Entre Sombras e Frutos

By PoetaFernandoMunhoz

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Livro de contos com temáticas existenciais. More

Corrigindo a Dispersão
Dia de Incertezas
A Indivisa
Um Crescimento e um Sopro
Estação
Os Sexos
As Coisas
Forma Viva
A Lição
Do Flerte
A Mulher de Fé
Nos Limites da Vida
O Mito Diante da Torrente Viva
O Mundo de Lá
O Nunca
Uma Solução Rápida
De Volta ao Cinza ou Problema de Escolha
Ainda Viva
O Despertar e A Morte da Ingenuidade
Um Caso de Amor Urgente
O Livre Amor
Entre Sombras e Frutos ou As Terras Desbravadoras
Ah, Juventude
A "Flamazinha" Dele
Vozes Visíveis (A Ruela)
Quebra de Dinâmica
O Limite
Corpo Abatido
A Partida
Vocação Para Mergulhos Interiores
Reencontro Consigo
O Romancista Desiludido
O Eu e o Mundo

A Conversa

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By PoetaFernandoMunhoz


       1ª versão

       E depois, o que aconteceria? O que se sucede? Eu, Joaquim Batista pergunto na primeira pessoa: eu, Joaquim Batista, pergunto: o que acontecerá depois? Mas se preferirem podem me chamar pela terceira pessoa. Assim: o que sucederá depois a Joaquim Batista?

       Sou um homem comum. Trabalho como escriturário, tenho uma mulher e filhas. Três garotonas. Sou o único homem da casa. Sou um homem comum e tenho minha dignidade. Sou um digno cidadão respeitado, funcionário exemplar do governo. Faço bem meus trabalhos na repartição, entre papeis, memorandos, organogramas e recebimentos carimbados e arquivados. Faço bem meu trabalho no Tabelionato da Secretaria da Saúde de meu município. Às vezes imagino minha morte. Como seria. Se caísse no banheiro e batesse a testa na privada no golpe fatal. Não tenho medo. O sangue escorreria num fio pelo azulejo. Isso se minha mulher, Ligiane Batista, ou uma de minhas filhas, ou a única que mora conosco, Isabela, não estivessem em casa.

       Seria de noite. Minha respeitosíssima esposa Ligiane estaria dando aulas no Mobral e Isabela estaria na rua fazendo qualquer coisa, uns passeios na casa das amigas onde joga video-game ou nas festas de cosplay. Ou bebendo com sua turminha e aquele rapaz, seu namorado, ela me disse (detesto aquele cara) em algum bar do shopping da cidade, ou no cinema. Mas fugiu-me, apesar de detestá-lo, agora, o nome daquele moleque. Depois me lembrarei...

       Ligiane é professora, competentíssima, atenciosa. Os alunos do Mobral têm muita afeição por ela. Eu não tenho ciúme dos alunos dela, especialmente de Fernando, o mais interessado em aprender dentre todos, o preferido, Ligiane me disse. Minha esposa é de fato um exemplo de mãe e mulher e é de fato muito simpática. Eu não tenho ciúme. Esse tal Fernando é rapaz esforçado, honesto, trabalha duro durante o dia e de noite ainda arruma disposição para estudar e bem. Um bom rapaz, penso eu.

       A água da chaleira ferveu e eu preciso passar o café, limpamente. Por que disse isso, no meio de tudo o que estou dizendo? Não sei. Apenas disse. Passei o café no coador de pano. Gosto do café forte, especialmente de noite, e tem que ser coado no coador de pano porque conserva mais o gosto puro dos grãos. Não tira-me o sono, pelo contrário, me faz dormir. Gosto de dormir, devo dizer e digo. Se há uma coisa que gosto de fazer, além de outras que não cito aqui por decoro, é de dormir, sempre que posso, aproveitando a oportunidade, o máximo que consigo. Mas são raros esses momentos. É claro, aos finais de semana há mais chance.

       Mas geralmente Ligiane, que também está solta, me acorda cedo aos domingos para irmos ao parque correr. Quero dizer, para ela correr, pois eu não gosto. Só de caminhar, num ritmo fluente, nem tão rápido, nem tão lento. Exercícios físicos fazem bem à saúde, disso sei, e Ligiane sempre me fala. A ciência comprovou e vive descobrindo mais coisas sobre como cuidar do bem-estar e da saúde e solta no Google, é óbvio. Gosto de pesquisar sobre este tema de saúde, meu tema preferido de estudo atualmente, aliás o único que tenho agora. Então, aos domingos, troco os chinelos que detesto, detesto, hem, e ponho meu par de tênis amortecedores, de boa marca que chama a atenção dos passantes com suas fluorescências. Possuo os tênis que são a referência que há em tecnologia e ergonomia para corredores. Isto eu li no Google.

       Sim, sou um homem atualizado. Ligiane também é, além das atenciosas noites comigo em que combinamos há vinte anos passarmos juntos. Senão certamente não estaríamos juntos até hoje. Mas eu sou um homem pudico e não quero entrar em detalhes do que nós, de vez em quando, fazemos de noite no quarto, uau, que maravilhas de momentos, que êxtases, epifanias passamos juntos nessas horas combinadas, digo a ela que conhece mais o português do que eu.

       Mas fui eu a descobrir o significado desta palavra, "epifania", assistindo, por acaso, a um noticiário literário na TV. Não me importo muito com esse negócio de livros, sabe? Li só alguns que são (como se diz?) --- ah, sim, de coaching pessoal. Sou um homem prático. Neste livro terra-a-terra, de coisas do mundo real, como digo a Li, o autor, um judeu alemão, ensina passo a passo como ascender na vida profissional, seja qual for a sua carreira. É que tenho eu ainda um sonho, sabem? O de largar a vida de funcionário público e montar meu próprio negócio para vender softwares para computadores, tablets e telefones celulares.

       Opa, minha filha acabou de sair batendo a porta da frente. Isabela. Vou tomar meu último gole do café. A xícara é de cerâmica reluzente. Meu Deus, por que eu disse isso, "cerâmica reluzente??" Acho que é porque quando uma coisa brilha, ela reluz, não é? Que vergonha, é lógico que é! Nem pensem que eu sou burro, não. Têm até livros de que gosto de ler, geralmente, e pego o dicionário dela para saber o que significam algumas palavras. E quase sempre eu já sabia um pouco ao menos o significado! Ligiane é quem sabe mais disso de palavras complicadas, tem uns livros de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Mário Quintana. Ela até aprecia as palavras do mesmo modo que gosta de lecionar. Quanto a mim, eu gosto de livros de auto-ajuda. Ela, como eu, precisamos, não é?

        Onde terá ido Isabela? Anda com umas amigas tão estranhas, que gostam do rock mais pesado, entendem, sei lá, às vezes até que desconfio dela... daquela uma, Roberta, que às vezes vem almoçar aqui em casa e que tem uns piercings, tatuagens, umas roupas pretas... Mas não quero falar disso. Me constrange um pouco, me permitem? Posso!? Sou um homem simples, na minha época, eu que fui criado na roça, tudo era tão diferente, tão melhor do que hoje em dia. Arre. Filhos... "Cuidados e preocupações para a vida inteira", Melo me falou, o colega de repartição. Mas, bah, fazer o quê? Deixa ela para lá. Eu sou um homem liberal, compreendem? E amo minha filha acima de tudo. Eu preciso deixá-la viver sua vida, fazer as... as escolhas dela... o importante é que ela seja feliz, já lhe disse isso, e assim ela está!

       Bem, Ligiane ainda não chegou e eu vou-me indo. Adeus. Estou com sono. Ando meio aborrecido e cansado sei lá de que. Acho que essa conversa toda me cansou também, se me permitem dizer. Mas não é questão sua, eu juro, eu garanto, nem de ninguém mais. Às vezes fico meio maníaco pensando em como será a minha morte, só isso. Como já lhes narrei. Sou um homem comum, juro. Honrado, trabalhador do Quinto Tabelião de Notas da Secretaria da Saúde da Comarca de Rio das Pedras. Às vezes penso: e depois? Depois desses momentos, desses anos todos, de uma vida... Depois até desta conversa tida agora. Depois dela, da morte, o que sucederá?

       Não ouso perguntar ou procurar saber mais por hoje pois tenho medo da resposta que posso obter de alguém, até mesmo aqui de casa ou da família, meus primos, meus pais, meus irmãos... de vocês. Dizem que sou preguiçoso para ler, é verdade... Lerei aquele, que discorre sobre isso: metafísica. Preciso me engajar mais!

       Mas estou mesmo com sono. Amanhã, prometo, terei alguma resposta; hoje, não. Não entendi muito, mas Quirino, que sabe das coisas, assim, precisamente (é homem muito culto), disse que, depois da morte, depois sempre há alguma coisa, o nunca. E que não existe depois, pois que tudo é um eterno presente. Achei bonito. Mas duvido um pouco porque não entendo muito bem o que ele quer dizer com haver isso de nada depois da morte.


       2ª versão (1 ano e meio depois)

       Me chamo Joaquim de Freitas Batista. Podem me chamar pelo meu primeiro nome apenas: Joaquim. Sou um homem simples. Sou um funcionário do governo, competente, do Quinto Tabelionato de Notas da Secretaria da Saúde da Comarca de Rio das Pedras. Escriturário. Exerço bem minhas funções, diligentemente, detalhadamente. Sou casado com Ligiane Batista e tenho três filhas: Mariana, Jussara e Isabela, a caçula.

       Mas não. Não sou isso, sei que não sou. Não sou funcionário da: ... , marido de: ..., e pai de ..., apesar de amar o que faço e de amar e respeitar minhas quatro princesas (mesmo Isabela que é a mais rebelde e que vive saindo de noite para ir ficar com as amigas...) e de respeitar as escolhas de Ligiane e das meninas e deixá-las livres.

       Sei que sou alguma outra coisa que por vezes adivinho, após estudar muito os livros que meu amigo da repartição, Quirino, me emprestou; que por vezes adivinho como águas caindo de um cântaro e soando em ouro! Sou um homem simples, mas tenho minha grandeza. Todos aqui sabem, e por amarmo-nos e respeitarmo-nos é que estamos juntos até hoje. Até não sei quando: certamente, para sempre.

       Às vezes penso sobre a morte. Vocês se assustam se eu falar esta palavra? Eu não me assusto. Eu não tenho medo dela. Mas logo deixo de pensar nisso, há coisas por fazer, coisas por amar, muitas e muitas. Porque, na verdade, contar-lhes-ei um precioso segredo após minhas vivências pessoais: eu não creio na morte, ela não existe. É isto mesmo. É como fosse uma transformação, uma passagem: água se tornando vapor, borboleta saindo de seu casulo e indo voar após a metamorfoseada larva. Apenas isto.

       Não existe, como não existe o depois dela, pois como pode haver depois para algo que não existe? Não há depois, já que o que existe é só o Eterno Presente do Universo que, por enquanto, nunca terá fim, sendo o tempo uma miragem, uma ilusão. Vocês agora me compreendem? Espero que sim. A verdade é que eu me compreendo e isso me basta. Porém, vocês temem? Se temerem, lhes digo, nada há a temer. Não há ansiedade, não há medo, não há culpa, e nada com que se preocupar diante desta Unidade entre todos nós que durará a eternidade. Venham comigo, irmãos.

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