há um ano. Fora o fato de sermos do mesmo sexo, não sei mais nada sobre ela e, sempre que me lembro disso, recorro a minha santinha querida para que não seja emo ou punk. Nada contra os dois tipos de tribo, mas acho que não seria fácil conviver com músicas depressivas ou com o chão do banheiro sujo de tinta roxa de cabelo.

Ai! O banheiro.

Sofro ao lembrar que dividiremos o banheiro. Não que eu tenha um exclusivo em casa, mas dividir com Ricardinho, meu irmão desde o dia que nasceu, carequinha e roxinho, e uma desconhecida é bem diferente.

O táxi circunda a Plaza de España, permitindo ver brevemente uma arena de touros. Essa é a única coisa que eu odeio aqui. Sair matando os pobres touros e a plateia ainda bate palma. Não consigo entender. Em seguida, entra na Calle de la Cruz Cubierta, seguindo para o Oeste. Enfim, consigo sentir um pouco da cidade. Estamos em setembro, o que significa o início da primavera no Brasil, aqui representa a chegada do outono. Vejo pessoas caminhando sem casacos pesados pelas ruas. A temperatura está agradável, por volta dos vinte graus, de acordo com o computador de bordo do táxi. O Sol aquece suavemente a minha pele. As árvores ainda estão cheias de folhas, mas elas já estão amareladas e ressecadas e em breve cairão, deixando apenas os galhos expostos. Prédios de três a seis andares se alternam entre o Clássico e o Moderno, poucos mostram intervenções mais atuais. Quase todas as janelas estão abertas, deixando o calor do Sol entrar nas casas. No nível da calçada, pontos comerciais de distintas naturezas, supermercados, lojinhas, bancos margeiam as calçadas. Uma mistura só. Muito prático.

Após alguns minutos de pura contemplação, o taxista para o carro no acostamento de uma grande avenida. Miro a esquina e consigo ler que chegamos à famosa avenida Diagonal. Já sei que estou perto de casa. Meu coração acelera.

- Acá te dejo. Dieciséis con veinte.[1]

Entrego uma nota de vinte euros, acreditando ter ouvido algo parecido com dez ou vinte, e rogo, mentalmente, para que o valor repassado esteja entre os dois números. Um momento embaraçoso por dia era suficiente (ainda sinto a dor de cabeça consequente do trágico acidente no ônibus).

Recebo várias moedas e as deixo cair assim que saio do veículo (Típico de mim!). Recolho as que consigo encontrar na calçada e na sarjeta e me apresso para tirar a mala do carro, depois de acreditar ter perdido parte da audição com uma buzinada inesperada (Quanta impaciência!).Enfim, saio alegremente em busca do prédio de número 700, eleito o meu novo número da sorte. Não é que eu mude de número da sorte toda hora. O fato é que ele não é exatamente novo. Sofreu apenas um upgrade de sete para 700. Rio de mim mesma pelas bobagens que sou capaz de criar, até que me deparo com o tal número. Meu prédio é mais alto que a maioria das edificações que vi até então, provavelmente por estar tão perto da avenida Diagonal. E parece mais novo também. No térreo, há um banco Santander de um lado da portaria e uma lojinha de tudo por um euro do outro.

- Superestratégico, já que dinheiro e bugigangas devem estar sempre à mão. É o que sempre digo...a partir de hoje!

Corro para a entrada e uso a chave que recebi por correio há cerca de um mês, junto a minha carta de admissão da faculdade.

O hall de entrada é bem simples e não conta com porteiro. Existe apenas um sofá de couro marrom de dois lugares um pouco desgastado e uma mesinha de canto com vaso de madeira e uma orquídea de plástico cor-de-rosa (Sempre odiei flores de plástico. São tão, tão... mortas. É óbvio, mas o que mais poderia dizer!) e um espelho de piso a teto, que dá a impressão de que o espaço é maior do que realmente é. Para acessar o elevador, existe um lance de três degraus de escada ou uma pequena rampa. Aperto o botão e o elevador chega rapidamente. É bem pequeno, mas de tamanho suficiente para mim e minha mala.

Meu apartamento é o 201. Chego ao meu andar e encontro duas portas de madeira maciça e escura. Acima da porta da direita, posso ver uma placa que indica que aquele é o piso que procuro. Um suspiro de alívio profundo mostra que minha jornada chegou ao fim. Giro a chave na fechadura, abro caminho e me deparo com uma pessoa de olhos fechados, sentada com as pernas cruzadas sobre um tapete desgastado cor de jumento-quando-foge, bem no meio da sala. Velas e incensos acesos foram espalhados pelo chão e uma música esquisitíssima, tipo um banjo desafinado ou algo parecido, agride meu ouvido temporariamente sensível. A garota usa uma calça de ginástica amarela que vai até o joelho e uma camiseta larga vermelha, verde e preta (Ok! Hippie deveria estar na minha lista de restrições, mas, sem problemas, posso sobreviver a isso! Claro que posso!). Tento passar despercebida pela sala seguindo em direção ao corredor. Com certeza, serei perfeitamente capaz de encontrar meu quarto. É o sem estátuas de Krishna, cristais e pôsteres do Bob Marley.

- Você chegou! Finalmente! Meu nome é Amaya e tenho certeza de que seremos grandes amigas. - Aproximou-se e me abraçou com força. - Você tem uma aura branquinha e translúcida, assim como a minha. Seremos como irmãs! Posso prever.

Será que eu estou no lugar certo?! Irmãs...aura...Um pouco de ar fresco, por favor?! Acho que esse cheiro de erva doce ou lavanda (na verdade, não sei a diferença entre elas) me deixou um pouco tonta. Estou imaginando coisas ou dividirei o apartamento com uma daquelas personagens das novelas de Glória Peres que se passam na Índia, Marrocos ou na Cochinchina?

- Oi! Eu sou Sofia e acho que dividiremos o apartamento.

- É claro que dividiremos, mas eu faço psicologia e você arquitetura, então não estudaremos juntas, infelizmente. Dã! É claro que você sabe que faz arquitetura. - Ela choca a palma da mão contra a cabeça. - Sabia que eu pensei em fazer arquitetura uma vez, mas não consigo desenhar uma linha reta, então deixei para lá. Meu negócio mesmo é a mente humana e seus mistérios. - Ela gira as mãos no ar. - Nós somos brasileiras. Que bom, não é?! Assim não haverá choque de culturas!

Como assim não haverá choque de culturas?! Eu estou chocada desde o momento em que passei por aquela porta!

- É claro! ...auras brancas e translúcidas...não foi o que você disse?!

Minha santinha, sei que você já está fazendo hora extra, mas me dá uma ajudinha!

- Posso ver meu quarto?! Estou um pouco cansada. Depois que me instalar podemos conversar sobre como tudo isso será maravilhoso! - Tento evitar qualquer sinal de ironia.

- É claro! Você tem mesmo que se reenergizar depois de uma viagem tão longa. Quer um chá ayurvédico? É antiestressante. Feito de cravo-da-índia, cardamomo, pimenta, canela e raiz de gengibre. É muito difícil encontrar esses ingredientes por aqui, mas conheci uma libanesa que tem uma loja maravilhosa de artigos orientais. Ela tem de tudo. Posso te levar lá se quiser. Fica a uns dez quarteirões daqui, perto de uma loja de tecidos...

Chá iau...quê?! Cinco minutos! Só preciso de cinco minutos de paz! O que será que tem nesse incenso? Acho que vou vomitar...

- Não, não. Obrigada. Só preciso descansar um pouco.

Amaya me leva ao meu quarto e ao abrir a porta, esqueço o enjoo, o chá e os incensos, só consigo admirá-lo. Não é nada demais, mede uns três por três metros, um pouco menor que o meu quarto do Rio. A cama de um lado e o guarda-roupas de duas portas do outro. Sob a janela, uma mesa de madeira com duas gavetinhas. As paredes parecem ter sido pintadas recentemente num azul clarinho. A colcha da cama é estampada por flores azuis e amarelas. O dono do piso deve ter tido o cuidado de escolhê-la para que combinasse com a pintura. O piso é de madeira, como no resto do apartamento. A janela dá para uma rua perpendicular a Avenida Diagonal e que parece mais calma que ela. Pode-se ver mais a frente uma pracinha bem arborizada, com bancos, playground e mesas de jogos de tabuleiro. Nela também existem algumas mesas de madeira espalhadas, que com certeza pertencem ao restaurante logo mais a diante. Percebe-se que o clima ainda quentinho do verão que se despede permite manter-se ao ar livre, como a moça com um livro e, provavelmente, uma xícara de café e o grupo de rapazes agitados que parecem conversar sobre algo bem divertido.

- Você está bem?! Acho que precisa mesmo do chá.

- Estou sim, é que a ficha finalmente caiu, sabe? Estou em Barcelona. Viverei aqui. Como todas essas pessoas que estão caminhando lá embaixo. É como se fosse um deles. E é nesse quarto que passarei a maior parte do tempo, estudando, lendo. E ele é tão lindo.

- Maior parte do tempo. - Pausa dramática. - Estudando e lendo. - Amaya usa um olhar de reprovação. Ela é facilmente decifrável. - Eu acho que não. - E sai com um sorriso amarelo no rosto.

O que ela quis dizer com isso?

Sofia, lembre-se do que a vovó disse. Nada de julgar o livro pela capa. Você está aqui para novas experiências, conhecer pessoas diferentes e aprender com elas. E Amaya parece ser uma boa pessoa.

Só agora me dou conta de que são duas horas da tarde e que sequer almocei. Mas como diríamos eu e minhas primas depois de uma noitada:

- Não dá para comer e dormir ao mesmo tempo. Como comer engorda, boa noite!

E, finalmente, me jogo na cama, de tênis e tudo e durmo profundamente.

Capítulo 4

Toc. Toc. Toc.

Acordo bem encolhida na cama, com um frio ao qual não estou acostumada a sentir.

Toc. Toc. Toc.

- Pode entrar, Amaya! - Quem mais seria.

- Você está acordada?! - Agora estou. -­ Estava preocupada. Você dormiu nove horas seguidas e não comeu nada. Resolvi ver se estava tudo bem e, além disso, te convidar para uma festinha no piso do Antoine.

Festinha?! Não! - Ela parece já saber qual será minha resposta.

- Por favor, eu já disse que você iria e que era bem bonita. Antoine ficou ansioso para te conhecer. Ele é um gatinho, sabe?! E é francês. Você conhece a fama dos franceses, não conhece? Dizem que eles são bons amantes.

- Francês? Amante? Obrigada Amaya, mas não sei se é uma boa ideia...Eu não vim para Barcelona para namorar.

- É claro que é uma boa ideia. Já tenho tudo planejado. Eu fiz as compras e vou preparar um jantar delicioso para nós, nos maquiamos, escolhemos roupas perfeitas e vamos juntas.

Hummm...com a fome que estou, jantar não cairia nada mal!

Amaya vai bagunçando a minha mala, enquanto tento chegar à porta sem pisar em nada frágil.

- Você precisa ir conhecendo pessoas, fazendo amigos! Quer dizer, mais amigos, já que a primeira amiga você já tem! E quanto ao Antoine, não precisa se preocupar. Só falei dele, porque é bom estar acompanhada quando o inverno chegar. E é um dos caras mais cobiçados da faculdade. Ele deve ter algo de especial para deixar aquelas garotas louquinhas.

- Você venceu! Mas sem dar uma de cupido, ok?!

- Combinado! Você me conta toda a sua vida, enquanto cozinho!

Toda a minha vida em um único jantar?

- Ok! Depois me diz quanto te devo pelas compras.

- Sofia, já te falei que somos como irmãs agora! Eu cuido de você e você cuida de mim!

Acho que ela tem razão. Esse lance da gente se cuidar pode ser bem legal para quem está sozinha sem família e amigos.

- Sabe, Amaya, eu já gostei de você.

- Eu sei sim! - Lança um enorme e sincero sorriso.

Enquanto Amaya prepara uma massa vegetariana com cenoura e batatas, conto-lhe toda minha trajetória até chegar a Barcelona. Desde o dia em que decidi fazer intercâmbio até o mico do táxi e também admiti o susto que levei no nosso, digamos, primeiro encontro. Rimos muito. Amaya me explicou que não é tão hiponga assim, mas que costuma meditar e gosta de uma alimentação mais natural, fruto da convivência com seu padrasto, que havia visitado a Jamaica aos vinte e poucos anos e adotado o estilo de vida de alguns amigos que fez por lá. A camisa também era dele. Trouxe de Salvador consigo como lembrança de casa.

De fato, somos completamente diferentes, Amaya gosta de música alternativa, da noite e de experimentar coisas novas, por mais estranhas que sejam. Já eu sou metódica, focada e planejo cada minuto de minha vida, para que possa evitar o máximo de erros e tropeços. Só há uma coisa em comum entre nós duas: o apego à família e a saudade de casa.

- Vamos nos arrumar?

- Vam...meia noite! Já está muito tarde, Amaya! Perdemos a hora!

Amaya ri:

- Você tem muito que aprender. AINDA são doze horas. A galera ainda tá chegando à casa do Antoine. Don't worry, be happy![2]

Hã?! Acho que o pouco espanhol que aprendi no Brasil é do tipo paraguaio, porque está muito difícil de acompanhar!

- Mas eu tenho que acordar cedo! Tenho que ir à faculdade pegar meus horários de aula, ir ao banco para abrir uma conta, comprar roupas de frio. Mil coisas!

- Mujer, calmate! - Isso aí eu entendi!- Amanhã eu irei com você resolver tudo. Entenda que aqui meia-noite ainda não é tão tarde. Por exemplo, eu tenho aula de dez da manhã às duas da tarde e só almoço depois dela.

- Duas da tarde?! Vou desmaiar de fome no meio da sala de aula. - Rimos.

- Você vai se acostumando. Então, vamos nos arrumar?! Teremos que ir sozinhas porque Paco, meu namorado, está em seu pueblo, uma cidadezinha a duzentos quilômetros de Barcelona, onde nasceu. Foi visitar seus pais. Ele volta em alguns dias. Mas não se preocupe, porque o caminho é totalmente seguro e Antoine mora a apenas algumas quadras daqui. Mal posso esperar para apresentá-los.

Mudança estratégica de assunto!

- Sem problemas. Você e Paco namoram há quanto tempo?

- Três meses, mas é como se fossem três anos, sabe?! Estou tão apaixonada. Ele é perfeito, um gentleman. - Longo suspiro. - Vamos lá?! Senão nos atrasaremos de verdade.

Tiro todas as roupas da mala e tento organizar de maneira que sobre espaço na cama para que possa dormir nela quando voltar. Nada serve, troco de roupa vinte vezes e decido ir com a primeira que havia provado. Uma calça jeans reta e escura e uma blusa de seda verde clara que sempre me caem bem por evidenciar curvas, que na realidade nem existem, e me salvam nos momentos mais difíceis. Penteio bem meus cabelos longos e negros e os prendo num rabo de cavalo bem alto. Faço uma maquiagem simples, escolhendo um batom rosinha claro e delineador preto. Salto alto. Não quero errar na primeira festa. Opto por levar comigo um suéter leve, mesmo não estando tão frio, e acabo não me arrependendo, já que sinto uma forte rajada de vento depois do primeiro passo que dou na rua. Meus pelinhos dos braços sobem todos ao mesmo tempo. Rapidamente os esfrego com as mãos e os cruzo.

- Piel de gallina.

- Como?

- Piel da gallina. Quando a gente fica com a pele arrepiada. Em espanhol, usamos essa expressão, que significa "pele de galinha".

- Pi-el de ga-lli-na. Piel de gallina. Não vou esquecer.

Caminhamos em direção leste por uma calçada bem larga e padronizada. O que não acontece sempre na minha cidade natal amada. Para o horário, há bastante gente pelas ruas, na maioria, jovens. Provavelmente por ser uma área universitária. Depois de dez minutos, chegamos a um prédio de seis andares, revestido com tijolos aparentes, e Amaya toca a campainha. Uma voz masculina atende (provavelmente do tal Antoine. Tomara que ele não se deixe levar pelo papo de Amaya, tudo o que eu não preciso é de problemas com garotos). Ele libera a porta e vamos pela escada.

Quanto mais subimos, maior o ruído de música e vozes. Ao chegar ao último andar, depois de muito esforço, nos dirigimos à porta do lado direito que está aberta. Amaya entra sem cerimônia e a sigo. A sala é quase do mesmo tamanho da do nosso apartamento, mas está cheia de gente, louros de olhos claros, orientais, negros... Fico encantada com a mistura.

Logo um rapaz alto, de olhos bem pretos e pele branquinha como neve (porque neve deve ser dessa cor! Já que nunca vi pessoalmente. Só em filmes e documentários sobre ursos polares da Discovery) se dirige as nós.

- Amaya, mon ami! Que tal estás?

Ai que gato! Que gato! Que gato! Que droga!

Antoine beija a mão de Amaya e, em seguida, vira se na minha direção e também beija minha mão. Minhas pernas ficam bambas. (N. S. protetora das Desengonçadas, não me abandona logo agora!) Aguento firme.

- Mucho gusto!

- Muito prazer! Vejo que além de muito bonita, já fala o espanhol.

Não é que o gato fala português!

- E Você fala português muito bem para um francês.

- Minha mãe é brasileira. Do Rio Grande do Sul.

- Hum... que bom, porque na verdade o meu espanhol é bem fraco.

Filho de gaúcha com francês, combinação fatal!

- Vem, Sofia! Vou te apresentar ao resto da galera.

Dirigimos-nos a um grupo de garotas.

- Num falei que ele é um gato!

- Gato?! É um deus grego! Lindo demais! Você devia ter me deixado lá conversando com ele.

- Claro que não, Sofia! Caras como o Antoine têm as mulheres aos seus pés. Você não pode mostrar interesse logo de cara. Aliás, e aquela conversinha de que "não vim para namorar"? - Amaya faz uma vozinha enjoada e caímos no riso.

- Pode deixar que eu cuide de juntar você e o Antoine. Convencerei Paco a me ajudar, eles são bem amigos. A operação cupido acabou de começar.

Meu Pai, no que é que estou me metendo?!

Amaya começa a apresentar todas as meninas. A linda morena de olhos azuis é Úrsula. Ela é tcheca. Comunicação quase impossível, mas, apesar disso, pareceu simpática. Suzie é japonesa. Bem baixinha e gordinha. Deu-nos um forte abraço. Muito contato físico para uma oriental!

- ...e essa é Laura. Ela é inglesa e também faz arquitetura, como você.

Espero que tenha sido só impressão, mas parece que ela torceu o nariz para mim! Loirinha e abusada é difícil de suportar!

Levamos uns cinco minutos conversando com elas. Na verdade, Amaya conversa e eu observo, pronunciando alguns monossílabos de vez em quando. Logo nos dirigimos à mesa de petiscos e bebidas.

- O que você está fazendo?! Mistura de cerveja e sprite?!

- Una clara.

- Você tinha razão. Eu tenho muito que aprender. - Tomo um gole. - Deliciosa! Assim fica fácil gostar de cerveja. Ops! Cerveza.

- Vejo que já está ensinando o melhor da Espanha para Sofia, Amaya. Agora é a minha vez! Vem comigo.

Isso não foi uma pergunta, foi uma ordem. Ele tem certeza de que não irá ouvir um não como resposta. Olho para Amaya, com dúvidas se seguro a mão que me estende ou não. Sua resposta fica óbvia quando gira o corpo e começa a conversar com o rapaz que está do outro lado da mesa.

Antoine me leva até a varanda.

- Então, como estão sendo suas primeiras horas em Barcelona? Soube que chegou hoje à tarde.

Soube?! Amaya!

- Está tudo indo muito bem. Bem até demais. Amaya parece ser bem legal, me recebeu muito bem.

Acho que aquele papo de auras iguais não é tanta bobagem assim.

- Ela é mesmo uma ótima pessoa e namora um grande amigo meu, mas mudando de assunto, ficaria encantado em te levar para um passeio pela cidade. Eu também faço arquitetura e posso mostrar os lugares que mais nos interessa. Seria seu guia pessoal e exclusivo. - Antoine abre um sorriso iluminado. Os dentes brancos combinando com sua pele alva. Não consigo desviar o olhar. Forço todo o meu corpo a se apoiar no guarda-corpo de ferro e admiro a cidade. - Podemos ir ao Parque Güell, Arco do Triunfo, Sagrada Família...

- Não! - Uso um tom de voz mais alto do que pretendia e ele se cala surpreso. - Quer dizer. Eu adoraria. Seria uma grande gentileza sua. Só prefiro não ir à Sagrada Família com você. Quero dizer, com ninguém. - Pausa para decifrar o olhar de Antoine. - Olha! Não me entenda mal. É que sempre sonhei em conhecê-la, detalhadamente, sem pressa e outras preocupações. Em várias visitas provavelmente. Bom, é algo que preciso fazer sozinha. - Sinto meu rosto queimar.

A gargalhada dele é ainda mais atraente que seu sorriso.

- Vale! Não se preocupe, não iremos. Está decidido. Mas saiba que sou paciente e um dia iremos juntos. E o convite partirá de você!

Aiii! Como ele é encantador.

Credo! Pareço minha mãe falando do Orlandinho, meu primeiro "namorado". Aspas sim, porque não se pode chamar de namorado um cara que, depois de três dias juntos, acaba o relacionamento e, após mais três dias, assume que é gay. Tá! Eu sei que quando ele apareceu de sunga listrada azul bebê e rosa na praia meio que ficou claro que ele jogava no mesmo time que eu, mas tínhamos 14 anos e nessa idade, qualquer garoto parece um pouco afeminado.

Voltando do túnel do tempo, é impossível comparar esse Adônis com sotaque francês, que está aqui paradinho na minha frente, com o afeminado do Orlandinho. Tenha dó!

- Sofia! Sofia!

Saio do transe momentâneo e me volto para minha nova amiga.

- Vem comigo, preciso te apresentar ao Pedro. Ele faz questão de te conhecer.

Amaya me puxa pelo braço. Deixo Antoine para trás com os olhos fixos nos meus e um charmoso sorriso no canto da boca. Ela me leva até um garoto de estatura mediana e estilo nerd, de óculos fundo de garrafa, gravatinha borboleta, suéter verde e calça justinha.

Não sei como Amaya foi capaz de imaginar que um carinha com esse estilo causaria ciúmes no francês gatão.

- Mucho gusto.

- Olá! Amaya me disse que és brasileira. Eu sou português, opa!

Ok! Ok! Tenho consciência de que meu espanhol é meia-boca e que é aos poucos que se aprende, mas ninguém aqui está exigindo muito de mim. Até agora um francês abrasileirado e um português. As meninas não contam muito já que mal trocaram duas palavrinhas comigo.

- Isso! Brasileira.

Passo o resto da noite conversando com Amaya e Pedro, que é um cara bem legal. De vez em quando, procuro por Antoine (se fala Antoane, mas se escreve Antoine. Acabei de aprender) e muitas vezes cruzo meu olhar com o dele. Rapidamente, viro o rosto e o sinto ruborizar. A noite toda se resumiu a esse joguinho de gato e rato. Não conversamos mais, porque meu cupido esquisito ao invés de cumprir com seu serviço trivial com as flechinhas douradas e tudo mais, nos impediu de qualquer novo contato.

Acordo com um gostinho amargo na boca e constato que a tal clara não é tão camarada assim. O celular "grita" a minha música preferida, Inevitable, da Shakira. Tateio a mesinha de cabeceira em busca do aparelho e deixo algo cair.

Que não sejam meus óculos! Droga! São eles sim. Menos mal que não quebraram. Apesar de não usá-los em público, o que seria de mim sem eles na hora da leitura.

Lentamente, levanto-me e abro a cortina. Os raios de Sol ferem minhas retinas sensíveis. (Que ideia estúpida!) Fecho rapidamente.

Enfim, encontro o celular e desligo o despertador.

Saio do quarto bem enrolada na coberta da cama. O frio da manhã atravessa minha carne magra e atinge meus ossos. (Imagina só no inverno!) Chego à cozinha e começo a preparar café. Abro os armários e encontro pão. Na geladeira, há leite e ovos.

Preparar o café da manhã é o mínimo que posso fazer por Amaya, depois de uma recepção tão...calorosa, digamos. Fazer supermercado cairia bem.

Amaya entra assim que termino de arrumar a mesa e abre o seu sorriso contagiante.

- Que cheirinho bom!

- Obrigada. Aliás, obrigada por tudo. Por me receber tão bem e por me apresentar aos seus amigos. E, antecipadamente, por me acompanhar hoje.

- Não há de que, guapa![3]

Saio de casa com meu casaco bege claro, que ganhei da tia Malu. Uso tênis, temendo a longa caminhada que enfrentarei hoje. Vamos primeiro à universidade a pé, em busca da sala de assuntos internacionais, onde entrego toda a minha documentação e pego as instruções para o semestre letivo que se iniciará em poucos dias. De lá, seguimos para a agência de banco que existe no campus, exclusiva para alunos. Caminhamos ao lado de um casal de jovens que fala um idioma que nunca tinha ouvido, creio eu.

- É o catalão. Língua falada na região da Catalunha. Mais até que o espanhol muitas vezes. Nossa sorte, é que nossas turmas têm aulas exclusivamente em espanhol, mas esse idioma é usado em praticamente todo lugar aqui em Barcelona.

Não fico surpresa, porque me recordo de uma reportagem que vi na Internet sobre a cultura da província de Catalunha, da qual Barcelona é a capital. Acho até que dizia que o catalão é derivado do latim. Se for assim, não deve ser muito difícil de entender. Parece uma mistura de português com francês (Ah! Francês! O francês!).

No banco, aguardamos na fila a nossa vez de sermos atendidas. É uma agência pequenininha com apenas três funcionários. Quando sou atendida, entrego toda a documentação e num esforço tremendo, trato diretamente com a bancária, sem nenhuma ajuda de minha tradutora. Saio de peito estufado, orgulhosa de mim por feito tão grandioso.

- Agora é só diversão, Sofia! Vamos às compras! Você vai precisar de um casaco mais pesado para aguentar o inverno. Esse é lindo, mas não vai resolver.

Sinto calafrios só de tentar imaginar o frio que Amaya tenta me descrever. Sou carioca e "amofino" quando chove muito ou as temperaturas baixam na minha cidade. Não quero sair de casa e passo o dia tomando chocolate quente, que aquece o corpo e a alma nesses dias depressivos. Juro! Às vezes, tenho até vontade de chorar. Parece até sofrimento de amor, só que sem o amor, já que nunca namorei sério (estou desconsiderando o Orlandinho e, é claro, que não preciso me justificar). Ok! Paquerinhas, de vez em quando, aconteciam, mas não costumo manter uma relação sem amor só para estar com alguém ou porque acho que estou começado a gostar. Sinceramente, "acho que estou começando a gostar" é igual a "acho que não gosto dele" e, pelo menos para mim, é motivo suficiente para dar cabo da situação. E sem querer parecer "a metida", a Angelina Jolie que amarrou aquele lindão do Brad, mas é incrível como alguns carinhas acabavam sem entender e sem aceitar um fora e insistem em tentar conquistar a garota. Esse problema de orgulho ferido gerou algumas situações bem engraçadas e constrangedoras, como declarações de amor escandalosas no meio da escola ou flores e mais flores no hall do meu apartamento (Papai ficou uma fera nesse dia! Hehe).

Sei que posso parecer inflexível, muito "preto no branco", mas para mim o amor é algo mais forte que isso. Como diria meu velho amigo das horas mais difíceis, Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente...

- Falando sozinha, amiga?!

Pensei alto?! Porque eu tenho que ser tão boba assim. Declamar um soneto em voz alta, dentro do metrô.

- Hum, hum... - Limpo a garganta e inicio um assunto menos constrangedor. - Você deveria me mostrar logo quais são as estações mais importantes. É impossível comparar esse emaranhado de linhas coloridas com o metrô do Rio. É infinitamente mais complicado. Reservarei um dia para visitar a Sagrada Família e como te disse, esse é o momento mais aguardado nesta viagem, então preciso chegar lá sã e salva.

Ela me ensina direitinho as principais rotas que usarei. E deu atenção especial a que me levará até a Sagrada Família, já que irei sozinha e não poderei contar com suas habilidades de deslocamento.

Finalmente, chegamos ao lugar de que Amaya tanto falava. Uma grande loja de departamentos que vende as marcas de roupas mais famosas (pobre bolsinho!), mas, na verdade, os preços não são tão cruéis quanto imaginei. E acredito que Amaya tem razão ao afirmar que "casaco tem que ser como um bom amante. Você não vai usar toda hora, mas sempre que precisar, ele deverá estar à sua disposição". Eu faria outro tipo de analogia, mas a ideia é a mesma.

Surpreendo-me ao perceber o tamanho da loja, andares e mais andares de roupas masculinas, femininas, esportivas e infantis, sapatos, acessórios, perfumaria e maquiagem (adoro!), até um mercadinho tem dentro. Finalmente, chegamos ao andar desejado e escolho o item, sem olhar muito para os lados já prevendo a comichão que as lojas me fazem sentir. Infelizmente, não saio daqui sem um perfume Dior e um batom MAC (Só o básico, é claro!).

Ao sair da loja, passamos rapidamente pela plaza Catalunha, tiro uma foto em frente ao Hollywood Café e seguimos para Las Ramblas. Ai que emoção ver isso ao vivo e em cores! É tão intenso! Passamos por uma estátua (viva) grega prateada e mais a diante por uma banca de flores lindas. Amaya me leva até um bar de tapas[4] para o almoço. Escolhemos algumas de presunto (o famoso jamón ibérico), camarão empanado e de tomate e queijo, cada um melhor que o outro e comemos na bancada mesmo, regado a mais caña. É incrível como a cerveja é uma bebida tão corriqueira, que até acompanha as refeições do dia a dia.

Já voltando para casa, sinto o celular vibrar na bolsa. Vejo o visor e não reconheço o número. Mostro para Amaya e ela dá de ombros.

- Alô?!

- Buenas tardes, guapa! Como está minha mais nova amiga brasileira?

Reconheço automaticamente a voz de Antoine (E como não poderia?!). Tento leitura labial com Amaya e ela entende:

- Finge que não conhece. - Move os lábios e gesticula.

- Buenas tardes! Quem tá falando?

- Nossa! Não se lembra de mim. Estou magoado.

- Sinto muito. É que conheci muitas pessoas nesses últimos dias.

Principalmente, que falam português fluente.

Amaya destaca o polegar dos outros dedos, aprovando minha resposta.

- Sou Antoine. Ligo para convidar você e Amaya para um jantar francês aqui em casa. O que me diz?

- Jantar?

- Diz que não. Diz que não. - Sussura.

- Perdoname, Antoine! É que...

Amaya começa a dançar no meio do vagão do metrô. As pessoas olham incrédulas. E eu também.

- ...é que eu e Amaya combinamos de sair para dançar hoje.

- TUTZ.TUTZ.TUTZ. - Ela está fazendo uns ruídos estranhos com a boca agora e continua dançando. Começo a me afastar um pouco dela. Não quero que percebam que fala comigo.

- Vamos a uma boate muito famosa, sabe! Muito legal!

Agora já não posso disfarçar, porque aponta para mim e depois para ela, várias vezes. Tenho certeza de que até o maquinista já sabe que sou amiga da maluca do metrô.

- Uma noite de garotas. Sabe como é.

Polegares para cima. Brincar de mímica não será problema para nós.

- Entendo. Então me deixe convidá-la para um passeio amanhã. Você me prometeu que iríamos conhecer os pontos arquitetônicos mais interessantes de Barcelona, exceto a Sagrada Família, é claro. - Sinto o seu sorriso outro lado da linha. - Já que você acabou de ignorar um legítimo jantar francês, aceitar meu convite é o mínimo. Na verdade você me deve! - Ri ao final do discurso.

- Um passeio amanhã?!

Polegares saltam loucamente! Amaya tropeça na mochila de um garoto que estava sentado ao seu lado, mas se segura a tempo de evitar o pior.

- Claro. Combinado. Até amanhã! - Desligo.

Amaya pula nos meus braços. Animadíssima com o convite.

- Muito bem! Ele deve estar louco com a sua recusa. Amanhã veremos como vai agir. E quanto à boate, eu falei sério!

- Ai!!!! - Reviro os olhos e me jogo para traz, encostando a cabeça na janela do vagão.

Capítulo 5

Depois de uma noitada daquelas, tirei a conclusão de que champanhe e tequila não formam uma combinação muito confiável. O pior é evitado pelos litros e mais litros de água que bebi antes de dormir (Eu prometo ser mais firme frente às investidas alcoólicas da minha companheira de piso!). Almoçamos juntas e Amaya faz questão de escolher que roupa usarei hoje. Segundo ela, terá que ser algo confortável, porque provavelmente caminharemos muito, mas sem deixar de ser sexy, para que não tire os olhos de mim.

Reviramos nossos dois guarda-roupas e no fim das contas encontro um vestido de lã alaranjado, com o decote apropriado, em "V", mas de comprimento comportado. Uso um casaquinho de linho cru, para evitar o frio. Uma trança lateral com uma florzinha lilás no canto da nuca fecha o look.

Ouvimos a campainha.

Amaya dá uma última olhadela na sua obra e corre para atender.

- Antoine, que surpresa! Não esperava visitas.

- Olá, Amaya! Sofia não comentou que sairíamos para um passeio?

- Passeio?! Não, não! Provavelmente porque estivemos muito ocupadas ontem. Acabei de acordar. Não tivemos tempo para conversar sobre o que faríamos hoje. - Move o cantinho da boca, ensaiando um sorriso.

- Ocupadas. Eu posso imaginar.

- Hola, Antoine! Que bom que não se atrasou. - Finjo que venho do quarto, mas na verdade, estava no corredor, analisando a conversa dos dois.

Antoine segue minha voz e me presenteia com um de seus sorrisos. Seus olhos abrem um pouco mais ao me encontrarem. Ele usa um pulôver azul escuro e por dentro uma camisa branca de botão. Calça jeans de corte impecável.

Ah! A elegância dos franceses!

- Que beau! Que bela! Quero dizer. - Com certeza, minha pele pula do branco amarelado para o vermelho fogo. - Seria indelicado deixar uma mulher esperar.

Pulinhos por trás dele. É Amaya.

- Podemos ir?!

- Claro. Amaya, acho que não demoraremos muito e...

- Amaya, tardaremos bastante! Não se preocupe em esperá-la. Voltará sã e salva.

Olho para ele, depois para ela e confirmo com a cabeça.

Enquanto esperamos pelo elevador, mantenho meus olhos fixos no chão, mas sinto os seus sobre mim.

- Então como foi a noite de garotas? Divertiram-se?

- Oh! Sim. Foi muito divertido.

- Paco e eu devemos nos preocupar com algum dos milhares de homens que tentaram conquistar vocês?

A sua pergunta me surpreende. Ele fala como se soubesse que dois ou três caras tentaram se aproximar da gente. Até dancei com um deles, mas depois que tentou roubar um beijo, decidi apenas curtir a noite exclusivamente com Amaya.

- Homens?! Não. Como você disse, foi uma noite de garotas e mesmo conhecendo Amaya a tão pouco tempo, acredito que seria incapaz de trair seu namorado.

- É claro. Eu não devia ter perguntado.

Saímos do elevador e dou de cara com um BMW conversível vermelho (CONVERSÍVEL E VERMELHO!). Boba que sou, sorrio para o carro e saio pela esquerda, em direção à entrada do metrô mais perto de casa. Dou uns três passos e me vejo sozinha. Giro e encontro Antoine encostado no carro com um sorriso debochado.

Eu tinha que sorrir para o carro?! Precisarei de três vidas para esquecer esse momento! É óbvio que ele não anda de metrô ou ônibus. Ó-B-V-I-O! Homem bonito assim deve sofrer nas ruas com o assédio das mulheres! Roupas rasgadas, beijos roubados...

Faço o caminho inverso sem tirar os olhos do chão. Cavalheiro como disse ser, abre a porta para que eu entre (homem assim nunca se viu!). Ele também entra no carro, vira para mim e me encara por alguns segundos. Não consigo retribuir o gesto e viro o rosto para a rua. Escuto um risinho disfarçado.

- Aonde você pretende me levar?

- Já te disse! Todos os pontos turísticos interessantes para arquitetos, todos. Exceto, a Sagrada Família. Disso não há como esquecer. Você foi bem enfática aquele dia em minha casa.

Rio, envergonhada, lembrando como reagi ao seu primeiro convite.

Como é gostosa a sensação do vento no rosto. (Clichê, eu sei, mas é muito bom mesmo!) É como estar numa montanha-russa, tirando o medo do coração sair pela boca. Dá para aproveitar cada momento. Fecho bem meus olhos e fico simplesmente curtindo o calorzinho do Sol no meu corpo.

- Você é linda, sabia?!

O encaro, me perguntando o que ele viu em mim. Uma boba que nunca andou de conversível e, ainda por cima, que sorri para o carro.

O carro diminui a velocidade e finamente para. Ele se apressa para abrir a minha porta. Eu simplesmente assisto à gentileza. Antoine me oferece a mão e seguimos assim pela calçada. Viramos a esquina e vejo algo incrível. É o ...

- Parque de Montjuic! Significa "Monte de los judíos". Chama-se assim porque nessa montanha há um antigo cemitério judeu.

Subimos até o Castillo (castelo) de Montjuic. Uma construção originada no século XVII e onde hoje funciona o Museu Militar. Antoine pergunta se quero visitá-lo, mas prefiro não ir, apesar da beleza do local. Carabinas, canhões e mapas estratégicos não me atraem muito. Ele concorda e diz que eu não combino com o ambiente bélico. Seguimos pelos caminhos que sobem a montanha, passando pelo parque olímpico construído para os jogos de 92.

- Fale-me sobre você, Sofia. Tenho muita curiosidade em conhecê-la.

- Curiosidade?! Sinto te decepcionar, mas não há muito que contar. Nasci no Rio e amo àquela cidade. Gosto de caminhar na praia, ir ao jardim botânico. Meus arquitetos favoritos são Calatrava, Niemeyer e Gaudí. Também amo Dalí e Miró, sua arte é incrível. E é principalmente por isso que vim a Barcelona. Para conhecer a obra dos meus ídolos.

- Compreendo melhor seu fascínio pela Sagrada Família agora. Quanto a caminhar pelas praias do Rio de Janeiro, fica difícil de acreditar com essa pele alva de anjo.

Rio, desconcertada. Antoine é realmente encantador. Capaz de deixar qualquer mulher fascinada com tanta elegância e charme, mas existe alguma coisa que não encaixa. Não sei bem e também não quero me precipitar e impedir que algo realmente bom aconteça (Coração aberto, Sofia! Só posso ter certeza se tentar). Chegamos a uma espécie de mirante e passo pelo momento mais especial vivido em Barcelona até agora. Daqui vemos o mar, a praia e a cidade (É incrível!). Meus olhos marejam com o choque de realidade (estou em Barcelona!) e sinto um dos braços de Antoine por sobre meus ombros e o outro passando pela minha cintura. Apoio o rosto em seu peito forte. Decido jogar tudo para o alto e curto cada segundo desse passeio, dessa emoção.

Enquanto voltamos para buscar o carro (Conversível! Como esquecer?!) de Antoine, conversamos sobre milhares de coisas. É tão natural! Ele me disse que nosso próximo destino também será uma surpresa. Como já é fim de tarde, não consigo imaginar que outro ponto da cidade poderemos visitar. E para a minha surpresa, paramos em frente a um hotel chiquérrimo.

Meu Deus! Não é possível que,porque o deixei me abraçar e tivemos um momento especial, ele já esteja pensando que vá rolar algo mais sério. Será que as coisas na Europa são assim tão rápidas?!Eu devia ter imaginado! Tá vendo no que dá não se preocupar em deixar as coisas claras, ter certeza do que se está fazendo.

- Buenas tardes, tenemos uma reserva em nombre de Antoine Duchamps.

Eu me recuso a entrar em um quarto! Eu me rec...

- Su mesa és en el balcón, como ordenaste, señor Duchamps.

Mesa?! Ouvi bem?! Entramos no restaurante do hotel (como eu sou ridícula!). Pelo menos entendi bem o que diziam. Chegamos à mesa, a vista da sacada é de outro mundo. Uma brisa leve permite que fiquemos ao ar livre sem sentir frio. Antoine não deixa que o garçom puxe a minha cadeira. Ele faz questão (ainda não acredito que ele seja real). Sugere um prato e eu aceito, já evitando a tragédia que seria se eu mesma escolhesse.

Espero a saída do garçom e comento:

- Antoine, esse lugar é incrível! Deve ser caríssimo!

- Fico feliz que tenha gostado e você é minha convidada, não quero que se preocupe. Ainda há muitos lugares para conhecer e promessa para mim é dívida. Vamos a todos eles.

- Não, Antoine. Faço questão de dividir...

- Sofia, assim você me ofende. Vamos esquecer esse assunto.

Prefiro não argumentar mais depois de ouvir seu tom firme do tipo "fim de papo".

Somos servidos e inicio um novo assunto:

- Há quanto tempo você vive em Barcelona?

- Três anos, iniciei meus estudos na faculdade aqui, não faço intercâmbio como você ou Amaya, sou um aluno comum.

- Eu não sabia disso. Você não sente saudade de casa? Quero dizer, ficar tanto tempo longe deve ser difícil?

- Na verdade, nem tanto. Eu nunca convivi muito tempo com meus pais. Não que sejam relapsos, mas o trabalho exige muito deles, são viagens e mais viagens. E para evitar que passasse por essa rotina forçada, eles preferiram me deixar em Paris com os empregados. Não tive irmãos, então se pode dizer que sou um solitário. - Seus olhos não passam a mesma tranquilidade que seu tom de voz.

- Nossa! Eu te entendo, mas isso seria o fim do mundo para mim. Sou daquelas que vive grudada na família. Se fosse possível, voltaria para casa todas as noites para um beijo antes de dormir dos meus pais, do meu irmãozinho e da minha avó querida. Ela é meu xodó.

- Eu invejo você, sabia?! Ter laços assim tão fortes com a sua família. Então, porque você decidiu cruzar o Atlântico? E por tanto tempo?

- Foi uma decisão difícil, mas eu quero conhecer o mundo, viver coisas diferentes, sentir novas emoções. Quero ficar velhinha e ter memórias inesquecíveis. Não sei se você entende, mas quero ter certeza de que fiz valer a pena. Ah! Eu pareço uma boba falando assim.

- Você não é boba. Na verdade, você é muito especial, mademoiselle!- Sinto que Antoine me observa com admiração. Depois de alguns segundos, ele ergue a sua taça de vinho para um brinde. Eu o acompanho no movimento.

- E você não é solitário. Você tem muitos amigos. Laura, por exemplo, a inglesa que conheci em sua casa. Ela parece gostar muito de você.

Ele desconversa.

- E você?! Você é minha amiga?!

- É claro que sim. Principalmente, depois de hoje.

- É um bom primeiro passo.

Primeiro passo?!

- Primeiro passo?!

- Você verá.

Chegamos à porta de minha casa. Saio do carro (um BMW conversível! Será que eu já disse isso?!) e ele me acompanha até a portaria do prédio, entra comigo e aperta o botão do elevador. Está muito escuro e só consigo identificá-lo, porque está iluminado por um facho fraco de luz que entra pela porta de vidro da rua.

- Antoine, adorei nosso passeio. Muito obrigada pela gentileza.

- Repetiremos em breve.

Ele se aproxima um pouco. As batidas do meu coração disparam (acho até que pode ouvi-lo). Acaricia meu rosto, partindo da bochecha esquerda até meu queixo. Respiro rapidamente. Seus olhos estão nos meus e sua boca bem próxima a minha e (por mais inacreditável que isso possa aparecer) eu viro o rosto e me despeço.

- O passeio foi maravilhoso e depois jantamos num hotel chiquérrimo... - Conto cada detalhe. - mas...

Ela está de cabeça para baixo, fazendo uma posição esquisita de yoga.

- Eu sabia! Vocês foram feitos um para o outro. Acho que teremos essa situação resolvida antes do começo das aulas. Dessa vez eu me superei. Espera um pouco, mas?! Mas o que, Sofia?! - Amaya se desequilibra e cai de costas no chão. - Aiii!

- ... mas ele quis me beijar e eu virei o rosto. - Respondo minha amiga enquanto a ajudo a levantar.

­- Virou o rosto?! Ok! Entendi! Você quer deixar um gostinho de quero mais, não é?! Deixá-lo na vontade. Muito bem pensado.

- Não, Amaya. Não é isso. É que... que... eu não estava segura se deveria acontecer, sabe?! - Tento explicar enquanto a ajudo a levantar.

- Não. Não sei, não. Porque você não se permite experimentar de vez em quando? Chega de achar, você precisa começar a saber. E para isso, agir é essencial.

- Eu não quis me precipitar (não sei quantas vezes vou repetir isso!).

- Bueno, tu lo sabes[5]. Lavo minhas mãos.

Estou na cama, mas não posso dormir.

Ah! Minha Santinha, porque não consegui beijá-lo?!

Dispensar o beijo de um galã de cinema (francês ainda por cima!). Só na próxima encarnação, um garoto perfeito como esse irá se interessar por mim novamente. Eu devo ter caído de cabeça quando bebê e mamãe não teve coragem de me contar, com vergonha de assumir que a culpa de eu ser assim é dela (só isso explicaria minha falta de bom senso!). Vou perguntá-la na próxima vez que conversarmos. Aliás, está mais que na hora de ligar para casa, conversar com a família. Dá última vez que falamos, não tardei sequer cinco minutos. Tempo suficiente para provar que cheguei sã e salva.

- Alô, mãe?!

...

- Calma, mãe! Estou bem sim! Nem um resfriado, eu juro. Não precisa gritar.

Descontrolada, como sempre!

- As aulas começam próxima segunda. E como andam as coisas por ai?! Papai já se acostumou com a ideia de que eu não volto tão cedo?

...

- Haha. Sei sim! Ele é meio cabeça dura mesmo. E a vovó? Posso falar com ela.

...

- Tá bom, mãe. Eu me cuido. Não preciso de nada. Tá tudo sob controle.

...

- Também te amo, mamãe! Não! Não chora! - Engulo o choro.

...

- Vozinha! Como é que a senhora tá, hein?!

A voz dela é tão fraquinha.

- Estou feliz sim, minha velhinha. Você sabe que esse é meu sonho. E só estou aqui por sua causa.

...

- Está tomando todos os remédios? Não vá esquecer! Se eu souber que a senhora anda deixando de tomar algum deles, eu volto! É uma ameaça!

Ela se exalta.

- Tá certo! Não volto! Mas falo sério quanto aos remédios, vozinha!

...

- Durma bem. Te amo muito. Beijo para o Ricardinho e para o papai.

Desligo e, finalmente, me permito chorar. Espanha pode ser o sonho da minha vida, mas o mais importante dela ficou lá no Brasil.

As aulas começam em poucos dias. Antoine não deu sinal de vida desde o nosso passeio, e, apesar de Amaya estar queimando todos os seus neurônios para entender porque ele sumiu, eu tento não me preocupar muito com isso, afinal, nós nunca daríamos certo juntos. O céu está vestido de azul clarinho e sem uma nuvem sequer e, enfim, terei o dia totalmente dedicado ao tour que tanto aguardei, vou a Iglesia de la Sagrada Familia e, hoje, nada abalará minha alegria. Hoje, o homem da minha vida se chama Gaudí.

Saio pelas ruas, a caminho da estação de metrô. As pessoas parecem mais felizes que de costume, talvez pelo dia ensolarado que aqueceu o coração dos europeus (ou talvez eu os esteja contagiando com meu bom humor).Repasso mentalmente as instruções que Amaya me deu para que chegue à Sagrada Família com o Sol ainda presente, palavras suas (uma mulher descrente). Sei que nos últimos dias me perdi umas duas ou (hummm...) vinte vezes, mas um pouco de fé não viria mal. Além do mais, estudei o mapa do metrô da cidade incessantemente para já não depender de Amaya ou dos vários espanhóis que insistiram em falar em catalão, até informar que sou brasileira, ouvir palavras como Samba! ou Capirinha!, e implorar pelo espanhol.

Pego a linha verde sentido Canyelles, troco pela azul em Sants Estació, que está abarrotada de gente, e desembarco na estação Sagrada Familia (Rá! Consegui! Quem é a desorientada agora?!).

Fantástico! Simplesmente fantástico! Surpreendo-me por caminharme distanciando ao invés de correr em sua direção, como havia imaginado todos esses anos. Tento apreender o edifício de uma só vez, o que é difícil levando em conta o meu tamanho e o da igreja. Isso faz com que o meu desejo em conhecê-la se torne cada vez maior. Ela me provoca, me faz girar e me contorcer para sentir cada detalhe e me surpreender a cada passo que dou. Ela é linda! Muito mais que eu imaginei e muito mais que alguém possa descrever.

Após dar voltas e voltas ao seu redor, me aproximo e começo a ver os detalhes, os volumes, as variações estéticas drásticas (Uma obra de arte e mais que tudo um templo divino). Finalmente, me permito entrar, desejando ver o que mais pode haver de surpreendente. E mais uma vez ela se supera.

Sigo um grupo para não me permitir ficar horas admirando o mesmo vitral ou o mesmo desenho original de Gaudí dos vários que existem no museu. Após visitá-lo, decido subir a uma das torres. A fila é grande e tenho fome, são quase duas da tarde (isso é algo realmente difícil de acostumar). Almoçar depois das duas é um sacrifício que só sou capaz de enfrentar por um momento tão esperado como esse.

Falando em almoço, que vontade de uma feijoada, viu?! Hoje, lá em casa deve tá rolando a feijoada maravilhosa da Nice. Hummm...que saudade do tempero dela! Dá para engordar só em sonhar com a mesa farta.

Levo um cutucão por trás, viro e um senhor velhinho, um metro e meio de altura, de cara feia aponta para frente. A fila andou e está a uns três metros de distância. O rapaz que deveria estar logo diante de mim na fila ri da minha situação (um belo rapaz diga-se de passagem, mas muito mal educado, rindo dos outros assim). Fecho a cara e o seu sorriso se enlarguece ainda mais e, em espanhol, faz um comentário.

- Día difícil?

- No! Estava bien, até encontrar con un viejito mau y un bromista[6]. - Respondo em portunhol.

Ele volta a sorrir.

- Bueno! Los viejitos pueden ser malos. Ten cuidado.

- E o que deveria fazer com os piadistas? Jogar de cima da torre? - Falei em português e para mim mesma.

- Eres bella y graciosa. Brasileña? - É isso mesmo? Ele disse que eu sou bonita e que suja de graxa? [7]

Só falta ele também gritar: Carnaval!!! Biquíni!!!

- No creo que seja de su cuenta. - Agora ele gargalha. Dentro da catedral o ruído ganha força e todos nos encaram.

Envergonhada, resolvo enfiar a cara nos folhetos que colhi na entrada e ignorar completamente o gato...ou melhor... o chato ao meu lado até que minha vez de subir a torre chegue, mesmo percebendo que ele não tira os olhos de mim, faz comentários de vez em quando e ainda tem a audácia de também ler os meus folhetos por sobre os meus ombros.

Ah! Vá procurar seus próprios folhetos!

Depois de quase uma hora de tortura, entro no elevador. Infelizmente, eu tenho o grande problema de só lembrar que tenho medo de altura depois que eu já me meti na furada (e a subida é panorâmica, minha gente!). Seguro-me com todas as forças no que encontro (leia-se, no braço do senhor de cara feia da fila) e rezo.

Deus não deixaria uma tragédia acontecer em Sua própria casa, não é verdade?! Ainda mais que o Papa deu uma passadinha por aqui e transformou o lugar em uma basílica.

Todo o medo é superado quando chego à torre e posso ter uma visão privilegiada da cidade. Tão ou até mais bonita que a do Montjuic (que conheci há alguns dias com o Don Juan que tomou doril). Chego mais perto do parapeito e olho para baixo (Ah, não! Para baixo, não!). Sinto as pernas perderem as forças e minhas mãos não encontram apoio, a visão fica turva e a única coisa de que tenho consciência é da queda certa de uma altura de dezenas de metros. Já posso até ver nos jornais do Brasil:

Extra! Extra! Carioca desastrada morre após ter vertigem na Sagrada Família.

O mico do ano! Ainda bem que eu vou estar mortinha mesmo!

Mas... até que o chão não é tão duro quanto imaginei que fosse. Na verdade, ainda estou viva! Sequer cheguei a desmaiar e recupero as forças aos poucos. Sinto um leve tapa no rosto. (Tapa?!)

- Chega! Estou bem! - Escuto uma risadinha. Acho que eu a conheço!

Abro os olhos e vejo o mesmo garoto da fila (Que abuso!), mas ele é tão lindo que isso acaba nem me importando tanto. Alguém me oferece água. Não tiro os olhos dele e o vejo me levando nos braços até um lugar onde possa me sentar. Ao ar livre e assim tão próximo, consigo ver que tem os olhos verdes, a pele num bronze perfeito, além dos cabelos louros que já tinha notado. É como se tivesse acabado de sair uma daquelas séries americanas que se passam na praia de Malibu ou Miami ou sei lá onde! O corpo atlético o permite me segurar sem muito esforço. A boca é bem marcada e vermelha (um sonho!).

- Estás bien?

Meu amor, melhor impossível!

- Si, gracias.

Ele acaricia meu rosto e sorri. Acabando com qualquer sinal de que um dia houve juízo na minha cabeça, eu o beijo!

Mas o que é que deu em mim?! Valei-me, minha santinha protetora das desmioladas!

Ele correspondeu! Ele também está me beijando! E é o melhor beijo da minha vida. Nossas bocas se encaixaram perfeitamente, como se tivéssemos praticado por anos e anos. Tudo mais se apaga. É como se estivéssemos sozinhos, flutuando. Somos só nós dois e a cidade toda aos nossos pés, nos contemplando.

- Hum...hum.. - Alguém pigarreia e nós nos afastamos. A sensação é a mesma de acordar de um sonho bom, daqueles que a gente tenta dormir de novo e continuar de onde parou. Adivinha só quem é o estraga prazeres. Ninguém mais, ninguém menos que o velho rabugento da fila.

Vai ser inconveniente assim bem longe, viu! Só pensei.

Volto meu rosto para o responsável pelo meu momento de loucura e o encontro me olhando com uma expressão de quem não acredita no que aconteceu. Eu também custo a acreditar.

- Mucho gusto! - Ele sorri o sorriso mais lindo de todos. - Me llamo Francisco. - Identifica-se e estende a mão para o comprimento.

- Mu...mu..mucho gusto!

A situação é até engraçada. Um aperto de mãos, após um beijão daqueles.

- Bajamos? Te ayudo. - Ele me conduz até o elevador, mas não tiramos o olhar um do outro.

Chegamos à pracinha que fica de frente a igreja. Ele me acomoda gentilmente em um banco e sai.

- O que foi que deu em mim?! Cadê a Sofia responsável? Que não se arrisca?!

Volta com uma garrafa de água e me entrega. Bebo sem acreditar em tudo o que aconteceu nesses últimos dez minutos. Junto à garganta, todo meu corpo esfria e parece que os fatos entram em ordem na minha cabeça. Eu, logo eu, fui capaz de algo tão maluco e tão...tão lindo! Um beijo cheio de emoção, num lugar encantado como aquele (Meu Deus, por favor perdoe-me se pequei, foi sem pensar). Meu coração dispara ao me lembrar de cada detalhe e para de vez quando a mão dele pousa sobre a minha.

- Un beso magico! Nunca me pasó algo así. - Francisco olha profundamente nos meus olhos enquanto diz que o nosso beijo foi diferente de tudo o que havia vivido.

Fico atônita, não esboço qualquer reação. Apenas o admiro, dou um beijo em seu rosto e disparo em direção à estação de metrô.

- Qué pasa?! No te vayas.

O escuto me chamando de volta, mas minhas pernas acabaram de assumir o controle da situação (Ótimo! Minhas pernas estão decidindo minha vida amorosa agora?!). Entro no primeiro vagão que encontro, a porta se fecha e o vejo a poucos metros de distância, me observando partir.

[1] Aqui te deixo. Dezesseis euros e vinte centavos.

[2] "Don't worry, be happy!" significa não se preocupe, seja feliz! Só que em inglês.

[3] Guapa significa bonita. Equivale ao "gata"que costumamos usar entre meninas ou o "linda", usado por garotos.

[4] Petiscos tradicionais espanhóis feitos de fatias de pão e algum outro alimento como cobertura. Chama-se assim, pois inicialmente usavam o pão para cobrir o café, protegendo-o de moscas. Arg!!!

[5] "Bom. Você é que sabe!" Foi o que ela disse... "Bom. Você é que sabe, sua burra!"foi o que ela pensou.

[6] Bromista quer dizer piadista. Não disse palhaço, porque ainda não aprendi essa palavra.

[7] Depois vi no meu dicionário que graciosa significa engraçada.

Faça o download do livro completo em:

http://www.amazon.com.br/Um-sonho-Duas-cidades-amor-ebook/dp/B00MMX1ZBG/ref=sr_1_2?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1407979411&sr=1-2

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