Um pedaço de mim

By finchm

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O que você faria se tivesse deixado o amor da sua vida escapar? Para Olívia, sua melhor opção foi seguir em f... More

(Parte 1)
(Parte 2)
(Parte 3)
(Parte 4) - O dia seguinte
(Parte 5) - O outro lado
(Parte 6)
(Parte 7) - Uma volta no tempo
(Parte 8)
(Parte 9)
(Parte 10)
(Parte 11) - Sucumbindo
(Parte 12) - Procura-se: Olívia
(Parte 13)
(Parte 14) - O início do recomeço
(Parte 15) - Volte três casas
(Parte 16)
(Parte 17) - Laceração
(Parte 18)
(Parte 19)
(Parte 20) - Divisor de águas
(Parte 21)
(Parte 22) - Apenas diga que não me deixará
(Parte 23) - Ingratidão
Epílogo
Agradecimentos

(Parte 24) - Por você, eu faria

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By finchm

          Meu corpo todo tremia diante do que estava a minha frente. Minhas mãos aplainavam sobre Kris, sem saber ao certo o que fazer. Seu sangue já molhava minha calça onde eu havia ajoelhado e a impotência referente àquela situação apenas crescia. Com o coração vindo à boca, aproximei minha mão de suas narinas, mas não consegui sentir sua respiração. Em desespero, levei dois dedos em direção a sua carótida, na esperança que eu ainda pudesse, ao menos, sentir seu pulso, mesmo que fraco. Não senti.

          Um potente grito saiu de minha garganta, rasgando toda minha carne ao procurar por uma saída. Como aquilo tinha acontecido? Corri para o banheiro em busca de uma toalha e agarrei o primeiro pano que achei, voltando para a entrada e enrolando o ferimento de Kris com o mesmo, a fim de estancar o sangramento. Conseguindo dar um nó em volta de sua barriga, levantei em busca de um telefone e liguei para a emergência. Encarei seu corpo inerte no chão; seus olhos fechados, sua expressão neutra e seu peito sem se levantar. Olhei para o lado e encarei a porta aberta por onde o canalha havia escapado.

          Meus pés impulsionaram meu corpo para cima e caminhei em direção à saída com uma extrema determinação de caçar a minha presa em qualquer canto que ela tivesse fugido. Desci os degraus sentindo meu corpo quase que anestesiado por um ódio cego, mas que não me impediu de sentir o quente sob meu pé. Ao olhar para baixo, me deparei com a mesma arma que atingiu Kris há poucos segundos.

          Covarde! Daniel havia vindo para desgraçar com o resto de sanidade que eu ainda mantinha e não teve a coragem para terminar o que planejou. Ameaçou-me de morte e tirou a vida de quem eu amava. Eu não o deixaria sair de Floratta Bay, nem que fosse a última coisa que eu fizesse.

           Apossei-me da arma e, parecendo medir a rota mais comum que ele poderia traçar, prossegui meu caminho em direção à cidade. Andava a passos largos e decididos, tendo em mente que ele não poderia estar longe e era um forasteiro, enquanto eu era nascida e criada naquele lugar.

          Deixei que o vento congelasse meu rosto e minha pele exposta, meus pés já não mais reclamavam do atrito no concreto e minhas mãos não mais balançavam trêmulas, eram firmes como as de um cirurgião plástico de prestígio. O céu trovejava, ameaçando deixar um dilúvio desaguar a qualquer instante e, ao mesmo tempo, respingava pequenas gotas, como se comedisse um choro que lhe prendia o fôlego. As nuvens aceleraram o cair da noite, deixando que os postes de luz iluminassem o caminho.

— Olívia? O que está fazendo? — Desacelerei o passo quando percebi que as ruas não estavam tão vazias assim. Sem parar de andar, encarei as figuras ao qual já ultrapassava.

— Ele está aqui. Ele está aqui e tirou Kris de mim! — Não me deixei desesperar, ele iria pagar, eu iria fazê-lo pagar.

          Serena e Karine começaram a andar a meu encalço, certas de que o melhor era supervisionar a louca segurando uma arma e com roupas ensanguentadas, em vez de discutir comigo. E eu não protestei. Continuei a seguir até a parte do cais mais próxima dali. Meus pés, no entanto, travaram no momento que enxerguei aquela sombra correr em direção a um canteiro de obras. Com meu grito superando o trovoado dado pelo céu, corri até o campo onde Daniel parara ao meu ouvir.

           Diante de seu semblante sarcástico e risonho, mirei o cano da arma em seu rosto de uma distância que sabia que nunca iria acertar, mas que me dava um controle sobre ele. Daniel rira, batendo palmas como se estivesse assistindo a um espetáculo, enquanto Karine e Serena me pediam para parar.

— Cala a boca!

— Está bem, está bem. — Seu sorriso se desfez e ele deu um passo a frente. — Assim está melhor? Precisa que eu me ajoelhe ou vire de costas?

— Eu mandei calar a boca!

— Ora, um homem não pode ter a cortesia de suas últimas palavras? Quer dizer, levando em conta que você vai atirar, claro. Você vai? — Riu. — É claro que não. Se você é a Olívia que eu conheço... — Andou lentamente para a direita, apontando seu dedo para mim enquanto balançava a mão, e eu o segui com a minha mira. — Você continua sendo a figura patética de mulher. Não pensa por si, não age por si e não tem a coragem para puxar esse gatilho.

— Eu disse para ficar quieto! — Vociferei, destravando a arma.

— Sei que você age como vítima para as pessoas terem pena de você, afinal, esse é o único jeito de você ser amada. Como todas as outras prostitutas e arrasadoras de lar, a sua existência não passa de um mero erro da natureza. Por que você não nos faz um favor e vira essa arma para sua cabeça?

          Ele não estava certo, Daniel nunca estaria certo. Mas por que meu corpo dizia que aquilo era verdade? Ele tinha feito o que eu temi em todo o meu percurso; desfeito meu ódio e substituído por um sentimento de fracasso e fraqueza. Meu braço perdeu as forças de sustentar aquela arma e deixei que as lágrimas em meu rosto marcassem minha derrota. Não podia usar o que estava em minhas mãos para tirar sua vida, pois a minha iria junto. Eu não poderia me perder, não quando tentava manter quem eu era na claridade. Não poderia me render aos demônios, nem meus e nem os dele. Daniel era aquela pessoa que sempre ganhava no final, ele sempre conseguiria achar um jeito de levar a melhor.

— Céus! Essa mulher não cansa de ser desprezível! Você me enoja.

          E apenas assim, Daniel estava no chão. Em um segundo sua voz enchia o ar de arrogância e sarcasmo e, três estalos depois, jazia inóspito na grama. Meus olhos se arregalaram em direção a Serena que, então, abaixava a arma que puxara da minha mão, encarando o espaço que uma hora Daniel compusera.

— O que você fez?! — Gritei e corri em direção a Daniel. Seus olhos abertos então eram separados por um buraco que mais parecia um vulcão em erupção, irrompendo seu rosto com um sangue vermelho vivo. Os outros dois disparos se fizeram na altura do coração, sendo tão certeiros que não tinha mais volta. Tinha vontade de vomitar.

— Caralho, Serena! Caralho! — Desesperei-me. Minha única vontade era que aquele homem pudesse ser extinto da face da terra e, no momento que ele fora, eu desejava que não tivesse sido por nossas mãos. — O que vamos fazer?

          Ao redor de seu corpo moribundo, encaramos as faces de total despreparo uma das outras. Serena não mostrava nenhum arrependimento, o que me aterrorizava.

— Por que você fez isso? — Minha voz saiu em quase um sussurro. De longe, pudemos ouvir sirenes se aproximando, o que só fez nosso desespero aumentar.

— Meu Deus! Caralho, porra! — Minha mente não processava nada além de palavrões e maldições. Pelo dia que eu nasci, pelo dia que conheci Daniel, pelo dia que o traí e, principalmente, pelo dia que voltei para Floratta e trouxe comigo todas as coisas ruins do que pensei ter sido meu passado.

— Eu não ia deixar ele acabar com você!

— Nós precisávamos dele vivo! Kris está morto e ele também! Qual é a droga do sentido, Serena?

— Esqueçam! — Karine gritou. — Estamos sendo burras, precisamos esconder o corpo.

— O quê? Além de matarmos, você quer adicionar ocultação de cadáver em nossa ficha?

— Olívia, preste atenção! Foi você mesma que disse que esse cara consegue se livrar de tudo, ele nunca seria preso! E o que está feito, está feito! O que não podemos fazer é ficar aqui como se tivéssemos dando uma festa. A qualquer momento alguém pode aparecer.

— Isso está errado. Completamente errado!

— Olívia! — Repreendeu-me. — Vamos enterrá-lo. Pegue as pernas dele e você o braço, anda!

          Mesmo sem acreditar no que estava acontecendo, fiz o que Karine mandou. Com dificuldade, arrastamos Daniel até o grande buraco que, então, seria um novo mercado ou um comércio qualquer da empresa estrangeira que Floratta deixava invadir seu território. A construção parecia ter andado um pouco desde a última vez em que a observara e os equipamentos ainda rodeavam a área, protegidos por uma fita que pedia a não ultrapassagem.

          Levamos o corpo de Daniel até a beirada e o empurramos até que caísse no fundo, onde estrondou sobre o concreto, fazendo todos meus pêlos se arrepiarem. Quando menos percebi, Serena e Karine empurravam um tambor misturador, se aproximando de mim.

          Serena limpou com sua própria blusa as digitais na arma e, sem a tocar diretamente, jogou sobre o corpo de Daniel. Em seguida, ligaram a máquina e despejaram uma enorme quantidade de concreto no buraco escavado. Era simplesmente de outro mundo ficar parada ali, esperando que houvesse massa suficiente para encobrir por completo o corpo de Daniel. A chuva que continuava ameaçando a cair também não era um bom indicativo que todo aquele plano lunático daria certo.

— Peguei o celular e os documentos dele. Precisamos dar um fim a qualquer rastro que ele tenha deixado aqui. — Karine concluiu, nos separando em tarefas. Ela iria atrás do armazém que aparentemente Daniel alugara, de acordo com o ticket em sua carteira, e Serena iria descobrir se ele havia chegado através de uma empresa de táxi ou com um carro locado. Iriam apagar a existência dele naquele lugar e eu me perguntava como iria explicar o ataque a Kris. A quem eu apontaria o dedo? Ao menos teria alguém?

          Levantei o olhar para elas, os olhos cheios de lágrimas.

— Isso não pode estar acontecendo... — Sussurrei.

          Karine me segurou pelos ombros e me abraçou apertado. Quando se afastou, pegou na mão de Serena e na minha, nos obrigando a fazer um estranho círculo.

— Precisamos jurar que nunca vamos falar sobre isso com ninguém. Okay? Apenas... Aconteceu. Mas nós ficaremos juntas até o fim, essa é a minha única certeza.

          Concordei brevemente com a cabeça, meus pensamentos pairando longe dali, como se eu observasse toda a cena do alto e previsse que não ficaríamos nada bem.

— Nós lutamos pelo o que amamos. — Serena disse antes de levantar seu dedo mindinho no centro da roda, encarando meus olhos entorpecidos. — Isso não sairá daqui. Prometam.

          Antes que pudesse raciocinar, havia selado um pacto. Omitia o verdadeiro assassino de Kris, omitia o verdadeiro destino do meu ex-noivo. Estava ligada para todo o sempre àquelas mulheres que me protegeram e me vingaram da forma mais extrema. Nunca mais duvidaria de suas lealdades ou acreditaria nas palavras imundas que Daniel tão insistentemente quisera me rotular.

          Quando finalmente chegamos àquela conclusão e contemplamos, com nossos próprios olhos, que Daniel estava extinto e sua carne apodreceria em qualquer inferno onde ele fosse parar, um suspiro se desfez do meu corpo. Um último suspiro de atemorização.

***

          Tomei o caminho de volta para casa tentando não pensar nos últimos acontecimentos. Meu corpo se movia no automático ao trilhar meus passos na calçada, mesmo com minha visão turva e minha mente relembrando todo o sangue e pedaços de Daniel que eu havia visto de tão perto.

          Engoli a saliva que se formava em minha garganta e parei de andar já sabendo o que viria depois. Caí sobre o jardim de alguém e despejei tudo o que tinha em meu estômago, me sentindo ainda pior após fazê-lo. Rolei para longe do vômito e, mesmo com a chuva caindo em grossos pingos, deixei se manifestar o que eu vinha prendendo. Meu rosto se contorcia e se enrugava com meu choro, esse que se misturava às gotas que já me encharcavam.

          Não queria continuar. Voltar para casa e não encontrá-lo. Ter que dar explicações para a polícia, temer que algum vizinho próximo estivesse por perto na hora e ouvido tudo, dar a notícia para seus pais. Aquilo tudo era muito! Eu não aguentaria passar por nada disso, não quando minha única vontade era de sumir da face da terra. Se eu ao menos acreditasse numa vida após a morte, minhas esperanças de que um dia eu e Kris iríamos voltar a nos ver não seriam ilusórias. Mas só aquele pensamento cutucou a ferida: eu nunca mais o teria e a última coisa que eu fiz fora duvidar do seu amor por mim e de minha confiança por ele.

          Eu fizera tudo errado. Desde o princípio. Nos separando sem ao menos tentar uma segunda opção, empurrando o único que estivera sempre ao meu lado, desde da primeira vez que caí e ralei meu joelho até o dia que caí e quebrei minhas costelas. Eu sempre pude contar com ele. E no único momento em que ele precisou de mim, eu não consegui domar a fera. Pior, eu abati a fera por vez, e ela nunca pagaria por seus atos.

          Ficar ali, naquele gramado, observando a chuva levar o que hora estivera no meu estômago, era o que eu menos queria fazer. Ainda, era a única coisa que não me pedia esforços.

           Ficar ali, naquele gramado, e sentir inveja do que me molhava, era mais interessante. Tinha inveja daquela chuva que me lavava, lavava a rua, os jardins e os telhados. Tinha inveja do que ela representava: renovação; era o que eu pensei que iria conseguir ao me mudar para Floratta após fugir de Daniel — ou achado que havia fugido. Tinha inveja do simples fato de que, ela chegava, molhava, renovava e evaporava. Não teria que enfrentar obstáculos para sobreviver, não. Ela só vinha, cumpria sua parte, nos lembrava de sua magnitude e ia embora.

          Fechei os olhos e virei para lado, mentalizando que poderia voltar no tempo ou ao menos congelá-lo, já que não podia virar chuva. Adiar o sofrimento do real parecia uma opção reconfortante, o resto do mundo poderia esperar que eu me recompusesse, o mínimo que fosse. Só precisa de um instante...

— Você está louca?! — Meus olhos se abriram em resposta ao forte tapa que recebi em meu braço. Não havia mais chuva, apenas longas pernas a minha frente e um frio quase que incontrolável.

          Pisquei algumas vezes antes de perceber que havia caído no sono no meio da rua e antes de levantar a cabeça para encarar o rosto incrédulo de Karine.

          Suas feições se enrugaram de raiva novamente e outro tapa me fora proferido. Resmunguei e levantei do gramado, tentando entender o que havia acontecido. O asfalto estava molhado, parara de chover, minhas roupas estavam encharcadas e... Kris não estava lá. Olhei para Karine que, pacientemente, se continha para não me acertar de novo e quis desmoronar.

— Engula esse choro. Você precisa ser mais do que forte agora! Serena e eu cuidamos de tudo, ninguém vai saber que Daniel esteve aqui. Mas você precisa fazer sua parte agora. — Sussurrou uma bronca e eu mordi os lábios, na tentativa de guardar tudo dentro de mim, enquanto esfregava meus braços.

— Eu não sei se consigo... — Suspirei, balançando a cabeça em negação. Toda a minha energia havia sido sugada de mim. Mesmo com a soneca ao ar livre e tendo tomado um belo banho, minha cara não tinha sido lavada o suficiente.

          Karine olhou para os lados, sem saber o que fazer e, ainda, conferindo se ninguém assistia à cena, aproximou-se ainda mais de mim.

— Olívia. — Segurou meu rosto, encarando meus olhos de maneira a prendê-los sob seu encanto. — Nós vamos fazer isso juntas.

          Sem que eu pudesse replicar, segurou em minha mão e me puxou rua acima até completarmos o percurso que eu tanto havia adiado. Karine era a mãe sem paciência com a filha, que decidira, por fim, a levar à força para dentro da sala de aula, sem ligar se ela estaria esperneando ou se jogando ao chão.

          Fechei meus olhos quando avistei a familiar rua que nos levaria até a porta do meu terror, sem querer ver a confusão e muito menos revivê-la. Deixei que Karine continuasse a servir no papel de mãe e tomar as rédeas do caos implantado, acreditando que, até então, ela tinha tido um bom desempenho.

— Olívia... O que é isso? — Karine parou subitamente, me fazendo trombar com ela. Ao abrir meus olhos, a rua estava banhada por luzes azuis e vermelhas e homens uniformizados entravam e saíam da minha casa, assim como do vizinho de porta.

          Meu queixo estava ao chão assim como o de Karine e, antes mesmo de conseguirmos fugir dali discretamente, um policial se aproximou de nós duas.

— Com licença, senhoritas. Vocês moram por aqui? — Minha mão gelou sobre o braço de Karine. Queria puxá-la para que pudéssemos sair dali correndo, mas ela se manteve firme em todo o tempo, impedindo que eu agisse de forma suspeita. Mais do que estava.

— Sim. Podemos ajudar com algo? — Karine foi a primeira a se pronunciar.

          O policial olhou para trás, virou para nós e coçou a cabeça. Sua falta do que dizer fora a faísca para acender a chama de esperança em mim de que eles não sabiam de nada. Mesmo para um jovem rapaz, ninguém agiria de maneira tão casual se suspeitasse que eu tinha algo a ver com o que acontecera em minha própria casa.

— Só para ficarem alertas. Houve arrombamentos em algumas casas nessa área. Já pegamos o culpado, mas, infelizmente, ele fez uma vítima.

          Culpado? Pegaram o culpado? Encarei Karine cujo expressão era a de choque igualmente a minha.

— Desculpa, mas você disse que pegaram o culpado?

— Sim, foi pego com a mão na massa. A equipe médica veio atender uma chamada e o pegaram assaltando aquela casa. — Falou apontando para a casa de Cecílie e Oswald. — Creio que ele aproveitou que todos estão no festival... Mas foi pego de surpresa com um morador em casa e o baleou.

— Nossa... Isso é inacreditável. Floratta é uma cidade tão segura... — Karine comentou para o policial que logo concordou. — Ele vai responder por homicídio e roubo, então? — Quis confirmar as suspeitas de que, por ordem divina, não precisaríamos bolar algum outro plano para encobrir o que Daniel fizera a Kristoph.

          O policial franziu o cenho e nos encarou mais atentamente, mas, antes que eu pudesse desmaiar com o suspense, ele negou com a cabeça.

— Não, senhorita. O homem baleado não morreu, a equipe médica conseguiu atendê-lo a tempo. Levaram para o centro de cirurgia e creio que ficará bem. Mas nosso suspeito responderá por seus crimes, podem ter certeza de que cumpriremos nosso papel. — Completou com certo orgulho à farda.

         Minha cabeça girou, girou e girou. Minha visão nublou e eu não consegui mais enxergar nem mesmo as luzes coloridas. Dei as costas para o policial e a Karine e rastejei para o meio-fio, tendo a certeza de que eu desmaiaria a qualquer minuto. Consegui ouvir uma voz indistinta de alguém perguntando sobre o sangue em minha calça e senti um macio atrás de mim assim que tombei antes de tudo se apagar.

***

          Eu precisava disso. Tudo o que aconteceu foi por uma razão e essa razão sou eu. Não estou tentando fazer com que o mundo gire ao meu redor, sei que não sou nada em comparação a outras pessoas, especialmente as que eu amo, mas essa é a única explicação para o que aconteceu. Sempre tomei minhas decisões pensando no bem-estar da minha filha e no meu, no que eu penso que seria bom para nós duas e para nossas vidas. Dando luz à ela, deixando seu pai entrar em nossas vidas, tentando e dando chances para que déssemos certo, não prestar queixas contra ele e me mudar.

          E eu estava errada em todos os aspectos. Eu fui egoísta ao ponto de achar que Daniel nos deixaria em paz, que a vida se encarregaria de lhe fazer pagar por suas atrocidades ou que nada de ruim me perseguiria até Floratta Bay. Todos meus erros e decisões mal pensadas tiveram consequências, não só para mim. Por mais que eu quisesse acreditar no contrário, aqueles fios da vida, cortados ou quase lá, balançaram meu mundo de maneira que eu consegui enxergar melhor e com mais clareza.

          Por todo esse tempo eu me culpei pelos motivos errados. Não era a minha culpa Daniel ter feito o que fez, mas era a minha culpa ter convidado um estranho para a minha vida, ainda mais tendo um bebê envolvido na história. Não precisava que fôssemos um casal, apenas pais — separados — de uma linda menina. E tudo teria ficado bem, na medida do possível. Teríamos feito um acordo, moraríamos perto um do outro, dando a oportunidade para Evie de viver uma mesma rotina, mesmo que em casas diferentes. Ela passaria a mesma quantidade de dias com seu pais quanto comigo, frequentaria a mesma escola, teria os mesmos cuidados e toda a atenção de seus pais quando precisasse. Mas não, no final eu acabei por optar pelo sonho de uma família perfeita, que só existiria num mundo idealizado, e estraguei toda uma possibilidade.

           Também não era a minha culpa ter me mudado para um lugar onde não tinha nenhum amigo e muito menos ter mantido, por tanto tempo, uma briga insensata com meus pais. Deveria ter deixado tudo de lado, tentado explicar minhas razões depois do choque que tiveram sobre meu desejo de carreira, mas eu apenas deixei rolar e os afastei na primeira vez que senti que não aguentaria mais a decepção deles me rondando. Senti-me como um mártir por muito tempo, tempo suficiente para que Daniel monopolizasse minha vida em torno de seus problemas e suas necessidades. Eu devo o caos a mim. E eu devo o acerto de contas a mim.

          A notícia sobre os arrombamentos correu pela cidade em instantes. Ao acordar do desmaio, na casa de Karine, onde meus pais já se encontravam, fui bombardeada pelo som de suas vozes tagarelando sobre os eventos anteriores. Aparentemente, nossa casa ainda servia como prato de comida para a perícia averiguar provas. Evie ficou a maior parte do tempo com os filhos de Karine, esses que estavam sob a supervisão de sua babá; era melhor que ela não soubesse de nada do que havia acontecido, especialmente que seu pai era o causador de tanto alarde — ainda que ninguém soubesse e mesmo que um pobre coitado tivesse sido pego no meio do fogo cruzado, uma vez que, ao estar no lugar errado e na hora errada, adicionamos mais algumas acusações em sua causa.

           O festival, claro, chegou ao seu fim um pouco mais cedo e os habitantes já voltavam para suas residências ou se amontoavam em frente a minha, tornando ainda mais difícil nossa ida ao hospital. Todos curiosos e atentos para beber da fonte, ansiosos para conseguirem compartilhar meias informações e fofocas ácidas para os outros que preferiram o abrigo de seus próprios lares.

          Quando enfim dobramos os abutres, conseguimos chegar ao hospital em pouco tempo, porém não nos deram permissão para que víssemos Kris. Quase também não recebemos alguma informação, fora apenas ao esbarrar com seus pais na saída que finalmente me confirmaram que ele ficaria bem — os médicos ao menos asseguraram.

          Kris tivera sorte. A bala não atingiu nenhum de seus órgãos, mas, infelizmente perdera muito sangue. Ao que nos disseram, ele havia passado por uma cirurgia e precisaria de transfusão, no mais, contaríamos com seu organismo para o processo de cura. Chorei com a notícia, sentindo todo um peso sair do meu corpo. Meus olhos mal abriam com o inchaço das pálpebras, também estavam secos e incômodos, o que não parecia importar na hora.

          Eu havia o abandonado. Ninguém pareceu entender muito bem como que eu havia o encontrado, chamado por ajuda e depois ter saído do seu lado antes do socorro chegar. Seus pais, ao contrário da polícia, entenderam que o choque fora grande e eu tentara me salvar do assaltante. O que não passava de um delírio, mas eles eram pessoas melhores do que eu e acreditavam que havia bondade e inocência em meu coração. Chorei ainda mais no ombro de sua mãe, sentido o amargo em minha boca de toda minha falsidade, porque a verdade era que eu tinha sido horrível. Tinha feito coisas horríveis e deixado seu filho no chão frio para morrer. Acreditei na minha sede de vingança e, ao final, nem mesmo ficara satisfeita.

          Permanecemos com seus pais por até certo tempo, até Oswald insistir que deveríamos ir para casa, tomar um banho e dormir por algumas horas. Eu ainda vestia a mesma calça ensanguentada e, quando percebi, não comedi desculpas. Senti-me envergonhada por manter aquela lembrança tão crua e nua da quase morte de Kris, especialmente perto de seus pais.

           Dormimos todos na mansão de Karine, sua casa tendo os milhares de quartos ocupados pela primeira vez. Após o banho e sem a mínima vontade de dormir, desci para o térreo, encontrando Karine e Serena ao redor da mesa da cozinha, compartilhando uma garrafa de vodca. Encarei os rostos acabados das duas por tanto tempo que logo se tornaram um gatilho, despertando as imagens daquele fim de tarde que passaram como um filme aos meus olhos. Todo o sangue havia sido lavado, mas as marcas da morte ainda se faziam presentes. Em nós.

          Juntei-me a elas e, ainda em silêncio, Karine me passou a garrafa transparente. Encostei em meus lábios e beberiquei, fechando os olhos quando o rasgo em minha garganta se fez presente. Voltei a entornar a garrafa, bebendo longos goles, até o instante em que Karine segurou em minha mão, me fazendo largá-la. O líquido fez menção de voltar, mas permaneci parada até que, enfim, se aquietasse.

— Prometi que não iria mais beber. — Confidenciei.

— Eu tirei a vida de alguém. — Encaramos Serena, cujo olhar parecia estar mirando algum outro lugar.

          Sua fala não poderia ter deixado o clima ainda mais pesado.

          Engoli em seco e a fitei. Tinha a aparência de quem havia ido para a guerra e que ainda batalhava, perdida dentro de si, em um combate travado consigo mesma e sobre o qual não poderia vencer. Queria poder lhe dizer algo para lhe tirar aquele reboliço, mas não conseguia pensar em nada que soasse certo ou convidativo.

— Serena... — Karine amoleceu a voz. — Ele ameaçou nossas vidas.

— Não... Na verdade, não. — A voz calma parecia se perder no ar, assim como ela também aparentava estar.

          Minha respiração já saía do ritmo normal ao passo que eu me consumia com a culpa, mas antes que pudesse chamar a atenção para mim, pus uma mão sobre a boca e contive meu excesso. Eu não podia fazer aquilo com Karine, muito menos com Serena. Inspirei fundo e puxei a energia que o álcool parecia me dar e segurei na mão de cada uma, aproximando-as do meu peito. Com uma lágrima no olhos, soltei do meu coração o que havia de mais sincero.

— Obrigada.

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