O suave tom do abismo - Absor...

By DiedraRoiz

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Na trilogia "O suave tom do abismo", Diedra Roiz nos conduz através do frio e da escuridão de um futuro distó... More

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
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Capítulo 4

Capítulo 5

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By DiedraRoiz

Alexandra só percebeu que havia adormecido quando acordou com um ruído. Um grito, que, em um primeiro momento, pensou vir dela mesma. Só depois, ao perceber o que era, reconheceu-o.

Era o de sempre, aquilo que dolorosamente se repetia e, durante o sono, saltava da mente de Sofia.

Ela se debateu, tentando em vão manter o sonho que fugia. Sentiu que caía. Tentou se agarrar a... A quê? Não conseguiu distinguir...

Ouviu alguém gritar e percebeu que era ela mesma quem o fazia.

Lembrou-se de onde estava, por isso tentou controlar a respiração alterada, sem muito êxito. A escuridão total fazendo com que a angústia aumentasse. Trazendo de volta a perda, a dor, o temor... Segurou a palavra que se formou, o nome de Alícia. Mas não segurou o choro que escapou, emitindo sons abafados e furtivos.

Deitada ao lado de Talita, a audição de Alexandra a permitiu acompanhar tudo que aconteceu no catre vizinho. O grito desesperado, a respiração descompassada, depois sufocada e, finalmente, o soluço baixinho. Repetiu mentalmente para si mesma: "Não é da minha conta. Não tenho nada com isso".

Como se, de alguma forma, quisesse colaborar, o sino da Casa do Senhor soou três vezes, abafando qualquer outro tipo de som ou ruído.

Ainda assim, a vontade de fazer algo persistiu. Mas Álex não moveu um músculo. Resistiu. Fechou os olhos, tapou os ouvidos com força. Fingiu estar dormindo.

– Alícia, acorda! Já badalou sete horas e você ainda está dormindo!

Sofia se esforçou para compreender a imagem que viu assim que abriu os olhos nem um pouco acostumados a funcionarem tão terrivelmente cedo: segurando um lampião em uma das mãos e sacudindo Sofia com a outra, uma nova Talita. Com o rosto reluzente de tão limpo e os cabelos cuidadosamente penteados para trás, sem que um fio escapasse.

Sentou-se no catre, e a menina completou:

– Temos que estar na Casa do Senhor às oito. Hoje é domingo!

Tia Laila entrou no quarto bem a tempo de ver a expressão incrédula de Sofia:

– Não ia à Casa do Senhor lá em cima, Alícia?

Receando levantar suspeitas desnecessárias, Sofia prontamente respondeu:

– Claro que sim.

A senhora suspirou, visivelmente aliviada:

– Graças ao Senhor! Já não basta...

Não terminou, como se só então percebesse que não falava sozinha. Ficou alguns instantes parada, tentando disfarçar, antes de completar:

– Rápido. Não podemos nos atrasar.

E saiu quase correndo do quarto.

Sofia subiu distraidamente na parte de trás da carroça. Sentou-se no chão, ao lado de Talita, com as costas encostadas na lateral, de frente para Nívia e Gustavo. Continuou olhando em volta. Buscando a presença que fazia falta, mesmo sem querer. Da forma antagônica de sempre, Nívia falou:

– Se está procurando Álex, desista. Ela não vem.

Como quem repete algo que ouve sempre, Talita declarou, de forma absolutamente inocente:

– Tia Álex não gosta da Casa do Senhor.

Antes que Sofia pudesse se perguntar como ou por qual motivo, Tia Laila se virou da boleia – onde até então permanecia calada ao lado de Tio Dimas, que conduzia – e repreendeu a menina:

– Isso é coisa que se diga, Talita?

A criança abaixou a cabeça, e um clima sombrio se estabeleceu, levando Sofia a compreender que engolir todo e qualquer tipo de pergunta era o melhor a se fazer.

– Aqui é a vila, olha!

Talita exclamou, absolutamente empolgada. Sofia assentiu, não tão entusiasmada assim. Curiosa, é verdade, ao notar como a simplicidade das casinhas iluminadas por archotes ao redor da minúscula praça contrastava com a Casa do Senhor resplandecente e grandiosa, que parecia ter luz própria.

– Parece com as casas lá de cima, Alícia?

A menina olhou para Sofia aguardando ansiosamente pela resposta, enquanto subiam de mãos dadas a escadaria do ostensivo templo a que a criança obviamente se referia.

– Oh, não. É mil vezes maior. E mais iluminada.

Desaprovando o tom irônico da resposta, Tia Laila retrucou:

– É assim mesmo que tem que ser. Ninguém deve ter uma casa melhor que a do Senhor.

Sofia lutava bravamente contra o desejo de liberar a contestação que ardeu queimando como fogo pela garganta quando viu algo que a fez estremecer. Na porta da Casa do Senhor estava... O velho jardineiro com quem trocava os livros. Olhando diretamente para ela, de um jeito que deixava claro que a tinha reconhecido.

Sofia pensou que fosse desfalecer quando o velho se aproximou, reverente, segurando o chapéu surrado, exatamente como fazia lá em cima:

– Senhorita...

Por sorte, coincidência ou destino... O que ele disse depois não pôde ser ouvido, porque foi completamente abafado pelas oito badaladas do sino.

Antes que o velho pudesse repetir, desmascarando-a, Sofia completou rapidamente:

– Alícia.

Ele a olhou, a cabeça de lado, num gesto quase canino de falta de compreensão. Por isso Sofia repetiu:

– Meu nome é Alícia. Entendeu?

O velho então arregalou os olhos, o entendimento finalmente surgindo no olhar distante. Com um sorriso desprovido de todos os dentes, estendeu a mão metida numa luva furada nos dedos e se apresentou:

– Júlio.

Sofia percebeu que, até então, desconhecia o nome do velho. Nunca havia se importado com quem ele era, muito menos como se chamava. Para ela, havia sido sempre apenas o velho jardineiro que possuía livros, e mais nada. Ameaçou retribuir o gesto, mas o grito de Talita a fez recuar a mão:

– Não toque nele, Alícia! Ele é maluco. Júlio das traças.

O velho riu alto. Olhou Sofia profundamente ao falar:

– Traças adoram papel, sabe?

Virou-se, desceu rapidamente as escadas e desapareceu no breu da praça.

– Não falei que ele é maluco? Vem, vamos entrar.

Talita puxou Sofia, ultrapassando a porta da Casa do Senhor e atravessando com ela a nave. Se, por fora, a construção já era intimidante, o interior cumpria ainda mais a função de gerar um sentimento pleno de insignificância. A própria Sofia, por mais que tivesse lido sobre arquitetura e conseguisse detectar o propósito das paredes altas e das cúpulas mais elevadas ainda, sentiu-se pequena, ínfima perante a grandiosidade da construção. Mas o que mais impressionava, sem dúvida, era a quantidade de luz, sem, no entanto, trazer aconchego. Ao contrário, parecia apenas aumentar a sensação de frio.

Sentou-se em um dos bancos de madeira, entre Talita e Tia Laila. Observando os detalhes dos mosaicos nas paredes, desprovidos de qualquer tipo de imagem. Voltou a atenção para o gigantesco piano com tubos e pedais atrás dela quando ouviu um som que nunca tinha ouvido antes.

Música. Linda. Emocionante. Esplêndida. Mas que causava... Uma forte sensação de pesar, frieza e ansiedade. Na verdade, Sofia sentiu o corpo arrepiar e estremecer involuntariamente. Mais ainda quando uma voz forte, grave e projetada do altar se elevou acima de todos eles.

Foi inevitável o incômodo que sentiu. Rejeição incontrolável só pelo tom. O que piorou quando se forçou a realmente ouvir o conteúdo que o loiro imponente – apesar de descalço –, todo vestido de azul, dizia.

Pregando obediência de forma claramente intolerante e dogmática, induzindo os que assistiam a aceitarem sem discussão que tudo era regulado pela onipotência do Senhor, através da mediação infalível e iluminada dele, o inquestionável líder.

Para Sofia, todo e qualquer tipo de alienação do saber era inaceitável. Temeu ao ver a concordância cega instaurada à volta dela. Absoluta, regendo perigosamente toda aquela vila. Muitas das frases do reverendo terminavam com perguntas, que os fiéis respondiam com convicção, os olhos de muitos marejados, a maioria com as palmas das mãos voltadas para cima.

Beirando o fanatismo, o serviço religioso prosseguiu. Com o pregador insuflando o ódio contra um suposto inimigo que, segundo ele, precisava "ser destruído para reinar o bem". Deixando claro que o ditador loiro seria capaz de tudo, até mesmo utilizar meios cruéis e violentos para punir quem não estivesse disposto a segui-lo.

Concluiu o sermão afirmando:

– Não duvideis dos poderes do demônio! Ele se manifesta de forma maliciosa e furtiva para atrair e desviar aqueles que são seus discípulos mais puros na Terra: as crianças!

Disse isso enquanto olhava enfaticamente para Talita. Fechou com chave de ouro, num tom de adoração quase gritado, que todos seguiram. Sofia levantou as mãos, com medo de se expor sendo a única a não fazê-lo. Mas não foi capaz de – como os outros – repetir:

– Senhor! Faça de mim seu instrumento! Eis-me aqui!

Só então percebeu quatro homens enormes – dois de cada lado do altar, vestidos num tom de azul diferente do pregador, e com roupas muito mais simples – fazendo sinais para que os fiéis que desejassem se aproximassem. Observou atentamente, disfarçando para que o misto de perplexidade e horror que sentia não transparecesse, enquanto o loiro acolhia o povo, permitindo que lhes beijassem os pés e as mãos, qual um ser divino.

A música voltou a ressoar profeticamente, como trombetas anunciando um provável apocalipse, e, de todos os lados, gritos de adoração e louvor ainda surgiam enquanto todos se levantavam.

Sofia conseguiu escutar, apesar de Tia Laila falar baixinho para Nívia:

– Eu sabia! Nunca deveríamos ter permitido Talita ir com Álex no Mercado Público.

Não ouviu a resposta. Provavelmente nenhuma, porque... O homem que segundos antes pregava no suntuoso altar surgiu do nada e se postou na frente de Sofia, olhando-a de cima a baixo. Com um sorriso que continha algo que não conseguiu definir, mas que a fez gelar, exclamou:

– Não existe maior dádiva do que receber em minha Casa do Senhor novos soldados ingressando nas fileiras do exército d'Ele. Seja bem vinda, filha. Sou o reverendo Samuel.

Sofia hesitou, mas acabou beijando a mão que o reverendo oferecia, fazendo um esforço incrível para disfarçar a contrariedade.

Como se percebesse a insegurança da amiga, Talita segurou a mão de Sofia, o contato da pequena mãozinha gerando apoio e força imediatos. Samuel prestou atenção, acompanhando o gesto, e depois perguntou:

– Como você se chama?

Foi Talita quem respondeu:

– Alícia.

O reverendo fuzilou a menina com o olhar antes de repreendê-la com uma expressão que deixou Sofia assustada:

– Não se intrometa na conversa dos adultos, menina. Pelo que vejo, sua educação é bastante precária.

E, então, Tia Laila já estava ao lado delas, a mão na cabeça da neta, desculpando-se. Coisa que Talita não faria, pelo olhar que Sofia viu a menina dirigir ao loiro – olhar que, naquele momento, estava extremamente parecido com o de Álex, Sofia não teve como não reparar.

– Sabe como são as crianças, reverendo. Mas pode ficar tranquilo, ela vai ser corrigida.

Com um sorriso nada indulgente, Samuel retrucou:

– O verdadeiro problema, Laila, é a semente maligna que você tem plantada dentro da sua própria casa. Muito cuidado!

Tia Laila estremeceu ou foi imaginação de Sofia? O fato é que assentiu com a cabeça e não falou mais nada.

Samuel, então, voltou-se para Sofia novamente:

– Alícia. Vem do Grego, Alethia. A verdadeira, aquela que não conhece a mentira. Espero que, para você, isso seja mais do que o significado de um nome lindo.

Sofia abaixou a cabeça sem saber o que dizer, muito menos como encará-lo. O olhar incisivo do tal reverendo dando a impressão de que ele era capaz de enxergar todas as culpas e pecados dentro dela.

O gesto foi interpretado como modéstia, pudor e timidez, deixando o reverendo visivelmente satisfeito. Sorrindo em aprovação, usou um tom de voz claramente interessado ao completar:

– Muito bem, Alícia. Já sei o seu nome, mas não sei quem é, nem de onde veio.

Sem levantar os olhos do chão, Sofia tentou balbuciar:

– Eu... Eu...

Mas o medo a impediu de falar mais. Tia Laila intercedeu:

– Ela é minha sobrinha, reverendo. Filha de um primo distante.

A resposta dele fez Sofia entender perfeitamente o porquê da mentira:

– Não acha arriscado ter aquela sua outra sobrinha por perto? Laços de sangue talvez não sejam suficientes para conter uma pessoa que age guiada pelos desígnios do diabo.

Tio Dimas, que até então se mantivera ao lado da esposa, absolutamente calado, foi enfático:

– Reverendo, como eu disse ao senhor há alguns anos, eu me responsabilizo por Alexandra. Até agora, o senhor nunca teve motivos para duvidar da minha palavra.

Samuel sacudiu a cabeça em concordância, mas com uma fria e cruel seriedade. Quando falou, Sofia pensou captar uma suave, quase imperceptível pontada de aversão e raiva:

– Que posso dizer, Dimas? Espero não me decepcionar. – Mudou completamente para um sorriso agradável, quase simpático ao se dirigir à Sofia novamente: – Prazer em conhecê-la, minha cara. Espero vê-la sempre. Muito cuidado com sua prima. Ela é... Como posso dizer, sem ferir sua visível pureza? Alexandra não é uma serva do Senhor. Na verdade, eu diria até que... Bem, ela gosta de se deixar conduzir pelo mal.

Com os olhos tão arregalados quanto os de Talita, Sofia o fitou. Após conseguir o efeito desejado, Samuel voltou a sorrir e a se despedir. Antes de, finalmente, para o alívio de todos, afastar-se.

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