Limiar

By mrgmartins

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Por toda sua vida, Emile foi apenas uma pessoa como qualquer outra. Até o dia em que se encontrou com uma ser... More

Prólogo
Vênus em Áries
O mundo é cheio de mistérios
Humanos não podem voar
Você salvou minha pele
Você é como nós
Por que eu?
Um truque é só um truque
É só questão de costume
Você já está morta
Eu realmente não entendo...
Eu te amo
Uma única batida
Combina com você
Acho que eu estou mudando
Eu só quero acordar
Eu não vou fugir
A palavra que eu fingi esquecer
Minha vontade
E, assim, amanheceu

Eu estou... chorando?

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By mrgmartins

Não importa quanto você cave, o poço sempre pode ser mais fundo… Esse aforisma é exatamente o que se passava na minha cabeça naquele momento. Alguns dias atrás eu nunca imaginaria que alguém me atrairia para um galpão cheio de terroristas armados e então se revelaria como um monstro membro de um grupo de criminosos internacionais.

Droga, soa tudo tão absurdo.

Como isso foi acontecer comigo?

Minha cabeça estava girando do mesmo jeito que estaria se eu tivesse acabado de sair de uma montanha-russa. Eu quase conseguia sentir minha sanidade escapando de dentro de mim. Mais um pouco e eu começaria a rir como uma louca.

Infelizmente, coisas que existem são reais.

Primeiro veio só um sorriso.

Hah…

A primeira risada escapou de leve.

Hahahahahaha!

E daí, como um estouro de animais famintos ou uma massa de pessoas tentando entrar no metrô, as gargalhadas arrebentaram tudo.

Tão absurdo!

Eu sentia que ia explodir, que meu peito ia inchar, inchar e crescer e então eu ia me desfazer em milhões de pedaços de Emile, voando pelos ares como confete em fim de Carnaval.

A qualquer momento.

Agora.

Não?

Minha garganta doía. Comecei a tossir, engasgar.

Meu rosto queima.

Tentei secar as lágrimas com um dedo, mas não foi suficiente. Nem o foi uma mão. Nem as duas mãos, nem os braços, nem os gritos, nem aquela sensação que me comia por dentro.

Não… eu não consigo lembrar.

Não. Não!

Esqueça! Não pense!

Qual a pal…

Não se pergunte! Qual a pa…ra. Para! Para! Para! Para! Para! Qual a para! Para! Eu não quero saber!  Para! Eu não quero saber qual é a palavra!

— Eu te odeio! – alguém gritou com a minha voz. – Eu te odeio! Eu quero que você morra! Morra!

Uma luz acendeu no escuro.

Eu não conseguia respirar. Eu não sentia nada. Eu via as mãos de alguém molhadas.

Água?

Vermelho. Tudo estava vermelho. O mundo inteiro estava pintado de vermelho.

Tinha uma garota parada ali.

Quem é você?

Teve um barulho, um rugido, um tufão varrendo uma cidade, um terremoto devastando vilas, uma tsunami destroçando navios, um inferno de fogo devorando a terra…

Quente.

Passei a mão no meu rosto.

Sangue.

O… o quê?

Minhas mãos tremiam. Sangue voava pelos ares. Tiros, gritos.

O que está acontecendo?

Metal partia, o chão tremia. Tinha neblina e dentro dela uma coisa. Olhei para onde a coisa estava.

Escuro, caveiras, sangue, fogo, corpos, gritos, explosões, tiros, queda. Um olho. Um olho se abre no alto e se volta para mim.

Minhas mãos taparam minha boca.

Algo como aquilo não devia existir. Toda forma de vida existe para sobreviver. Seus corpos, seus instintos, sua mentalidade, tudo se volta para a função única de manter a própria vida. É simples, é natural. Cada mínimo detalhe, cada ínfimo aspecto é como é para permitir que a vida continue. A função de todo ser vivo é sobreviver.

Então… por que isso existe?

Destruição, morte – nada mais. Cada pedaço daquele corpo, cada centímetro daquela criatura – as garras, as presas, a mandíbula, a forma, a cauda, os espinhos, os olhos, a armadura, as pernas, os ossos, os órgãos, o cérebro, tudo, tudo naquela criatura – existia só para destruir e matar. Era só o que aquilo poderia fazer, era sua razão de ser, sua função. Destruir e matar. Algo assim, uma criatura como essa, algo tão abominável, jamais poderia nascer naturalmente…

Então… por que isso existe?

Os corpos partiam como se fossem de vidro barato, tudo se despedaçava em instantes.

Não… eu não.

Uma pancada.

Caí no chão, meu rosto doendo, minha cabeça confusa. Olhei para frente, para onde eu estava antes.

Lavínia?

— Se controla! – ela gritou.

— Do… do que você está falando? – eu perguntei. – Do que você está falando?

Rosnando…

A coisa se apoiou sobre as patas da frente, caminhou devagar na minha direção. Tentei me afastar, recuar, me arrastar no chão, ficar longe dela.

— Socorro! – eu gritei.

Olhei para Lavínia. Ela estava olhando para outro lado, fazendo um gesto como se pedisse para alguém esperar.

A coisa abriu a boca, chegou em cima de mim, me olhou nos olhos e lá eu só vi fogo e ódio.

“Meu nome…”

O quê?

“Qual é o meu nome?”.

Meus lábios não desgrudavam. Minhas cordas vocais não se mexiam. Eu estava tremendo. Todos os meus nervos estavam abalados.

— Eu… eu…

E então Lavínia se colocou entre o monstro e eu, encarando a criatura de frente.

— Já deu, não acha? – ela disse. – Você já fez sua bagunça. Agora deixa com a gente.

O monstro bufou pelas narinas bem em cima de Lavínia. Ela continuou como estava, impassível, tranquila. Olhei para mim mesma.

O que você está fazendo?

Aquela coisa se levantou de novo sobre as patas de trás, respirou fundo, fechou os olhos e, envolta pela névoa, desapareceu. Pouco depois, a neblina se dissipou, deixou para trás só o galpão.

Droga…

Vomitei. Não consegui me segurar. Não tinha como me segurar. Os corpos, o estado em que eles estavam…

Meu Deus, não…

— Você é um monstro, Emile – alguém gritou.

Me forcei a olhar quem fora. A piranha estava lá, de pé, a única viva no meio dos cadáveres.

— Minta para você mesma o quanto quiser, mas a verdade é a verdade! – ela disse. – Você é e sempre vai ser um monstro! Não há lugar para você nesse mundo! Você acha que esses dois vão te proteger? Acha que eles vão fechar os olhos quando você fizer outro massacre? Eles vão te matar. E se eles não matarem, outros vão. Esse mundo em que você se agarra com tanta força não te quer! E você é uma idiota se achar que um dia ele vai querer!

— Do que você está falando? – eu gritei. – Que massacre?

— Você quer saber? Então vem comigo. Eu vou te mostrar o que você é de verdade.

— Chega – a voz de Daniel disse.

Ele estava mais à frente, uns poucos metros à frente da piranha, parado, inclinado para frente, corpo tenso, eriçado.

Como eu não vi antes?

— Sai daqui agora – ele disse. – É o seu último aviso.

— Quem você pensa que é? – a piranha disse. – Um projeto de mago que não tem nem cinco anos de experiência nunca poderia me vencer! Não importa o que você tenha nesse seu coração, eu sou um espírito da natureza! Eu dou os avisos aqui.

Daniel se virou para trás.

— Cuida de Emile – ele disse para a Lavínia. – Pode ser que eu não consiga me segurar.

— Tenta não ficar animado demais, mago – Lavínia respondeu.

Lavínia me segurou pelo braço e me colocou de pé, apoiada sobre ela, enquanto ia andando para fora do galpão.

— Está inteira? – ela me perguntou.

— Eu quero ver – eu disse. – Não me leva para fora.

— Tem certeza? Isso vai ficar feio e você conhecia ela, não é?

— Eu me preocupo comigo mesma. Agora me deixa ver.

— Como quiser.

Me apoiei numa das poucas prateleiras que continuavam de pé. Daniel ainda estava se aproximando devagar, arregaçando as mangas enquanto linhas pretas surgiam partindo de seu punho braço acima. Lavínia sorriu excitada.

— Parece que a vadia conseguiu deixar ele com raiva mesmo – ela disse.

— O que está acontecendo? – eu perguntei.

— Está vendo as mãos dele? As linhas pretas? Daniel é horrível em Magia de longo alcance ou qualquer coisa desse tipo. Ele gasta energia demais para conseguir resultados pequenos. Mas ele é ótimo em usar Magia para melhorar o corpo. Fortalecimento. Por isso ele criou aquilo ali, a versão dele do Fortalecimento padrão. Presta bem atenção, porque você não vai ver isso de novo tão cedo.

Eu não conseguia entender o que ela queria dizer com aquilo… como ela estava tão animada com isso. Ao menos não até ver.

Nos filmes, aquele era o tipo de cena que garantiria câmera lenta nas mãos de alguns diretores. Cada movimento seria marcado, focando na violência, na brutalidade, na força da ação – tão simples, tão direto, uma linha direta, sem curvas, um plano-sequência. Daniel avançou num segundo, esmagando o chão sob seus pés quando se projetou, disparando rápido demais para ser humano, batendo com força demais para não ser um monstro. A piranha voou para trás, rachando a parede ao ser atirada contra ela. Ela caiu no chão, tossindo, e então se levantou, devagar, com sangue jorrando de sua boca.

— Não se levanta – Daniel disse. – Uma costela deve ter perfurado seu pulmão. Quanto mais você se mexer, pior vai ser o dano.

A piranha cuspiu sangue grosso no chão e limpou o que manchava seu rosto.

— Não fica convencido, garoto – ela disse. – Eu não morro só com isso.

— Não se levanta. Sai da cidade, não volta nunca mais e diga para o resto de vocês ir embora da cidade e não voltar nunca mais.

— Se não…?

Daniel suspirou. O corpo dele mudou de postura de novo.

Tenso.

— O que ele vai fazer? – eu perguntei.

— Tá na cara – Lavínia disse. – Ela não vai largar a mão de você. O único jeito de ter certeza de que ela não vai mais ser uma ameaça é matando ela.

Matando…?

Minha cabeça girou com força. Minhas mãos seguraram um grito.

Eu estou… chorando?

Por quê?

Daniel estendeu o braço direito para o lado, curvou o corpo para frente, uma ave pronta para o rasante fatal.

O mesmo movimento.

Ele ia matar ela.

Mas…

Ele começou a correr.

Espera…

Ela não ia conseguir escapar.

Espera.

O sangue ainda escorria do meu rosto.

— Espera! – eu gritei.

Daniel hesitou.

E então, ela chegou.

Surgindo do nada, descendo do alto, das sombras, esticando suas patas e estendendo sua teia.

A aranha.

Ela se colocou entre Daniel e a piranha.

A palma, o punho, um soco…

Daniel foi empurrado para trás, de pé, os braços fechados em guarda. A aranha ficou parada, sua mão esquerda espalmada para o lado, seu punho direito fechado, seu corpo em posição de soco. Ela sorriu, se ajeitou ereta e começou a balançar sua mão esquerda.

— Assustador – ela disse. – Eu tinha ouvido que você era forte, mas, ei, isso deu medo. Podia ter matado alguém.

A aranha se virou para a piranha, olhando-a de cima, impassível e então se abaixou, agarrando a cabeça dela com uma mão e a apertando contra a parede.

— Você é idiota? – ela disse. – Idiota, sem dúvidas. É, sim. Eu disse que ia dar tempo. Tempo, entende? T-e-m-p-o. Eu não minto. Não, não mesmo. Nunca, nunca, nunca. Você me fez parecer mentirosa. Eu. O que eu faço com você? Mato? Hein? Hein? Mato você?

— Eu sinto muito! – a piranha gritou. – Eu sinto muito! Eu não vou fazer de novo!

A aranha soltou então a cabeça da piranha, se agachou em frente a ela e, como se não fosse nada, deu tapinhas no topo da cabeça dela.

— Boa menina – a aranha disse. – Muito boa. Fica sentadinha, ok? Entendeu?

Mesmo de tão longe, dava para ver a raiva contorcendo o rosto da piranha. Ela fechou os olhos e seu corpo voltou a ser o da veterana de cabelos coloridos. A aranha então se levantou e dirigiu o olhar para mim.

— Eu disse para ir procurar – ela falou. – Você não me ouviu. Menina má, menina má. Por que não foi?

Porcaria… Porcaria!

— Não é da sua conta – Lavínia disse. – E já que você está aqui, bem que a gente podia terminar logo com essa palhaçada toda.

— Oh? – a aranha disse. – A garota que não fica morta. Não, não. Já brinquei com você. Não quero repetir.

Ela se virou para Daniel, sorrindo.

— Mas você é novo – ela falou. – E parece bom. Que me diz de um pouco de prática?

— Você é doente – Daniel respondeu.

— Por favor, ninguém cria uma Magia assim se não gosta de ir pelo lado físico. Seu corpo, seu movimento, eu sei como é. Você gosta disso. Você está louco para se atracar com alguém que te aguente, não é? Tudo bem. Eu sei como é.

Do que diabos ela está falando afinal?

Lavínia sacou as facas e tomou a frente, partindo para cima da aranha. Ela correu e atacou sem parar, cortando e cortando sem um segundo de pausa. Mas todas as vezes a aranha aparava as facas com sua mão esquerda. Depois de segundos de confronto, a aranha contra-atacou com a mão direita, acertando Lavínia no peito e jogando-a com o força contra uma prateleira.

O chão rachou.

Menos de um segundo. Não foi tempo o suficiente para que qualquer pensamento racional pudesse ocorrer. Ninguém, por mais bem treinado que seja, tem um reflexo consciente tão rápido.

Ação, reação.

Um corpo atingido por uma força vai reagir de acordo com essa força. Não é preciso que o corpo pense. Reagir é parte da sua natureza como objeto, parte das regras que regem o mundo. Se você bater em algo, esse algo vai bater de volta. Se você atacar um animal, ele vai reagir sem hesitar – uma criatura antiga, ancestral, guiada apenas por uma noção simples e instintiva.

Ação, reação. Só isso.

Quando Daniel saltou na direção da aranha, estava óbvio que não tinha nenhum pensamento o guiando.

Era só o natural…

No momento em que Lavínia foi atingida – ação – o ataque dele foi declarado pelo seu corpo – reação. Não importava que tivesse sido a aranha, não importava quão forte fosse o golpe ou o que tenha causado ele, a resposta seria a mesma porque a lei é absoluta.

Você machuca Lavínia, Daniel machuca você.

O soco dele encontrou de novo a palma esquerda aberta da aranha, mas o braço direito dela não teve chance de se mover. Outro soco. E mais um. E outro. Uma chuva de golpes, cada vez mais rápidos, cada vez mais pesados. A aranha começou a usar as duas mãos para aparar os golpes.

A perna.

Ela chutou. O cotovelo de Daniel desceu contra a perna dela, a mão esquerda da aranha bateu no cotovelo, o braço direito subiu e desceu.

Um martelo.

Daniel girou, o punho continuou descendo até acertar o chão.

O galpão inteiro tremeu.

As prateleiras tombaram, os vidros estouraram, uma cratera gigante abriu no chão.

Foi como se uma bomba explodisse ali.

Daniel se levantou e recuou.

A aranha se levantou, balançando a mão. Ela olhou para o próprio braço direito, viu a manga da jaqueta completamente destroçada pela força do impacto.

— Droga – ela disse. – Outra jaqueta pro lixo. Foi um bom exercício.

A aranha deu as costas para nós e foi andando para a porta dos fundos. A veterana se levantou e foi seguindo ela. Antes de cruzar a porta, como alguém que se lembra de ter esquecido as chaves, a aranha se virou para trás.

— Vai logo atrás do que eu disse, tá bom? – ela disse. – Não demora muito. Eu detesto, detesto esperar. E mal posso me aguentar para terminar a brincadeira.

Ela lambeu os lábios.

Bye, bye¸ garotos – ela disse. – Nos vemos em breve.

Ela foi embora, batendo a porta atrás de si, ecoando o barulho e as suas palavras por todo o galpão.

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