100 Cuecas!

By FabioLinderoff

37.1K 1.9K 4.8K

Toda história tem um começo, meio e as vezes precisa ter um fim. Após uma década de espera, Fábio Linderoff e... More

Vem aí...
Dedicatória
Nota do autor
Prefácio
Fábio Linderoff apresenta
100 CUECAS!
Momento 1
Momento 2
Momento 3
ALMEJANDO OS HOLOFOTES
ATO I - CRAVING FOR THE SPOTLIGHTS
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
O SHOW CONTINUA
ATO II - THE SHOW GOES ON
Interlúdio 1
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 28
Interlúdio 2
Lições de vida
100 Cuecas! Book Soundtrack

Capítulo 27

112 6 1
By FabioLinderoff

1.

"No amor não existe receio; antes, o perfeito amor lança fora todo medo. Ora, o medo pressupõe punição, e aquele que teme não está aperfeiçoado no amor."

(João 4:18)


Minha mãe sempre foi uma pessoa religiosa. Quando era adolescente e até depois de se casar frequentava uma igreja evangélica e acatava não somente com que a bíblia dizia, mas também com o que pastor postulava incessantemente durante os cultos. Meus pais se conheceram quando trabalharam juntos em uma fábrica de alumínio. Meu pai nunca foi tão adepto ao alheamento religioso quanto minha mãe. Ele preferia se encontrar com amigos para uma cerveja em uma birosca enquanto minha mãe religiosamente marcava ponto dentro de alguma assembleia crente. Sendo assim, foi inevitável minha imersão mesmo que muito superficialmente no mundo religioso. Por insistência parei de frequentar os cultos, por medo de consequências divinais parei de orar, por assentir mais com que meus professores explicavam do que com o que os pastores gritavam passei a me questionar e a buscar respostas dentro do que eu considerava mais plausível. Entretanto, não nego o poder que a fé exerce nas pessoas e na força que ela emana de si só. Talvez meu problema seja mais com as religiões do que com o Deus que todas elas buscam. Sempre ouvi trechos da bíblia lidos pela minha mãe. E um desses trechos me veio a cabeça quando parei em frente ao balcão do FAG bar depois de ter ido ao banheiro esvaziar a bexiga.

Dois rapazes, um aparentemente da mesma idade que eu, trabalhavam como barman. A rodada de cerveja que Joshua havia trazido já tinha acabado e eu queria beber mais. Enquanto um deles preparava o drink que eu pedi, o outro entregou para uma garota que estava ao meu lado a bebida que ela havia pedido. Ela agradeceu mordendo o canudo e abrindo um sorrindo maroto antes de dizer cantando "thanks, love ya". O rapaz da minha idade sorriu e piscou para ela e deu para ouvir, depois que ela já tinha se distanciado, ele dizendo para o colega que um dia desses pegava ela de jeito. O outro bem mais novo chacoalhava uma coqueteleira quando respondeu que a garota tinha namorado e foi surpreendido por um tapa na bunda, que tentou desviar, e com o colega dizendo que não era ciumento. Enquanto eles continuavam o seu trabalho de atender os clientes e tecer comentários sobre as garotas que frequentavam o bar, minha atenção se ateve a um quadro preso na parede. Nele havia uma lista de aniversariantes do mês. Em Inglês normalmente o mês vem antes do dia e em um dos nomes ao invés da característica barra dividindo mês e dia, havia dois pontos. E eu li:

Lovegood, John 4:18

Obviamente aquilo significava que o funcionário John Lovegood aniversariava em dezoito de abril. Porém, para mim parecia um registro bíblico. E aquela parte em específico, João 4:18, eu sabia de cor. Nesse mesmo momento a voz de John Mellencamp cantando seu sucesso Hurt so good começou a tocar pelo bar. Foi impossível não lembrar de Roger. Essa era a música que tocava no rádio do caminhão que nós pegamos carona, deitados sobre o baú, até o Pico do Jaraguá. Foi durante essa aventura que ouvi ele dizendo que me amava pela primeira vez, com os olhos emocionados. Também não teve como não lembrar do dia do flagra, de nós dois nas escadas de emergência do meu prédio e ele me dizendo: "Sabe quantas vezes eu ouvi "eu te amo" durante esse tempo todo juntos? Nunca!" E agora analisando bem, ele tinha razão. Eu nunca consegui falar "eu te amo" não só para ele, mas para ninguém, exceto retoricamente para os meus pais antes de sair de casa. Será possível que eu nunca tinha conseguido de fato amar alguém?

Será que fui egoísta (também) com relação a isso? Será que nunca estive disposto a renunciar para ganhar? Ou será que em comparação, a perda no delimitar um sentimento tão sublime a um alguém só sempre fora maior que os ganhos? Na verdade, um livro que li alguns anos mais tarde, Discurso da Servidão Voluntária de autoria de um jovem humanista e filósofo francês chamado Étienne de La Boétie, me ajudou a clarificar minhas ideias. No livro ele sugere que um ser tirano só exerce sua dominação frente a um servilismo voluntário de seus súditos, pois esses permanecem sob o seu jugo à conta de uma aparente segurança que lhes são proporcionada. E mais do que isso, as pessoas preferem a servidão à libertação, pois essa última é muito mais laboriosa de se administrar. Eu, por exemplo, quando criança, não precisava me preocupar com o que iria ter de almoço. Minha mãe decidia tudo, fazia tudo. Ela ditava as regras e tudo que eu tinha que fazer era obedecer. E sentia prazer quando conseguia fazer tudo que me era demandado. Hoje quando vou a um restaurante e olho o cardápio, me deparo com tantas opções que acabo pedindo o mesmo de sempre com o pretexto de não querer errar. Ser livre dá trabalho. Quando namorei Roger, me permiti ser servil talvez por status de querer mostrar que eu estava namorando um cara cobiçado como o Roger ou talvez por sentir essa segurança de que nunca íamos nos separar, afinal ele era louco por mim já que queria mandar em mim. Paga-se um preço altíssimo pela liberdade e alguns simplesmente abrem mão do seu direito de serem livres e passam anos na servidão, pois aquilo lhes protege e exerce um certo fascínio acerca das representações (já que há as vezes um certo fetiche pelo dominador) e libertam o medo do poder, o qual se estabelece mais pelo afeto do que pela força. Se para La Boétie para se destituir o tirano de seu poder ficcional, basta deixar de servi-lo, para mim, eu diria que as pessoas só fazem com a gente aquilo que permitimos. E há várias razões por permitirmos.

Um povo unido jamais será vencido diz o lema desde a década de 70 e é legítimo até os dias de hoje. Basta apenas unirmos a comunidade em questão contra todos os tiranos. No que se refere a minha servidão voluntária a um senhor namorado/marido/parceiro era algo fora de questão naquele momento, ainda mais depois da experiência que eu tinha tido com o Roger e com o Pablo. Pois há de se convir, por mais que se tenha o melhor dos parceiros e viva o melhor dos relacionamentos monogâmicos, ainda assim há concessões que eu não estava disposto a barganhar mais. Afinal, toda escolha implica em perda. E na minha concepção a moeda que te vende a outrem é o amor. E quando você fecha a venda e diz "eu te amo", penso que uma parte de você, do seu eu absoluto e independente, é entregue a outra pessoa para que juntos possam administrar um elo não só afetivo, mas também socioeconômico que se cria a partir de então. Talvez inconscientemente eu nunca quis dividir essa responsabilidade com ninguém, tampouco quis receber essa responsabilidade de ninguém e como disse anteriormente, paga-se um preço alto por isso.

Será que eu deveria ter investido no Joshua, pensava as vezes. Ele gostava de mim simplesmente por eu ser Brasileiro. Muitos acham que o Brasileiro é um povo benevolente, democrático devido a mistura de raças e amistoso e que não quer guerra com ninguém. Se você tiver a oportunidade de viver fora ou aguçar o olhar para o nosso país de forma equânime, perceberá o quão longe disso somos na realidade. Muitas vezes os números viram rotina e é preciso que uma desgraça de grandes proporções aconteça para que possamos olhar para o nosso umbigo.

Benevolente? Com raízes em uma descoberta feita por uma sociedade lusitana de base judaico-cristã que foi nada menos o maior centro mercador de escravizados da Europa, o Brasil a partir de 1538 chegou a receber 4,8 milhões de escravos negros e foi o último país a "abolir" a escravatura. As consequências de mais de três séculos de escravidão ainda podem ser vistas nos dias de hoje. Quantos presidentes negros nós tivemos ao longo da História? Quantos negros estudam em escolas particulares? Quantos fazem curso de Inglês? Quantos moram em favelas? Quantos são estigmatizados como ladrões? Basta olhar para a sua própria família e perceberá alguns membros racistas. Sempre há um.

Democrático? O conceito proveniente do grego antigo significa "governo do povo". Onde três pilares são essenciais para a sua existência: liberdade, igualdade e direito de expressão. O respeito a diferença é primordial, afinal ela é a base de tudo. Ainda mais se formos levar em consideração o país em que vivemos, com um povo extremamente miscigenado como somos, decerto uma ode a diferença deveria ser o nosso hino nacional. Palavras como racismo, feminismo e política de gênero deveriam ser as primeiras a aparecerem em nossa constituição. O sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou para quem, afinal de contas? Não para os favelados oriundos dos povos negros escravizados no passado que precisam de cotas raciais para ingressarem em universidades. Que povo heroico era esse as margens do Ipiranga? Que de 1964 a 1985 permitiu que a ditadura militar se instaurasse no solo da mãe gentil e calasse, torturasse e assassinasse seus filhos? De quem são os braços fortes que desafiam até hoje o próprio peito a morte? Provavelmente são de mulheres, muitas delas negras que quando conseguem com muito custo chegar a um posto de destaque são estereotipadas, esculhambadas, molestadas e por fim caladas a bala para que a máquina consiga continuar confeccionando a máscara que encobre a minoria de super-homens arianos, heterossexuais, cristãos, tiranos, milionários e corruptos que perpetuam o controle da maioria servil em troca de bolsas assistencialistas. Será mesmo que o Brasil é uma mãe gentil para todos que nascem neste solo? Ou só para os que conseguem se eleger a um cargo político? Basta um olhar mais atento e você perceberá que o Brasileiro não sabe que um governo populista, com aqueles mesmos moldes do final dos anos 20, mostra essa relação direta com as massas, que ataca a própria república, que é contra a ciência, querem na verdade produzir o próprio conhecimento da massa, torná-la um animal domado. Querem instaurar a ideia do mito que sabe dialogar com o povão, do pastor que sabe liderar o seu rebanho. E dessa forma pilantra vão instaurando esse modo de controle autoritário que reivindica a obediência, paliam o medo e propagam repressão, adestram um povo ao invés de educá-lo.

Amistoso? Somos um povo vira-lata que acha que tem pedigree. Somos atrasados, mal informados e conformados. Não valorizamos a nossa própria História e temos o péssimo costume de abanar o rabo a estrangeirismos. Principalmente no sudeste do país, local onde nasci e posso afirmar isso categoricamente. Essa história é cheio deles, diga-se de passagem. Somos uma cadela que abana o rabo enquanto somos alimentados de nossos próprios restos. Amistoso vem do espanhol "amistoso" que deriva do latim "amicitia" que significa amizade, já que o termo "amicus" significa "amigo" em português. Como podemos ser amistosos? Só em 2017, o Brasil liderou o número de assassinatos de diversos grupos de pessoas, como jovens negros do sexo masculino, pessoas da comunidade LGBTIQ+, defensores dos direitos humanos, grupos ligados à defesa de terra e populações tradicionais e sem falar dos policiais, segundo um relatório da Anistia Internacional. O Brasil é o país que mais consome pornografia transexual e o que mais mata transexuais no mundo de acordo com a ONG Transgender Europe. Como podemos nos considerar amigos uns dos outros diante de tanta desigualdade social? E tudo isso a base de Panem et circenses. Uma política desenvolvida durante a República Romana e o Império Romano que está em pleno vigor até hoje. A aristocracia incentivava a plebe de certa forma a ficar desinteressada em política e dar atenção somente para prazeres como a comida, através do pão, e o divertimento, retratado pelo circo. Hoje nós temos reality shows e programas como o fome zero.

Quando John Mellencamp findou Hurt so Good, meu copo com uma bebida chamada Beachcomber's Rum Barrel ficou pronta. Vinha dentro de um copo charmoso no formato de um pequeno barril. Era uma bebida a base de rum, licor, suco e absinto. Beberiquei o drink e antes de chegar na mesa onde Daniel e Dani conversavam e riam, do outro lado do bar uma confusão começou. Mesas tombaram, cadeiras caíram e uma algazarra se instaurou. Foi nesse momento que eu simplesmente travei. Travei total. Além de não conseguir me mexer, minha vista escureceu e o meu coração disparou de uma forma que eu só tinha sentido a alguns anos atrás. Fiquei com tanto medo que eu não conseguia sair do lugar. Meus olhos se arregalaram, minhas mãos gelaram e por um momento minha mente voltou para um momento da minha vida que eu tinha prometido a mim mesmo que eu nunca mais queria reviver. Eu estava em pânico. Daniel vendo o meu estado pétreo, correu ao meu encontro. Assim que ele chegou perto de mim, minhas pernas amoleceram e eu achei que fosse desmaiar.

— Fábio! — Dizia ele chacoalhando meu rosto. Eu sabia que ele estava na minha frente, mas eu simplesmente não conseguia enxergá-lo. — Calma, calma. Só foi um desentendimento ali na mesa do lado. Está tudo bem, vai ficar tudo bem.

Dani se ajoelhou a minha frente. Nesse momento eu já estava completamente largado no chão.

— O marido daquela mulher deve ter tido um ataque de ciúmes e partiu pra cima do cara da outra mesa. Está tudo bem, Fábio. — Dani disse.

Eu estava suando frio, minha testa pingava. Aos poucos fui voltando a mim e quando olhei para o lado, vi os seguranças acompanhando um cara até a saída do bar enquanto os garçons organizavam as mesas e cadeiras que tinham caído. Ao ver a mesma mulher que enfeitiçou o barman envolvida na confusão, tentando se justificar para um homem que parecia ser seu namorado, suspeitei que ela tivesse lançado sutilmente seu feitiço em cima de outro macho e o seu namorado não deixou barato. Enquanto ela dizia que não tinha culpa, ele pegava carteira, celular e chaves que tinham se espalhado pelo chão e berrava que aquela tinha sido a última vez e que tudo entre eles estava acabado. Eu estava ofegante, tentava buscar ar como se alguém estivesse me sufocando. Dani tirou a bebida da minha mão com certa dificuldade, meus dedos estavam duros.

— Guarde nossas coisas e o nosso lugar. Vou levar o Fábio lá fora para tomar um ar. — Daniel disse se levantando e me ajudando a levantar. Dani assentiu. Se fosse em outra época, ela teria vindo atrás de mim, pensei rapidamente.

As pessoas ao nosso redor não tinham entendido o que estava se passando comigo. Algumas pessoas perguntaram o que havia acontecido e se precisávamos de ajuda. Daniel apenas disse que eu precisava tomar um ar, colocou um braço meu ao redor de seu ombro, abraçou minha cintura e me carregou para fora.

Assim que saímos pela porta, uma lufada de ar frio rompeu sobre nós despenteando nossos cabelos.

— Respire um pouco, Mané. — Daniel disse me encostando na parede e esfregando os braços para espantar a friagem. — Vai ficar tudo bem.

Encostei minha cabeça na parede e fechei os olhos. Eu estava me tremendo todo. Tive medo de acabar urinando na calça.

— Vocês estão bem? O Fábio está bem? Precisam de alguma coisa? Ajuda? — Ouvi alguém dizer. Abri os olhos e Joshua estava ao meu lado com cara de assustado.

— Ele está bem. — Daniel se adiantou cruzando os braços. — Só precisa de um pouco de ar e um copo d'água se você tiver.

— Claro. Agora mesmo. — Joshua disse e sumiu imediatamente para dentro do bar.

Fechei os olhos novamente. Minha boca estava seca. Provavelmente meus lábios estavam tão brancos quanto a neve que caía além do alpendre.

— Valeu, Dan. Você sempre do meu lado quando eu tô no chão. Já deve ter até se acostumado.

Abri os olhos a tempo de ver Daniel descruzar os braços e segurar um sorriso no canto da boca.

— Pensou o quê? Que eu ia deixar meu amigo passando mal sozinho? Que porra de amizade é essa, Mané?

Não teve como não lembrar do dia de um churras na casa dos pais de um dos camaradas que morava com a gente lá na goma. Todos foram, exceto Daniel que preferiu ficar comigo. Ele deitou na cama que eu estava e colocou seu braço sobre mim. Ainda me lembro de olharmos um para o outro e ouvir ele dizendo "Não sofra por alguém que não te quer. As vezes tem alguém que te curte pra caralho e você não enxerga." Nesse momento um grupo de pessoas saiu porta afora dizendo coisas do tipo:

— Também o cara é um trouxa. Todos sabem que aquela garota faz programa.

Um outro completou:

— Fazia, ela disse. A pessoa que namora uma vadia igual aquela devia saber que elas são igual melância, você nunca come sozinho.

Todos riram e a única garota no grupo comentou:

— Quem em sã consciência namora uma prostituta afinal de contas?

Eu e Daniel sincronicamente olhamos um para outro. Além da Dani, ele era outro que conseguia implacavelmente ler meus pensamentos. Daniel meneou a cabeça. O grupo terminou de colocar blusas e jaquetas e se afastou enfrentando a nevasca em direção ao estacionamento.

— Não ligue para o que os outros dizem. Muito menos para o que mulheres machistas e misóginas dizem.

— Há muito tempo deixei de me importar com o que os outros me dizem, Daniel. Talvez seja esse o motivo de estar onde estou hoje.

— Você não consegue esquecer o Pablo, não é?

— E tem como?

A porta ao nosso lado mais uma vez se abriu e dessa vez era Joshua trazendo um copo com água.

— Me desculpem. — Ele disse com as mãos na cintura. — Não é sempre que acontece esse tipo de confusão por aqui.

— Dá pra ver que o bar é tranquilo, o pessoal é legal. O problema é que sempre há idiotas preconceituosos em todos os lugares. — Daniel falou disfarçando um sorriso para amenizar a situação e tranquilizar Joshua por se achar culpado pela briga.

— Tem razão. — Joshua disse retribuindo o sorriso. — Se precisarem de algo, peçam para me chamar.

— Obrigado. — Daniel e eu dissemos quase ao mesmo tempo. Entreguei o copo vazio para Joshua e ele sumiu porta adentro.

Daniel voltou a esfregar os braços para espantar o frio e me perguntou:

— Está se sentindo melhor?

— Pablo foi o cara com quem eu fiquei por mais tempo. Não é fácil esquecer.

— Imagino. — Daniel disse olhando para o chão.

— Mas ele não era o cara certo para mim. Se eu tivesse ouvido a Dani...

— Eu não acho. — Daniel falou voltando a olhar para mim, dessa vez de braços cruzados. — Ele foi certo para você o tempo que deveria ser. Assim como o Paulo e o Fabiano permaneceram na minha vida durante o tempo que era para ser.

— Mas se eu tivesse ouvido os conselhos da Dani, não teria passado por tudo o que passei com o Roger e com o Pablo.

— Você já reparou como você justifica seus erros com base no que os outros ditam o que é certo e errado para você? Você passou pelo que passou por escolhas suas e não por causa do Pablo, do Roger ou por causa dos conselhos que você não seguiu. Chega um ponto em nossas vidas que a gente precisa se arriscar, aprender, errar, voltar atrás, reconhecer o erro e começar tudo de novo. Isso é a vida. O que você viveu te deu bagagem para chegar até aqui pelo menos.

— Alguns caminhos a gente tem que trilhar com as próprias pernas, não é? — Repliquei o conselho que ele havia me dado há quase uma década atrás.

— Hoje arrisco a dizer que todos os caminhos a gente trilha com as próprias pernas, Mané. Nossas escolhas, nossas renúncias. Mas isso não quer dizer que precisa estar sozinho. Eu sempre estive ao seu lado. Quando você e o Paulo tinham um caso, eu estava lá... —- Ficamos mudos por alguns segundos e como eu não disse nada, ele retomou: — Quando você descobriu que o Fernando não era o Fera, eu estava lá. Eu vi você e o Roger em cima do trio dando o seu primeiro beijo em público. Quando você e o melhor amigo do Roger foram pegos de surpresa, eu estava lá. Quando você foi parar no hospital, eu estava lá. Eu te disse isso uma vez e não vou voltar atrás na minha palavra. Eu sempre estarei aqui por você.

Abri um sorriso. Só ouvir aquilo já me fez sentir melhor novamente. Daniel também sorriu e abriu os braços. Não recusei o abraço. Juntamos nossos corpos e tudo fez sentido. Talvez eu tivesse que ter passado por tudo o que passei para eu assumir minha homossexualidade e deixar de ser homofóbico, machista e insensível. Talvez eu tivesse que ter feito Daniel passar por tudo o que ele passou para que ele pudesse amadurecer e deixar de ser tão pegajoso, bajulador e acessível. Nada obstante o tempo todo separados, éramos fiéis um ao outro, isso era fato. Sempre acabávamos voltando um para os braços do outro. E só depois de todo esse tempo pude perceber que o meu sentimento pelo Daniel nunca mudou. Adormeceu, mas nunca se alterou. Eu já o admirava pela coragem de se assumir gay e assentir uma relação tóxica com o Paulo que em nada mudou o seu caráter e muito menos abalou o elo forte que havia entre nós. Mesmo quando ele tinha ciúmes do Paulo. Agora, sem máscaras e diante de todas as minhas fraquezas ele ainda se dispunha a estar ao meu lado nessa caminhada que tanto me lesionava. Nos braços dele me senti protegido, me senti acolhido, me senti quisto. Retribui o gesto erguendo a cabeça. Estávamos colados e olhamos um nos olhos do outro. Fechei os meus e tentei beijá-lo. Achei que tudo que estávamos sentindo fosse recíproco e que só podia melhorar se selássemos essa parceria com um beijo gostoso. Como aqueles que dávamos na época da faculdade. Porém, ele recuou.

— Acho que alguém aqui já bebeu demais. — Disse ele com um sorrisão no rosto para afugentar o estranhamento que se instaurou.

Nos separamos e eu falei:

— E alguém bebeu de menos.

Daniel mordeu os lábios e me olhou com a cabeça baixa como se fosse uma criança que acabara de levar bronca.

— Foi mal, Mané. Eu acho que me expressei errado. Eu sempre estarei ao seu lado, mas como amigo.

Foi minha vez de esfregar os braços para me esquentar depois daquele balde d'água gelada que Daniel me jogou.

— E um beijo mudaria isso? — Falei com um sorriso de lado passando a mão levemente sobre o seu peito. Antes de investir novamente contra ele, falei: — Sempre fomos amigos e nunca nada impediu de irmos além.

Daniel deu passo para trás. Respirei fundo, me distanciei dele pensando no que ia dizer, dei uma volta em torno de mim mesmo e falei:

— Achei que já tivesse me perdoado por todas as merdas que fiz no passado. A gente conversou sobre isso. E outra, nós dois estamos solteiros agora. Sim, ainda penso em Pablo, mas todos precisamos seguir em frente. Não estamos enganando ninguém.

Ele me olhou calmamente e corroborou:

— Sim. Conversamos. Eu não tenho problema nenhum com o passado.

— Então o que foi isso?

Ele respirou fundo, ergueu a cabeça como se tivesse ensaiado e esperado anos pelo que ia dizer. Por fim, segurou meus ombros e soltou:

— Eu consegui perdoar, mas não esquecer.

2.

No início da adolescência percebi em mim um desejo por pés. Nada exacerbado. Eu dizia que era pedólatra, até descobrir que pedólatra é quem tem adoração por crianças. O correto é podólatra. Podólatra é quem tem adoração por pés. No começo era apenas uma vontade de ver como eram os pés dos cuecas. Tenho fixação somente por pés masculinos. Conforme o tempo foi passando mais interesse fui tendo. A ponto de gostar de comer os caras de frango assado para poder segurá-los pelo calcanhar e admirar seus pés bem de perto. Nunca fui adepto a fantasias. Para mim remetem a blocos de carnaval. Possivelmente eu riria ao invés de ficar excitado se alguém aparecesse na minha frente fantasiado. Posto isto, fetiche para mim nunca foi algo muito explorado. Depois que me assumi gay a minha vontade era de ir para cama e conhecer corpos masculinos de cores e formas diferentes. Quando conseguia ter acesso a rapazes curiosos que ainda estavam no armário ou mesmo os que não tinham definido o que queriam da vida, melhor ainda. Nesse caso o prazer era redobrado. Eu me sentia o Pedro Álvares Cabral, desbravando armários nunca antes explorados.

Sempre soube do vasto submundo fetichista. Duvidava que aquilo fosse verdade até assistir um trecho do afamado 2 girls 1 cup. Entretanto, sempre tive um pé atrás se aquilo de fato excitava alguém ou era só estratégia de marketing para atrair um público curioso por excentricidades. Todos temos os nossos fetiches, por mais simples que sejam. Porém, o que eu vi na noite anterior extrapolavam todos os meus. Aquilo de fato existia. Tive pesadelos com o cheiro e com o que vi e ouvi naquele alfeire degradante, conhecido como Pigstomb. Era como uma dimensão paralela, um dos nove círculos do Inferno de Dante Alighieri, mas sem a delicadeza e assepsia das pinturas de Sandro Botticelli.

Decidido a esquecer de vez Pablo e todo aquele universo ao qual ele pertencia, levantei e percebi que estava sozinho pela ausência do som da vassoura limpando alguma coisa dentro do apartamento. Tomei um banho extremamente demorado pensando no quão felizardo eu era por nunca ter cruzado com ninguém que propusesse nenhum daqueles fetiches que eu tinha visto na Pigstomb. Pensando nos fetiches inocentes que eu realizei com todos os caras com quem transei no Brasil, não teve como não lembrar de Roger. Ele teria morrido se tivesse entrado na Pigstomb. Fiquei lembrando dos bons momentos que passamos juntos e não teve como não lembrar de nós em frente ao Hello There e ele me dizendo:

"— Nós fomos as pessoas certas, na hora certa na vida um do outro. Eu aprendi muito com o nosso namoro.

— Eu também. — Respondi.

— Mas talvez ainda não seja a hora de levarmos a nossa relação como a gente achou que daria certo."

Fiquei analisando o que de fato eu tinha aprendido com o Roger, já que eu estava deixando me levar por um garoto de programa mentiroso que realizava bizarrices para os seus clientes fetichistas. Voltei a pensar em Roger e dessa vez a voz do Daniel veio à minha mente em alto e bom tom:

"— Dani tem razão, Mané. Olhe o que ficou ao seu redor. Talvez você e o Roger ainda se encontrarão lá na frente, mais maduros, diferentes.

— Ou talvez o destino tenha separado alguém melhor que ele. E essa pessoa esteja agora terminando o relacionamento dela para que lá na frente vocês possam se encontrar. — Dani disse.

— Ou talvez a pessoa esteja namorando, esperando o seu tempo de amadurecer até que ela possa decidir o que fazer. O mundo é seu, Mané. Mundo é seu, Mané. É seu, Mané. Seu, Mané. Mané. Né."

A voz de Daniel ecoou na minha cabeça e eu decidi fechar a torneira e acabar com o banho antes de dar mais espaço para uma crise existencialista. Seria o Pablo essa pessoa que Dani se referiu? Será que eu e o Roger algum dia íamos voltar a nos encontrar? Ou será que uma terceira pessoa ainda ia entrar nessa história, como o Daniel sugeriu?

Enrolado na toalha e pensando em tudo isso, vesti uma roupa limpa e o cheiro de amaciante da roupa apagou da minha memória o filme de terror que tinha visto na Pigstomb. Parecia que outra pessoa tinha estado lá e não eu. Preparei meu café da manhã e antes que pudesse saboreá-lo a campainha tocou. Achei estranho. Pensei que fosse Dani, mas na verdade...

Pablo?

— Eu só passei para dar um oi. — Ele disse depois que eu abri caminho para que ele pudesse entrar.

King Kobra em pessoa estava em pé e seminu no meio da minha sala. Eu só não ri da situação e de seu traje excitativo porque fiquei surpreso com a visita inesperada. Fechei a porta e falei:

— Você ficou maluco aparecer aqui vestido assim? E se a Dani estivesse em casa? Como entrou aqui? — Perguntei após fechar a porta e dar voltas ao redor dele completamente estarrecido ao vê-lo dentro do meu apartamento, vestindo apenas uma sunguinha e um par de botas de couro.

— A Dani já me viu com menos roupa, Fábio. Eu entrei pelos fundos, pela porta de emergência. — Ele respondeu com a maior displicência antes de pegar uma fatia de bacon do meu prato que estava próximo e comer metade.

Era muita ousadia aparecer na minha casa de surpresa e ainda mais vestido daquele jeito. A minha surpresa era inefável.

— Como conseguiu? — Falei tomando o restante do pedaço de bacon da mão dele e jogando no meu prato. Enquanto limpava os dedos engordurados em um pano de prato, falei: — Ela não abre pelo lado de fora.

Ele lambeu as pontas dos dedos engordurados e se ateve por mais tempo no dedo do meio enfiando ele inteiro na boca. Em seguida caminhou felinamente pela sala, virou-se na minha direção, sentou-se no centro do sofá da sala de estar, abriu os braços e os repousou sobre o encosto. Em seguida, cruzou as pernas a la Catherine Tramell, personagem de Sharon Stone no filme Instinto Selvagem e respondeu com desdém:

— Eu tenho os meus truques.

Aquela pessoa a minha frente nem parecia o Pablo que eu conhecia. Era muito mais frio, debochado e provocador, em mais de um sentido inclusive.

— E você acha que pode aparecer aqui em casa... assim... — Falei apontando para o casaco no chão.

— Fui obrigado a fazer isso desde que você sumiu e não foi ao nosso encontro.

Passei as mãos pelos meus cabelos. Peguei o casaco de pele do chão e disse:

— Pablo, precisamos conversar. Mas antes disso, coloque a roupa, por favor. — Entreguei o casaco para ele, mas ele ignorou. Não se moveu. Ficou igual uma estátua de braços abertos e pernas cruzadas. Joguei o casaco ao lado dele do sofá. — Eu acabei de preparar meu café da manhã. Está servido?

Ele se levantou e veio até a bancada. Ficou do lado da sala e eu dentro da cozinha.

— Aceito café se tiver. — Ele pegou o restante do bacon que havia mordido e comeu — Humm isso está gostoso. Eu sei que você esteve no Pigstomb. Lurch, o segurança, me falou. Sei que você deve ter visto coisas que, digamos, não fazem parte do seu cotidiano. Mas foi você quem disse que gostaria de saber o que eu faço a noite, não foi?

A Vera Verão ia conseguir acabar com o meu dia de folga pelo visto. Só de lembrar da Pigstomb meu apetite foi por água abaixo. Enchi uma caneca com o café que Dani deixara na cafeteira.

— Açúcar ou adoçante? — Ele apontou para o açúcar e eu coloquei duas colheres enquanto dizia: — Como consegue? Aquilo vai muito além do que alguém pode considerar como fetiche. Chega a ser algo doentio.

— Não julgue o fetiche alheio, bro. — Ele falou com a voz grossa de sempre. Pegou a caneca de café e deu alguns goles. Em seguida feminilizou novamente — Ninguém está ali obrigado. As pessoas pagam e pagam caro para ter aquele tipo de prazer. Não é todo lugar que oferece esse tipo de serviço.

Como podem?

— Eu sinceramente não consigo entender.

— Ora...Então não entenda. — ele disse se apossando do meu prato de café da manhã e comendo com a ponta dos dedos. Era até melhor que ele comesse para eu não ter que jogar fora.

— Como você consegue? Como tem estômago para passar por aquilo?

— Eu preciso. — Ele falou mastigando. Tomou mais um gole de café e completou: — Tenho contas para pagar.

Fiquei puto ao ouvir aquilo. Nem sei dizer o porquê daquilo me afetar. Fui para a sala, apontei para as prédios além da janela da sala e soltei em voz alta:

— Nova Iorque é a terra da oportunidade, Pablo! Você não precisa se sujeitar aquilo, porra!

Pablo parou e ficou mudo por alguns instantes. Ele me olhou nos olhos como se estivesse diante de uma criança que não entende nada da vida ainda. Lambeu as pontas dos dedos feito uma pantera. Em seguida, continuou:

— É a terra da oportunidade para pessoas que vêm de famílias abastadas e que conseguem se sustentar. Essas pessoas normalmente são altas, magras, brancas e loiras. Tipo o Joshua. — Finalizou com certo desdém.

Ele voltou-se para frente e continuou comendo. Não consegui ficar calado. Tipo o Joshua? Aquilo foi uma provocação? Uma centelha de ciúmes ou apenas um comentário racista?

— Você está julgando o Joshua errado. — Falei. — Ele já passou por muita coisa, assim como eu e você e não precisou virar garoto de programa ou uma privada humana para conseguir sobreviver.

Pablo parou de mastigar e ficou simplesmente imóvel. Lentamente virou a cabeça na minha direção. Seus olhos, agora verdes por conta das lentes de contato, eram como laser a procura de um alvo. Quando dei por mim, Pablo estava a poucos centímetros a minha frente. Ele estava mais alto que eu por conta dos coturnos.

— Como ousa? Você fala como se eu fosse a escória do universo só porque ganho dinheiro fazendo programa. É um dinheiro honesto se você quer saber. Não estou roubando, chantageando ou forçando ninguém a nada. — Ele disse aumentando o tom de voz a cada palavra. Nunca tinha visto ele levantar o tom da voz daquele jeito. Parecia outra pessoa. — As pessoas me procuram! — Pablo foi em direção a janela e perdeu o olhar nos prédios. Disse calmamente: — Não, não é o que eu sonhei pra minha vida, não é o que eu quis fazer, mas é o que eu sei fazer de melhor. E há quem paga por isso. Que mal há?

— Nenhum. — Caminhei olhando para aquele homem enorme Reparei no seu corpo, no cabelo com apliques de dreadlocks que o deixaram ainda mais charmoso do que ele já era. — É que ganhar dinheiro oferecendo o corpo, sei lá, me parece algo sujo.

Ele ouviu o que eu disse, virou-se para mim e se dirigiu a cozinha dizendo:

— Na Roma antiga prostituição era legal, pública e bem disseminada. Até os homens romanos da mais alta sociedade eram livres para se envolverem com prostitutas e prostitutos sem que houvesse desaprovação moral.

Levantei e fiquei onde ele estava anteriormente, do lado da sala. Empurrei o prato com o que restou do café da manhã que estava sobre a bancada ao lado dos seus óculos e falei:

— Não estamos mais na Roma antiga, Pablo.

"Era só que me faltava. Ter aulas de história com um garoto de programa". — Pensei comigo.

— Você está certo. — Ele disse servindo-se de mais café e adicionou açúcar. Enquanto movimentava a caneca para misturar, insistiu: — Depois que o Cristianismo enclausurou as pessoas com os seus dogmas e preconceitos dentro de casa e doenças como a sífilis se espalharam pelas cidades, pessoas como eu foram saindo de cena. Da realeza fomos para os becos. Do dia para a noite. Do público para o privado. Do comum e consensual para o errado e sujo. Nos tornamos o segredo das madrugadas.

Quando terminou de falar, já estava na sala novamente. Encostou o ombro na parede e bebeu seu café.

Night secrets. Parece título de filme pornô barato. Taí, porque você não vai para uma produtora e se torna um astro pornô como o Sean Paul Lockhart? Ou então você poderia escrever um livro relatando os percalços da vida noturna. O livro poderia se chamar Night Nightmares.

Eu já estava começando a ficar de saco cheio daquele papo logo de manhã. Por isso resolvi fazer o que fazia de melhor. Fui irônico.

— Eu sei o que está fazendo. — Ele disse terminando o café e colocando a caneca na bancada ao meu lado. Ele tentou passar a mão no meu rosto enquanto dizia: — Essa ironia não vai nos levar a lugar algum.

Segurei o pulso dele firmemente e falei por entre os dentes:

— E você tentando explicar a origem da prostituição no século IV e como devemos normatizar e legalizar a prática, vai?

Com um movimento brusco, ele se livrou da minha mão e falou com a voz do Pablo que eu conhecia:

— Eu não vim aqui pra isso, bro.

Enquanto eu o observava voltando para a sala, berrei:

— Veio para quê então?

Enquanto ele vestia o casaco de pele, falou:

— Porque eu quero ficar próximo de você. Quero continuar te vendo.

Fui até a sala e coloquei as mãos na cintura. Igual meu pai fazia antes de justificar porque não queria que eu saísse de balada de sexta a domingo.

— Eu não sei o que te dizer, Pablo. — Passei a mão na testa, escolhendo as palavras. — Eu nunca pensei em namorar um garoto de programa.

Pablo me segurou pelos ombros e falou:

— Não estou te pedindo em namoro, bro. Estou pedindo para a gente continuar se vendo como antes. Qual o problema em continuar com o nosso lance?

Algo me chamou a atenção no sofá, logo atrás de Pablo. Foquei o olhar e vi Paulo sentado no sofá comendo uma maçã vermelha. Ele estava aparentemente igual a última vez que eu o vi.

— Não olhe para mim, Cabeção. — Ele falou de boca cheia e com um sorriso sarcástico no rosto. — Eu nem sei como eu vim parar aqui.

Ignorei a ilusão. Voltei o olhar para Pablo e falei com sinceridade:

— O problema é que agora eu sei que enquanto eu durmo você fode com outros caras.

Me senti uma menininha de colégio ao assumir o que eu estava sentindo. Não era uma questão de possessividade e sim de lealdade.

— E qual é o problema, bro? Preferia não saber? Nós somos gays. O mundo gay não funciona no mesmo padrão do mundo hétero hipócrita.

Ele queria dizer que era normal ter que ceder seu namorado pros outros foderem só porque a gente era gay?

— Eu preferia que você fosse o técnico de computador e o tocador de tuba de uma igreja qualquer, como eu imaginei que fosse.

Olhei para o sofá e Paulo havia sumido. Pablo se aproximou e passou a mão nos meus cabelos. Era tão bom o carinho dele. Eu entrava em transe quando ele me tocava.

— Qual o problema se eu fodo com outras pessoas que eu nem lembro o nome, mas de manhã quando acordo a primeira pessoa que eu quero ver é você? — Disse ele se aproximando a cada palavra.

Antes dos seus lábios encostarem nos meus, me desviei dizendo:

— Você não precisa disso, cara. Por quê faz isso?

Aquele papo de merda já tinha chegado no limite. Porém, eu me sentia atraído por aquele homem. Não conseguia simplesmente mandá-lo calar a porra da boca e expulsá-lo de casa. Decidi então começar a dar um trato na casa. A última coisa que eu queria era que Dani chegasse naquele momento e me enchesse o saco com os afazeres de casa. O que certamente faria e ainda era capaz de ficar do lado do Pablo nessa sandice toda. Quem sabe ele percebendo que eu tinha afazeres, não se tocava e ia embora por conta própria? Fui para a cozinha e joguei o que restou do café da manhã no lixo e comecei a lavar a louça.

— Uma vez alguém disse "se expulsarem a prostituição da sociedade, tudo será abalado por conta dos desejos". — Ele recomeçou, contornando a parede, aumentando a voz para que eu o ouvisse e entrou na cozinha. Me abraçou por trás. Senti o volume da sua rola quase nas minhas costas. Ele estava bem mais alto que eu. — Você concorda? — Ele perguntou beijando meu pescoço.

Pescoço não, porra! Pescoço é golpe baixo.

Minhas pálpebras cederam um pouco, momentaneamente. Quase entrei em transe. Senti meu corpo se arrepiar inteiro. Porém, em um instante recobrei a consciência e continuei enxaguando a louça e dizendo:

— Você é um cara inteligente. Pode arrumar um emprego honesto. Não precisa dedicar sua vida profissional realizando desejos alheios. Ainda mais os que você se propõe a realizar.

Pablo gargalhou do que eu disse. Joguei a caneca na pia sem ligar se tinha quebrado. Mordi os lábios, virei de frente para Pablo e apoiei as mãos na pia.

— Emprego honesto? — Ele perguntou e continuou falando e se aproximando — Eu acho que as nossas definições de honestidade aparentemente são bem diferentes. Eu faço o que faço porque eu preciso de grana. Faço pelo dinheiro! — Ele disse com seu nariz encostado no meu. Eu inspirava e expirava lentamente. Se fosse alguns anos atrás eu teria quebrado a caneca de café na cabeça dele. Ele me deu as costas e saiu da cozinha dizendo: — Eu quero poder comprar as coisas que eu quero, comer o que eu quiser, viajar para onde quiser. Você acha que como técnico de computadores eu conseguiria tudo isso rápido? Ganhando 250 dólares por semana, bro? Trabalhando doze horas por dia?

Por sorte a caneca não quebrou. Coloquei ela junto com as outras louças no escorredor. Fui para a sala enxugando as mãos em um pano de prato e dizendo:

— A maioria das pessoas fazem isso. Algumas ganham bem menos que 250 dólares por semana.

Pablo novamente parou e ficou imóvel por alguns instantes. Em seguida virou-se para mim, abriu os braços e berrou:

— Mas eu não sou a maioria, porra! — Aquele corpo. Aquele homem. Lindo vestindo um casaco de peles, sunga e coturnos pareceu a criatura mais linda e indefesa do mundo naquele momento. Ele ficou envergonhado, fechou o casado e repetiu com a voz mais baixa: — Eu sou isso aqui. Só isso aqui.

Terminei de enxugar as mãos, joguei o pano de prato em cima da pia e lhe indaguei com curiosidade:

— Espere um pouco. Você... você gosta do que faz?

Pablo sentou no sofá com o corpo arqueado para frente. Entrelaçou os dedos e respondeu de cabeça baixa:

— Você viu o que eu faço. O que você acha?

Fui até ele e me ajoelhei na sua frente. Sentei sobre os meus calcanhares e respondi:

— Eu não sei. Acho que você optou pelo caminho mais fácil.

— Exatamente. — Ele olhou para mim. — Você não sabe. — Em um movimento rápido, ele me colocou no sofá, como se me colocasse em um trono e ficou de joelhos, sentado em seus calcanhares como se fosse um vassalo obediente e falou de baixo para cima: — Você não sabe o que é entrar na intimidade do outro sem ter vontade. Você não sabe o que é ter que fingir desejo por um corpo que não te atrai. Você não sabe o gosto amargo que tem o beijo em troca de dinheiro. Não venha me dizer que é fácil... — Ele ficou de joelhos e por um momento ficamos praticamente da mesma altura — ...porque você não sabe de porra nenhuma. — Rosnou com a voz sendo dita por trás dos dentes.

— Desculpe. — Pedi, mergulhando uma mão sobre o seu ombro volumoso devido ao casaco de peles. — Mas tente entender o meu lado também. Eu nunca me envolvi com um...

Parei de falar. Pensei em uma palavra que não fosse ofendê-lo, mas naquelas circunstâncias meu silêncio foi pior que qualquer adjetivo que eu tivesse usado para tentar rotulá-lo. Ele me olhou e expirou todo o ar que tinha em seus pulmões, com um movimento se livrou de minha mão que estava sobre o seu ombro e quando percebi estava em pé, novamente incorporado pelo King Kobra. Deu uma volta em torno de si e abriu o casaco para que eu admirasse a luxúria em forma de gente.

— Stripper? Michê? Gigolô? Puto? Com um prostituto? Ande, fale.

Fiquei super envergonhado de tê-lo ofendido. Não tinha sido nem de perto a minha intenção. Entrelacei os dedos e disse cabisbaixo:

— Não foi isso que eu quis dizer.

Ele veio até a minha frente. Minhas mãos encostaram em seus coturnos. Sua sunga abrigando a cobra avantajada que lhe rendia a alcunha de Rei na noite novaiorquina encostou no meu rosto. Olhei para cima e meu olhar lambeu cada montículo de seu abdômen até chegar no seu olhar virente, penetrante, insustentável. Como era possível ser tão gostoso? Engoli em seco. Meu pau deu sinal de vida.

Como se olhasse para um mictório humano, desses que certamente já estava cansado de usar, falou baixinho passando o dedo indicador pelo corpo e com a voz embriagada de sensualidade:

— Você nunca se envolveu com um preto, puto e pirocudo como eu. Estou certo?

Medi seu corpo de cima em baixo e inspirei tentando sentir o cheiro da sua rola.

— Sim. Está.

Ele segurou minha cabeça com as duas mãos. Em seguida levou uma das mãos para o elástico da sunga de couro, com a outra mão desceu até meu queixo e ajustou a altura da minha boca. Ele tinha um encanto que no Brasil chamam de "borogodó", coisa que só os negões gatos como ele possuem. Pablo moveu o elástico da sunga para baixo até eu ver o começo do tronco que carregava entre as pernas. Porém, em um passo de mágica, acabou com a macumba que mal tinha começado. A mão que ainda estava no meu queixo me apertou e ele curvou-se até aproximar seu nariz do meu e disse olhando nos meus olhos com a voz tão serena quanto um vento refrescante de Iansã:

— Eu sou muito mais do que minha cor e minha profissão. Eu sou muito mais do que um pedaço de carne, Fábio. — Largou meu queixo com estupidez, foi até a bancada, pegou e vestiu seus óculos com a armação branca e por último falou: — Uma pena que seus preconceitos não te deixam ver além dessa superficialidade toda.

Quando percebi que ele ergueu o queixo e feito um rei africano vestindo seu manto suntuoso de juba de leão sumiu da minha vista, me levantei.

— Pablo, espere!

Já era tarde. Só deu tempo de ver a porta fechando depois que ele saiu do apartamento.

3.

Se eu não fosse tão orgulhoso teria aberto a porta e corrido atrás de Pablo tentando me justificar. Porém, não o fiz. Assim como também não corri atrás de Paulo na época em que eu era apaixonado por ele. Sempre esperava que as pessoas viessem atrás de mim. Meu orgulho falava mais alto. Eu sentia a falta e a necessidade de dizer tudo o que eu estava sentindo, mas não era de correr atrás de ninguém. As poucas vezes que o fiz, me fodi. Acabei dando de cara com Paulo e Daniel se beijando na Bubu Lounge, quando fui atrás de Daniel. Roger acabou me dando um soco dentro do banheiro do Country Beer quando tentei ser mais incisivo em ajudá-lo a se assumir, digamos assim.

Uns acreditam que o valor dos sentimentos tal qual de coisas do nosso cotidiano tem perdido a sua importância e afirmam que isso se agrava gradativamente. Há aqueles que associam esse desapreço com o progresso tecnológico. Assim como um aparelho celular de última geração é constantemente desatualizado, assim os sentimentos são tratados, como se fossem descartáveis. A internet hoje disponibiliza um cardápio de pessoas sedutoramente instigantes. Assim, após a primeira noite se você não gostar ou mesmo se gostar, mas não quiser repetir o prato tudo bem, basta acessar a rede e procurar no cardápio o que e quem você vai querer comer na noite seguinte. A facilidade não agrega valor e com isso todos nos tornamos descartáveis e descartamos uns aos outros sem insistências. Insistir tornou-se algo chato. Criticamos por não encontrarmos ninguém que presta, mas não fazemos questão de provar nada para ninguém, afinal criou-se a cultura do "eu não sou obrigado a nada". Com isso nos afastamos do núcleo, do nosso eu verdadeiro e deixamos para avaliação e prova a superficialidade, a aparência distorcida da realidade para que outros seres distorcidos pela necessidade possam mesmo que de maneira fugaz prestar um pouco de atenção em nós. Por não sermos obrigados a nada, nada fazemos e por ser chato não insistimos em nada. Sendo assim, as pessoas simplesmente passam por nossa vida sem criar raízes, sem deixar memórias significativas e muitas vezes sem deixar nomes.

Como eu poderia ser feliz ao lado de alguém sem que houvesse pelo menos de uma das partes a força de vontade de investir em um relacionamento? Há quem diga que temos que ser felizes sozinhos. Morando fora e carente de amigos e família isso se torna um pouco mais difícil. Além disso, eu sempre voltava à frase de Thoreau eternizada por Christopher McCandless que diz que a felicidade só é real quando for compartilhada. Para mim a felicidade só seria autêntica dentro de um relacionamento se houvesse amor. Aí entra o "x" da questão. Como saber se o que eu sinto é de fato amor? Penso que hoje em dia há uma associação errônea entre amor e conveniência. Ter alguém para lavar, passar, cozinhar, compartilhar dívidas para facilitar a sua vida financeira, ter alguém para transar quando você tem vontade, viajar quando conseguem planejar férias, alguém para te levar ao médico quando você fica doente, para mim isso tudo é conveniência. Você conseguiria fazer tudo isso com amigos ou com qualquer outra pessoa. Ter alguém para amar não significa ter alguém do seu lado para fazer essas coisas para você ou você fazer tudo isso para alguém. Amar para mim simboliza uma entrega de vida. Amar é se privar. Talvez por isso eu nunca tenha dito "eu te amo" para ninguém. Dizer "eu te amo" é como entregar o coração para que a outra pessoa tome conta e seja responsável pelo bombeamento de emoções para que você não morra e vice-versa, é como entregar um cartão sem limites para que alguém possa fazer investimentos na sua vida emocional que te motive e inspire a produzir, viver intensamente, ser alguém melhor do que você foi no dia anterior. Eu via o amor como algo que demandava tanta responsabilidade que talvez o fato de nunca ter dito esteja relacionado ao medo de decepcionar e de me decepcionar. Embora a maioria das pessoas digam: "mas só assim você agrega experiência e aprende com os seus erros", eu sabia de tudo isso, mas ainda assim a entrega e as consequências teriam impactos sobre mim que talvez eu não estivesse preparado para lidar. Para quem está acostumado a ter vários namorados(das) e dizer eu te amo tão fácil quanto trocar um rolo de papel higiênico depois que tudo acaba em merda, tudo bem. Foda-se o relacionamento dos outros. Eu não acreditava que alguém podia amar verdadeiramente mais de uma pessoa. E tudo bem se existiam relacionamentos abertos, onde uma comunidade inteira se ama. Eu não acreditava que houvesse algum sentimento real ali. Talvez conveniência, talvez comodidade, fetiche ou receios, mas amor... amor não. Esse é o terceiro livro sobre a minha vida, caro leitor. Acho que você já percebeu que comigo o buraco é mais embaixo. Certo?

Naquele dia que Pablo apareceu em casa fiquei sozinho o dia inteiro sozinho, pensativo. Dani foi direto do trabalho para a casa das amigas dela porque iam sair a noite para alguma festa de aniversário de alguém. Ela me chamou, mas eu não quis ir. Fiquei vagando de um lado para o outro com o olhar perdido nas paredes, enclausurado em reflexões, tentando entender o que eu estava sentindo. Senti falta do colo da minha mãe. Senti falta dos meus amigos do Brasil, mas não ia incomodar ninguém com os meus problemas e muito menos estava afim de saber a opinião dos outros a respeito do meu envolvimento com um garoto de programa. Fiquei pensando na reciprocidade que Pablo tanto defendia e minha mente fez o caminho inverso me fazendo lembrar dos momentos em que eu não fui recíproco com as pessoas ao meu redor. Inevitavelmente me lembrei de Daniel. Estávamos a milhas de distância e em algum lugar lá no Brasil estava o cara que se entregou para mim sem me cobrar nada, sequer reciprocidade. Lembrei de quando ele me deu um rechaud em formato de sol porque o que o Paulo havia me dado o Negão tinha quebrado. Lembrei de quando ele arrumou nossas roupas na mala para irmos à chácara onde eu conheci a Tábata. Lembrei dele dançando Mamma mia e me pedindo em namoro depois do nosso primeiro e inesperado beijo. Lembrei do jantar que ele preparou e eu destruí por não conseguir enxergar e aceitar quem eu era de verdade. Lembrei do rosto dele chorando e sorrindo quando fomos para a cama e transamos de verdade pela primeira vez depois de vê-lo triste e se embriagando na varanda da goma por já ter assumido para si mesmo o que ele era de verdade. Também lembrei de Roger e como ele estava lindo só de sunga e um par de asas nas costas no dia em que ele subiu no trio elétrico no meio da Parada Gay. Para alguém que não queria sequer mostrar o rosto, decidir subir em um carro de som e se expor daquela forma por minha causa não era pouco. Lembrei do dia que ele apareceu na minha casa e se ajoelhou a minha frente me pedindo em namoro. Lembrei de oficializarmos o nosso relacionamento e trocarmos alianças na praia e também da primeira vez que fomos para a cama e ele me disse que era gouinie. Lembrei de quando ele disse que me amava enquanto subíamos em direção ao Pico do Jaraguá deitados escondidos no teto do baú de um caminhão. Lembrei de quando transamos em um motel depois do primeiro encontro com Lilson e Mariana. Lembrei da sensação indescritível ao vê-lo em pé no Hello There depois de tanto tempo afastados. Todas as lembranças me deixaram mal porque analisando friamente sempre os outros demonstraram abertamente o que sentiam por mim, correram atrás, investiram e tentaram fazer dar certo e eu nunca fiz nem metade em sinal de reciprocidade, pelo contrário.

Mesmo eu tendo tido um affair passageiro com Paulo e ter transado com vários caras, ninguém tinha se entregado para mim de forma tão legítima quanto Daniel e Roger. Pelo menos com Roger eu namorei e já estava resolvido com a minha sexualidade. Já com Daniel, embora vivêssemos dentro da mesma casa tendo que dividir tarefas e dinheiro, nunca soube o que era tê-lo como namorado. E depois de vê-lo com Paulo e tudo o que ele passou e se permitiu passar, e no final vê-lo se mudando para viver uma vida de casado com Fabiano fez com que a possibilidade de vivermos algo parecido com o que já tínhamos vivido nos anos dourados da época da faculdade foi ficando cada vez mais remota.

Não saí no final de semana. Decidi ficar em casa para evitar a possibilidade de topar com Pablo incorporando o seu alter ego e ficar mal em saber que outras pessoas no final da noite estariam passando a mão nele, sentindo o beijo dele, vivendo um nível de intimidade que para mim ele deveria sentir só comigo. Era melhor ficar sozinho do que criar falsas expectativas. Ele propôs que continuássemos com os nossos "lances". Eu já tinha vivido essa fase de lances com Paulo e não deu certo. Eu não queria investir em um cara que eu sabia que eu não poderia criar expectativas de viver um relacionamento dentro do modelo que para mim era o correto. Não queria chegar ao ponto de ficarmos prometendo coisas um para o outro que sabíamos que não íamos conseguir cumprir. Embora o sexo com ele fosse o melhor que eu já tivesse tido em toda a minha vida, eu tinha que saber escolher minhas batalhas. Não queria viver de mentiras e uma conversa mais profunda com certeza nos levaria a ter que falar de nosso passado, justificar os porquês de pensarmos diferente e acabaríamos projetando nossos anseios um no outro . Eu já tinha passado por tudo isso com o Roger, tomei no cu e aprendi.

Dani acabou passando o final de semana com as amigas. Quando levantei na segunda-feira para ir trabalhar ela já tinha saído. Como eu não estava com muito bom humor, era até melhor que a gente não se visse. Se eu tentasse me abrir, ela tentaria me convencer que Pablo não era o cara ideal para mim, mas para ela não havia objeções. Nunca havia um cara ideal para mim na opinião da Dani ou talvez ela me conhecendo tanto, sempre quis dizer que eu não era o cara ideal para ninguém. Além da opinião ferrenha, todo o fato de Dani e eu morarmos juntos e termos que dividir tarefas e dinheiro me estressava cada vez mais. Como amiga, não há o que dizer. Ela é o tipo de pessoa que todos amam ter por perto. Ela tem uma luz que alegra todos ao redor. A festa só começa de verdade depois que ela chega. Porém, morando juntos, ela calculava até os copos de suco de laranja que tínhamos que tomar para que o litro durasse até o final da semana. Eu jamais tive que me preocupar com isso enquanto morei com os meus pais e nem na goma com os caras. Mimado, eu? Talvez. Mas foda-se, fui criado assim e amadurecer até mudar certos aspectos que antes eram tidos como naturais leva um certo tempo e muitos tropeços. Quando eu morava no Brasil e acabava alguma coisa, alguém ia e comprava outro e pronto. Fora isso, a insistência em manter tudo limpo como se morássemos em uma vitrine de loja me tirava do sério.

Segunda-feira quando acordei, ela já tinha saído. O dia tinha amanhecido com a cara fechada. Pouco sol, muito vento. Passei na cafeteria e comprei o café para o Sr. Noka e para mim, como de praxe. Um grupo de funcionários limpavam as vidraças do lado de fora e rasgavam cartazes que pelo visto haviam sido colados durante a noite por toda a fachada contra a vontade da administração do local. Sim, há vândalos nos Estados Unidos também, como em todo lugar.

Segunda-feira era o dia que todos os clientes deixavam os uniformes, lençóis, toalhas, panos, cortinas e tudo o que fosse de tecido para serem lavados e reutilizados na semana seguinte. Lavar e secar não era o problema, mas passar era terrível. Mesmo utilizando um maquinário específico para lavanderias, o calor e o mesmo movimento deixavam meus braços doloridos e tinha dias que minha lombar ardia. Evitava ficar sentando a todo momento, pois o Sr. Noka parecia ter um sensor que avisava quando eu estava descansando as costas. Era eu sentar para ele ficar andando de um lado para o outro com cara de poucos amigos. Isso quando ele não estava de bom humor e já entrava esbravejando meia dúzia de coisas no idioma dele e que para mim significava "levanta daí e vai trabalhar, viado".

Depois do almoço o tempo passava sempre mais rápido, apesar da preguiça. Talvez fosse pelo fato de Arthur chegar para se juntar a nós na dança do "lava-seca-e-passa". Eu gostava muito de conversar com Arthur. Ele não era um hétero escroto como a maioria da idade dele era quando eu estudava. Arthur tinha a mente aberta e adorava me mostrar os desenhos que fazia de tudo. Ele tinha talento, embora faltasse um pouco de originalidade. Naquele dia durante o almoço fiquei folheando o seu caderno de desenho e me deparei com uma arte que me arrepiou dos pés a cabeça.

— De onde você tirou isso? — Perguntei a ele virando o caderno para que ele visse o desenho em questão.

— Não sei. De um sonho talvez. — Ele tinha a péssima mania de falar de boca cheia.

Era o desenho de um anjo mascarado, sem colorir. Era muito semelhante ao anjo que me seduzia e perambulava pelos meus pensamentos de vez em quando.

— Ainda falta colorir. Atrás do anjo imaginei uma cortina de fogo, sabe? Como se ele estivesse saindo do fogo com as asas em chamas.

Fechei o caderno e respondi:

— Legal. Você leva jeito para desenhar. Já te disse que é talentoso. Deveria arrumar algum estágio em algum lugar que te pagasse para fazer o que gosta.

— E quem ajudaria o meu pai? — Ele perguntou bebendo um copo de suco.

— Seu pai pode muito bem deixar de ser tão mesquinho e pagar alguém para fazer o que você faz.

— Não é uma má ideia, mas acho difícil disso acontecer de uma forma natural, sem brigas e discussões.

— Ele é o seu pai. Pode até ser que no começo haja um estranhamento, mas tenho certeza que quando ele perceber que outras pessoas estão valorizando o seu trabalho, ele também vai ficar muito feliz.

— E se eu quebrar a cara?

— "Se", não e sim "quando". Sempre que você quebrar a cara, vai aprender alguma lição e vai recomeçar novamente, melhor do que antes, com mais experiência. É igual videogame. Já viu alguém zerar um jogo novo, logo de primeira, sem perder?

— Já. — Ele respondeu categoricamente. — No Japão tem um cara...

— Bom, você entendeu a ideia. — Me adiantei, me levantando e entregando o caderno para ele.

Assim que eu saí da "área restrita para funcionários" e me dirigi ao balcão que fica ao lado da porta para começar a fazer os lançamentos das ordens de serviço no computador, me deparei com Sr. Noka trocando apertos de mãos com uma pessoa familiar.

— Aqui está ele. — Sr. Noka disse olhando para mim com um sorriso de orelha a orelha.

— Joshua? — Perguntei para confirmar se quem eu estava vendo estava de fato ali ou se aquilo era mais uma de minhas fantasias recorrentes.

— Olá Fábio. — Ele disse me cumprimentando com um aperto de mão.

— O Sr. Fournier acaba de fechar contrato conosco. Graças a você. — Sr. Noka disse.

— A mim? — Perguntei sem entender nada.

— Eu disse ao Sr. Noka que o restaurante onde trabalho estava de fato precisando de um serviço como esses que vocês oferecem e que você indicou a lavanderia como a melhor de Manhattan. — Joshua justificou dando uma piscadinha.

— Sim. Melhores! Melhores do cidade! Serviço com muita qualidade. Sim! — Sr. Noka anuiu esfregando as mãos, mostrando sua coleção de dentes amarelos e tortos e arqueando o corpo para frente como um gesto de agradecimento. — Pode ir almoçar com sua amigo, Fábio.

— Mas eu acabei de...

— E me traga café no volta! — Sr. Noka completou e se afastou de nós.

— Pelo menos você ganhou um tempinho extra de almoço. Topa tomarmos um café? — Joshua convidou se aproximando do balcão.

— É...

Eu estava tão atordoado com a presença de Joshua na lavanderia e a novidade de tê-lo como um cliente recorrente que eu não conseguia nem falar. Só consegui sair daquele estado de surpresa para um de súbito espanto quando ouvi o sino da porta de entrada tocar e ver Pablo adentrando a lavanderia.

4.

Eu tinha perdoado Joshua pelo o que ele fez comigo, mas assim como Daniel, eu não tinha esquecido. Apesar de todo o tempo passado quando faço uma análise desse período em que as nossas vidas se cruzaram em NY era impossível não lembrar da viagem que fizemos para Fish Creek Pond Campground. Após anos, revê-lo no FAG Bar foi uma surpresa e eu não diria cem por cento agradável porque houve uma mancha na nossa história. Embora estivesse tudo resolvido e muito bem explicado, ainda assim aquele final de semana que decidimos acampar juntos e sozinhos vinha na minha mente como uma lembrança abominável.

Assim que Daniel me disse que não conseguia esquecer tudo o que aconteceu entre a gente e vendo que eu já estava melhor após o susto da confusão que havia acontecido, me perguntou se podíamos voltar para dentro do bar. Eu apenas o segui sem que houvesse necessidade de resposta. Foi até melhor ele fazer isso para que o clima entre a gente não ficasse ainda mais desagradável. Tínhamos um dia inteiro ainda pela frente e toda a viagem até o Brasil assim que as autoridades liberassem os voos por conta da nevasca. A última coisa que eu queria era criar um climão e ter que seguir viagem brigado com o Daniel, ainda mais depois de todos esses anos sem vê-lo.

Não era fácil entrar em um ambiente como o FAG Bar, escuro e fechado. Depois de muita terapia e coquetéis de remédios, mais uma vez eu me via forçando uma situação para que eu pudesse vencer meus próprios medos. Eu tentava ver as coisas por um prisma de positividade, mas ainda era difícil esquecer de tudo o que aconteceu naquele fatídico Memorial Day. Assim que eu entrei no bar uma microfonia fez com que as caixas de som fizessem aquele barulho característico insuportável. Coloquei minhas mãos no ouvido e mesmo fazendo força para abafar o som, consegui ouvir claramente a voz de Pablo dizendo apenas

"Corra!"

Assim que o som da microfonia passou, um funcionário do bar comunicou os clientes que dentro de alguns minutos estariam encerrando o karaokê. Se alguém ainda quisesse passar vergonha, quer dizer, performar teria que se apressar para selecionar a música logo.

Sentei a mesa e Dani sem tirar os olhos do seu celular me perguntou:

— E aí, melhorou?

— Sim, sim. Acho que sim. — Respondi sem graça e com o meu sorriso "pois é" estampado no rosto.

Odiava quando alguém me fazia esse tipo de pergunta. Parecia que toda a vergonha de sair carregado sob os olhares julgadores de quem estava ao meu redor voltava a tona. Era a mesma sensação de levar um tropeção e cair de joelhos no meio de um ponto de ônibus cheio de gente. Você levanta tentando manter a dignidade presa na cara e quando lhe perguntam se você está bem, responde objetivamente que sim. Mesmo sentindo uma dor excruciante como se alguém lhe tivesse amputado algum órgão do corpo.

— Vou ao banheiro e já volto. — Daniel avisou sem se sentar.

— Ok. — Dani disse desligando o celular e prendendo seu olhar ao meu.

— Fábio, pare.

— Oi?!

— Conheço esse olhar. Apenas pare.

— Do que você está falando, Dani?

— Do seu olhar para a bunda do Daniel. Por que demoraram tanto para voltar lá de fora?

— Estávamos conversando.

— Sobre o quê?

— Se quisesse mesmo saber, teria ido junto com a gente ao invés de ter ficado aqui guardando a mesa. Desde quando alguém precisa guardar mesa fora do Brasil?

— Conheço você. — Ela disse dando um tapa na mesa me causando um susto. Com o dedo indicador voltado na minha direção continuou: — Conheço esse olhar. Apenas pare. Falta pouco para sairmos daqui. — Ela fechou os olhos, ergueu as sobrancelhas e disse: — Tudo o que eu quero é entrar no avião dopar você e o Daniel com Dramin para que possamos fazer uma viagem tranquila até o Brasil. — Abriu os olhos e desenhou na mesa com a ponta dos dedos — Chegando lá, cada um vai para a sua casa e começaremos uma nova fase de nossas vidas. — Bateu uma palma e abriu um sorriso irônico finalizando: — Continuaremos bons amigos e um dia vamos rir dessa vinda a esse bar de gay caipira canadense.

— Preciso ir ao banheiro. — Disse me levantando.

Eu que não ia ficar escutando mais essa ladainha agora.

— Fábio, não! Fábio! — Ouvi ela dizendo entre os dentes, enfurecida.

Ignorei e fui até o banheiro onde Daniel estava. Respirei fundo diante da porta e assim que entrei encontrei Daniel apoiado com as mãos sobre a pia e com a cabeça baixa. Ouvi o barulho de descarga e um rapaz ia se dirigir a pia para lavar as mãos mas olhou para mim e para o Daniel, apertou os lábios, deu dois tapinhas no meu ombro e saiu.

— Dan?

— E ae, Mané? Já pediu a nossa saidera? — Ele disfarçou e começou a lavar as mãos. Desconfiei que ele sequer havia usado o mictório ou o vaso sanitário.

— Desculpe se eu...

— Aaah Mané, corta essa, cara. Você veio até aqui pra me falar isso? — Ele disse pegando papel e secando as mãos.

— Eu não queria que ficasse um clima chato entre a gente. Eu tenho o maior respeito por você.

Ele sorriu com escárnio meneando a cabeça e jogou o papel no lixo.

— Eu já até tinha esquecido. Está tudo certo entre a gente. Firmeza? — Ele falou fazendo joia com as duas mãos, mas com o semblante sério.

— Firmeza.

Ele abriu um sorriso tímido, mas não conseguiu me encarar.. Desviou de mim e saiu do banheiro. Eu respirei fundo e fechei os olhos. Fui até a pia onde ele estava, coloquei as mãos onde as dele haviam estado e me olhei no espelho. Talvez Dani tivesse razão. Talvez eu devesse deixar o passado no passado. Talvez eu não devesse começar uma nova fase no Brasil desenterrando baús de casos encerrados.

Não sei dizer ao certo quanto tempo fiquei olhando dentro dos meus olhos em busca de respostas para as novas indagações que minha mente estava fazendo. Abri a torneira, juntei as mãos em concha, arqueei o corpo para frente e molhei meu rosto. Senti que ele estava quente. Não consigo precisar se era de vergonha ou nervosismo. Quando ergui o cabeça e olhei no espelho, meu reflexo estava lá. Porém o que eu via através do espelho não era mais o banheiro do FAG bar. Eu via um quarto e duas camas de solteiro. Havia alguém em uma das camas. Era um cômodo com as cores das paredes gastas por causa do tempo. A minha reação, obviamente foi virar meu corpo para trás. E lá estava eu dentro daquele quarto, daquele ambiente familiar. Dei mais uma volta em busca da pia e do espelho do FAG bar, mas eles haviam sumido. Eu não estava mais no Canadá.

Eu estava no quarto pequeno que dividia com o Japa na época que eu morava na goma com os caras da faculdade. Olhei para a cama e me vi deitado com uma garrafa de Smirnoff Ice na mão. Era surreal ver a si mesmo de uma outra perspectiva. Na televisão antiga, de quatorze polegadas o video clipe de It must have been love do Roxette competia com os chuviscos da Tv para ver quem aparecia mais. O som da tv estava abafado pelo véu do tempo, era como se eu estivesse tapando meus ouvidos para não ouvir o som, mas na verdade era a película invisível que me separava do quando aquilo de fato aconteceu. Logo, alguém entrou no quarto e obviamente não me viu em pé, eu era um fantasma viajante do tempo. Eu não podia ser visto ou ouvido, conseguia apenas reviver cenas do passado como se elas estivessem acontecendo em um labirinto de lembranças construído pela minha memória.

Era o Daniel, o meu outro eu limpou o rosto rapidamente com as costas da mão e sentou na cama. Nesse exato momento o som de uma voz surgiu alta e cristalina como se fosse a inserção de uma trilha sonora se sobrepondo a cena que eu ali era obrigado a assistir.

You're everything I thought you never were

(Você é tudo o que eu achava que nunca seria)

And nothing like I thought you could've been

(E nada como eu pensei que poderia ter sido)

But still you live inside of me

(Mas você ainda vive dentro de mim)

So tell me how is that

(Então me diga como é que)

— Não foi com os caras não, Dan? – O Fábio daquele quando perguntou engrossando a voz.

— E deixar meu amigo aqui sozinho na fossa? Que porra de amizade é essa?

Eu me aproximei da cama a tempo de ver o meu sósia dando espaço na cama e o Daniel sentou.

— Valeu Dan, valeu mesmo. — Eu disse batendo minha garrafinha de smirnoff ice na dele.

Ele colocou a garrafa no chão e disse:

— Dê aqui um abraço no seu brother, dá.

Daniel deitou e colocou seu braço sobre mim. Achei estranho, assim como o meu eu da época também achou. Não éramos tão íntimos nessa época, embora morássemos juntos. E então eu percebi que ali, Daniel já nutria algum sentimento por mim que ultrapassava as barreiras da amizade entre dois cuecas. O meu outro eu, por estar levemente bêbado, deixou que ele deitasse.

Olhando um no olho do outro, Daniel falou:

— Não sofra por alguém que não te quer. As vezes tem alguém que te curte pra caralho e você não enxerga.

Passei as mãos pelos cabelos, inconformado. Como eu não percebi antes? Ali estávamos eu e Daniel, deitados feito dois namorados em uma cama de solteiro. Bem antes de ele me dizer que era gay. Agora eu podia ver que além de todo o sentimento de amizade e todo o cuidado que Daniel sempre teve comigo nunca foi porque éramos brothers. Sempre houve algo a mais. Um sentimento de arrependimento tomou conta de mim. Eu não suportava olhar aquilo e não poder mudar o curso dos acontecimentos.

A voz ao fundo continuava a cantoria:

You're the only one I wish I could forget

(Você é o único que eu desejo poder esquecer)

The only one I'd love to not forgive

(O único que eu adoraria não perdoar)

And though you break my heart

(E apesar de você quebrar meu coração)

You're the only one

(Você é o único)

Saí do quarto sentindo um aperto no peito e ao chegar no corredor me deparei com outra versão do Daniel saindo do banheiro com o rosto todo arregaçado. Ele estava com uma toalha jogada sobre o ombro. Passou por mim sem me ver, obviamente, e entrou no seu quarto, que na época dividia com o Alemão e que ficava de frente para o meu. Acendeu a luz, jogou a toalha sobre a porta do guarda-roupas faltando portas e gavetas e a arrumou para que pudesse estar seca no dia seguinte. Jamais iria dar a volta na casa para estender a toalha na área de serviço da casa. Ele falava que era por preguiça, eu desconfiava que ele tinha um certo medo de ir até lá no escuro. Daniel apagou a luz e fechou a porta e foi quase que instantaneamente que a presença de alguém vindo na minha direção me assustou.

Novamente eu estava diante de mim mesmo, uma versão minha mais jovem, inexperiente e preconceituosa. Se não fosse a semelhança com alguém que vejo todas as vezes que me olho no espelho eu diria que quase não reconheceria aquela pessoa. Ele passou através de mim vestindo apenas uma cueca e com os cabelos molhados. Ele abriu a porta do quarto devagar e a fechou atrás de si. Me aproximei da porta novamente e eu a ouvi sendo trancada.

— Vai pro teu quarto vai, cara. — Ouvi a voz de Daniel abafada.

— Deixa eu ficar aqui essa noite? — A minha versão jovem perguntou..

Encostei minha testa na porta fechada e fiquei olhando a luminosidade do quarto escapando pela fresta sob a porta. Pensando no quanto tempo ignorei os sinais que Daniel havia me dado de que estava afim de mim. Tudo isso porque eu estava confuso com relação a minha própria sexualidade e em estado deplorável de dependência afetiva por uma pessoa que nunca fez questão de me colocar como prioridade em sua vida.

— Apaga a luz aí então. O Alemão vai vir só amanhã, pode usar a cama dele.

Mas eu me lembro que eu não deitei na cama do Alemão como Daniel ofereceu. Naquela noite, eu e ele dormimos agarrados e confusos com o que estava acontecendo com a gente e entre a gente. Ainda com a cabeça encostada na porta, passei a mão pela madeira e esmurrei a porta querendo poder alterar o curso dos acontecimentos.

— Posso ficar aqui? — Ouvi minha voz dentro do quarto perguntar baixinho.

— Se cobre ae, Mané.

And though there are times when I hate you

(E, embora existam momentos em que eu odeio você)

'Cause I can't erase

(Porque eu não posso apagar)

The times that you hurt me and put tears on my face

(Os momentos que você me machucou e pôs lágrimas no meu rosto)

O que foi que eu fiz? Perguntei a mim mesmo passando novamente as duas mãos pelos meus cabelos. Fiquei no meio do corredor. Dentro de cada quarto havia lembranças e demonstrações irrefutáveis do quanto Daniel tentou demonstrar o seu sentimento por mim. Virei de costas para o corredor que dava para a porta de entrada da goma e encarei a terceira e última porta do final do corredor, a que era do quarto do Negão. Olhei para a maçaneta e fechei os olhos, me senti na obrigação de ver qual reminiscência torturante a porta número três tinha para me revelar.

And even now when I hate you

(E mesmo agora, quando eu odeio você)

It pains me to say

(Dói-me a dizer)

I know I'll be there at the end of the day

(Eu sei que eu estarei lá no final do dia)

Entrei no cômodo e me deparei novamente com o casal que nunca chegou a existir. Daniel estava na cama de casal do Negão como o meu outro eu. Estávamos deitados juntos. Me aproximei da cama sabendo que eles não conseguiriam me ver e vi o Fábio fazendo carinho no rosto de Daniel e ele com os olhos fechados perguntando:

— Você está aqui mesmo? Eu não estou sonhando?

— Eu estou bem aqui. — meu eu disse sorrindo. Beijou seus lábios levemente e passeou com a mão pelas intimidades do amigo.

Ver os dois entregues aos prazeres carnais não me excitou. Pelo contrário, me fez questionar se eu tomaria as mesmas atitudes se pudesse voltar no tempo. Embora, as experiências que cada um teve fossem necessárias para chegássemos naquele ponto do tempo em que estávamos, era inegável a vontade de desvendar os "e se" que o destino guardava dentro de sua arca de possibilidades.

— To com medo. — Daniel disse sem graça.

— Não vai doer. — Eu disse baixinho — Não vou te machucar não.

I don't wanna be without you, babe

(Eu não quero ficar sem você, baby)

I don't want a broken heart

(Eu não quero um coração partido)

Don't wanna take a breath without you, babe

(Não quero respirar sem você, baby)

I don't wanna play that part

(Eu não quero ter esse papel)

Daniel abriu um sorriso ao mesmo tempo que sentiu a dor do prazer da intimidade e eu a dor do arrependimento. Preso dentro dele, o meu outro eu curvou-se sobre o corpo do amigo e ambos ouvimos Daniel dizer por livre e espontânea vontade:

— Eu te amo, cara. — e em seguida começaram a se beijar.

Por que dei tanta abertura se eu não queria nada sério? Por que transformei a única pessoa que sempre dividiu sua intimidade e seus sentimentos em uma válvula de escape para saciar as minhas necessidades carnais? Será mesmo que eu não nutria absolutamente nenhum sentimento por Daniel? Ou até sentia e não queria admitir? Será que a insistência em Paulo foi porque ele estava sempre distante e consequentemente retardava a minha auto aceitação?

Saí do quarto atordoado. Fechei a porta e caminhei de costas tentando de alguma forma encaixar todas as peças em seus devidos lugares. Fui caminhando de costas até passar pela porta do banheiro. Lá de dentro, ouvi vozes.

Não era possível.

— Vamos dar um banho na criança mimada, né? — Daniel disse ensaboando uma outra versão minha debaixo do chuveiro. Pelo visto eu estava bêbado. O meu outro eu virou de costas e apoiou as mãos na parede enquanto Daniel ensaboava seu corpo todo com bastante "dedicação". De repente um ficou de frente para o outro, cara a cara, quase boca com boca. Daniel o encarava. Naquele momento notei como Daniel era parecido com Justin Timberlake quando era mais novo.

— Continua ae, truta. — o Fábio daquele quando mandou.

A música ao fundo continuava:

I know that I love you but let me just say

(Eu sei que eu amo você, mas deixe-me dizer)

I don't wanna love you in no kind of way, no, no

(Eu não quero amar você de jeito nenhum, não, não)

I don't want a broken heart

(Eu não quero um coração partido)

And I don't wanna play the broken-hearted boy

(E eu não quero ser o garoto de coração partido)

No, no, no broken-hearted boy

(Não, não, não um garoto de coração partido)

I'm no broken-hearted boy

(Eu não sou um garoto com o coração partido)

Daniel sem tirar os olhos dos olhos do meu sósia foi descendo, agachando. Desviei o olhar e fui para a sala inconformado com a quantidade de coisas que eu e o Daniel já havíamos vivido juntos. Parecia que nada mais estava esquecido nas brumas do tempo. Era como se tudo estivesse vindo a tona, acontecendo naquele momento, tudo ao mesmo tempo. Ao chegar na sala, a tv estava bem baixinha e o Daniel dormindo no sofá. Ali estava eu novamente. Olhando para o Daniel, medindo seu corpo, sem saber se era por desejo ou uma necessidade interna que me impelia inconscientemente em sua direção. Daniel estava deitado sem camiseta, de shorts azul e pés descalços, estava de lado, braços cruzados em x, com as mãos presas nas axilas. Vi meu sósia abrir o zíper da calça jeans bem devagar pra não fazer barulho, desabotoou a calça, estava usando uma cueca bem apertada, branca. Com a mão esquerda baixou a cueca e com a direita puxou o pau pra fora. Ele começou a bater uma bem ali, sob a luz azulada da tv e olhando pro seu camarada deitado no sofá. De repente, se levantou bem devagar para não acordá-lo e parou na frente do amigo. Eu não acreditava estar vendo aquilo e pior, saber que aquilo tinha acontecido de verdade. Bem devagar o meu eu tarado foi abaixando, foi chegando com a pica bem perto do nariz do Daniel.

— Eu não sou gay, Daniel. — Ouvi minha voz dizer de outro ponto da casa.

Voltei meu corpo em direção a cozinha a tempo de ver Daniel me encarando e dizendo:

— Você é!

O meu outro eu foi pra cima dele, segurou-o pela gola e ia acertar ele em cheio quando Daniel gritou:

— Bate! Bate com bastante força se esse é o teu jeito de negar o que está estampado na tua cara.

Será que sempre esteve estampado na minha cara? Será que ele soube que eu era gay desde a primeira vez que me viu? Será que aquela história de uma borboleta reconhecer a outra era real mesmo quando ainda estão no estágio larval?

Ambos estavam com o nariz quase encostado um no outro, com um olhar firme. Não pareciam duas pessoas que se amavam, mas havia uma tensão sexual que os deixavam parecer que estavam apaixonados, não no mesmo nível de reciprocidade, mas havia algo ali. Eram duas forças ligadas em potências diferentes.

— Eu não sou gay!

Daniel empurrou meu sósia com força e berrou:

— VOCÊ É!

Fiquei com medo de me ver acertando Daniel para fazê-lo calar a boca, mas ao invés disso o meu sósia fez algo que talvez o tenha ferido muito mais. Ele puxou a toalha da mesa que havia sido preparada por Daniel com muita dedicação. Em segundos só restou cacos e sujeira pelo chão. Fechei os olhos e encostei na parede do lado de fora da cozinha. Ainda ouvi o meu eu daquele quando dizer:

— Eu não sou.

— Você é sim, seu burro. — Falei em voz alta mesmo sabendo que não seria ouvido.

Something that I feel I need to say

(Algo que eu sinto que preciso dizer)

Up'til now I've always been afraid

(Até hoje eu sempre tive medo)

That you would never come around

(Que você nunca estivesse por perto)

And still I wanna put this out

(E eu ainda quero colocar isso para fora)

Eu não suportei ficar dentro daquela casa. Cada cômodo me lembrava o Daniel, eu não tinha para onde fugir. Eu não sabia o que meu cérebro estava querendo me fazendo reviver tudo aquilo novamente ou tudo aquilo não tinha nada haver com meu cérebro e sim com o meu coração, me fazendo enxergar algo. Porém, eu fiquei afim do Daniel e nós já tínhamos conversado sobre isso. Não adiantava uma casa de lembranças se o presente não nos pertencia. Nossas vidas tomaram rumos diferentes e tudo o que tínhamos para viver ficou preso dentro daquela casa velha e mofada do passado. Era lá que isso tudo tinha que ficar. Para provar isso a mim mesmo, abri a porta da sala e saí para a varanda. Senti um ar fresco. Estava chovendo e ao meu lado ouvi alguém choramingando. Olhei para o lado e vi Daniel sentado, sozinho, indefeso e chorando de cabeça baixa segurando um copo do que devia ser Caipiroska. Ele estava com o rosto vermelho de tanto chorar.

— Vamos entrar, Dan? — O meu sósia falou surgindo porta afora..

Eles se olharam, mas Daniel não falou nada. O meu eu foi até perto dele e eu o segui. Ambos nos ajoelhamos a sua frente. Eu fiquei com o meu coração partido. Só depois de passar por tudo o que eu passei, soube de verdade o que ele estava sentindo naquele momento.

— O que foi cara? Por que você está assim? — Meu eu perguntou.

— Ele te ama, seu burro de merda. — Respondi para o meu sósia, mesmo sabendo que ele não me ouvia.

— Me abraça, Mané? — Daniel pediu chorando — Me dá um abraço, cara.

Ambos se abraçaram. Daniel soluçava e molhava a camiseta velha que o meu outro eu usava como pijama. Meus olhos na hora marejaram.

— Eu sou gay, Fábio. — Daniel disse e começou a soluçar — Eu não queria, mas eu sou, mano.

— Fale que você também é. — Falei pro meu sósia tentando inutilmente intervir em um passado já definido.

Ambos estavam emocionados. Eu pude ver em mim mesmo que a dor da certeza era mútua. Eu só não tinha maturidade para admitir isso para mim mesmo naquele momento.

— To me sentindo tão sozinho, cara. — Daniel disse.

— Eu to aqui, Dan. — o sósia disse — Relaxa, cara.

You say you got the most respect for me

(Você diz que tem o maior respeito por mim)

But sometimes I feel you not deserve me

(Mas às vezes eu sinto que você não me merece)

And still you in my heart

(E você ainda está no meu coração)

But you're the only one

(Mas você é o único)

Ainda abraçados, Daniel contou:

— A Tábata terminou comigo hoje, cara.

— É por isso que você está assim? — O sósia perguntou.

— Porque você é um burro, cego! — Eu intervi.

— Também. — Daniel disse.

— Vamos lá pra dentro, vem?

Ambos entraram em casa de mãos dadas, como se fossem duas crianças. Enquanto isso, segurei minha cabeça firme e perguntei berrando como se alguém pudesse me ouvir e me tirar daquela realidade:

— Por que está fazendo isso comigo? Por que está me fazendo passar por tudo isso de novo?

— Eu te explico lá dentro é sério, vamos entrar, Mané.

E nesse momento até parecia que alguém estava respondendo a minha pergunta. Porém, ao abrir os olhos me deparei com outro sósia e outro Daniel, na chuva, na calçada de casa.

— Mané é o caralho! — O meu outro eu disse dando um tapão no rosto do Daniel.

— Pára Fabio, pra quê isso, véi?

Meu sósia foi pra cima dele e lhe acertou um chute. Eu travei na varanda e não conseguia sequer me mover. Apenas reviver aquele momento com um nó na garganta e pensando como somos infelizes quando não nos conhecemos, quando negamos o que somos verdadeiramente.

— Pára, VIADO! — Daniel gritou.

Foi nesse momento que eu vi o sósia acertar um murro em cheia na boca do Daniel.

— Viado é o caralho! Viado é o caralho! Você é que é viado aqui! Você! Cuzão, filho da puta.

Na hora em que eu acertei o murro , Daniel caiu na calçada molhada e na mesma hora levantou a mão desorientado, totalmente vulnerável. Com o corpo curvado e com uma mão erguida na frente do rosto para se proteger, o sangue escorria pelo canto da boca. Acho que ele jamais pensou em revidar.

— Pra que você foi falar merda pra ela! — O sósia berrou.

— Não falei de você, cara. — Ele disse se afastando, se arrastando no chão molhado feito um bicho indefeso, com medo e com a mão erguida pra se proteger — Falei de mim.

— Mentiroso do caralho! — O sósia gritou.

— Eu não to mentindo! — Daniel gritou.

— Mentiroso!

— Não sou!

— E o que você foi falar pra ela então, seu merda? — Por fim o meu eu perguntou aos berros.

— Ele foi falar que te ama, seu burro. — Eu falei chorando, inconformado com a cena.

— Fui falar que eu te amo, caralho! — Daniel berrou. Tremendo, abaixou a mão revelando seu rosto. A boca ensanguentada, todo encharcado, olhou para o meu sósia e disse com cara de choro:

— Te amo, porra!

And yes, there are times when I hate you

(E sim, há momentos em que eu odeio você)

But I don't complain

(Mas eu não reclamo)

'Cause I've been afraid that you would walk away

(Porque eu tenho medo de que você vá embora)

Daniel abriu o portão, subiu as escadas. Corri até ele como se fosse conseguir lhe dar um abraço, mas ele seguiu em frente sem me ver e entrou em casa. A porta fechou com um baque, mas eu não consegui ficar ali fora junto com aquela versão abominável de mim mesmo. Abri a porta e ao invés de me deparar com a goma, o interior da casa era outro. Eu estava no apartamento que eu morei com a minha mãe em Santo André. A sala estava toda decorada com fotos minhas e do Roger. Havia docinhos e bexigas. Vi novamente mais uma versão minha e do Daniel. Dessa vez eu estava encostado na parede. Daniel se aproximou, virou a aba do seu boné para trás e envolveu seus braços ao redor do pescoço daquele Fábio. Juntou seu rosto ao dele.

Oh, but now I don't hate you

(Oh, mas agora eu não odeio você)

I'm happy to say

(Eu estou feliz em dizer)

That I will be there at the end of the day

(Que eu estarei lá no final do dia)

Daniel segurou o rosto do meu outro eu com as duas mãos.

— O que foi que eu fiz, Daniel?

— Você tem a resposta para todas as suas perguntas aqui dentro de você. — Daniel falou tocando o centro do peito do sósia. — Agora tudo está muito nebuloso, mas aos poucos melhora. Você vai ver. Acho que você precisa ficar sozinho para pensar na sua vida, nas suas escolhas, nas suas atitudes. Se precisar de mim, me chame.

O que eu fiz esse tempo todo da minha vida? Perguntei a mim mesmo em voz alta. Nesse momento a porta do apartamento se abriu e mais uma versão do casal de amigos surgiu para desembaralhar meus pensamentos. O Fábio daquele quando segurava o Daniel pela cintura e pelo braço que estava ao redor do pescoço.

— Você vai depois que cochilar um pouco. Você não está em condições de fazer nada. E nem eu. — O sósia disse tentando chegar no quarto. Eu os segui.

Aquele Fábio colocou o Daniel, bêbado, sentado na cama feito um boneco. Tirou a sua camiseta e ele caiu com o corpo de lado já cochilando. Ele tirou os tênis e as meias dele. Segurou seu pé, fechou os olhos e cheirou entre seus dedos. Desafivelou seu cinto, conseguiu tirar suas calças e deixou o amigo só de cueca, completamente desmaiado. Meu sósia tirou a roupa e deitou de conchinha junto com ele.

— Lembre-se de trancar a porta da próxima vez. — Falei para aquele Fábio.

Assim que abri a porta para sair do quarto, um novo cenário se descortinou a minha frente. Ultrapassei o batente e entrei dentro de um quarto predominantemente branco. Evidentemente era um quarto de hospital por conta da cama em que o meu sósia estava deitado. Em pé, ao seu lado, estava Daniel.

— Acho melhor deixar você descansar. Eu não ia conseguir ir embora mais um dia sem ver você, por isso subi. Eu falo para o pessoal que você está bem, ok?

Ele se aproximou, se inclinou para dar um abraço no Fábio debilitado. Porém, o meu sósia se projetou para cima, apoiado nos cotovelos e seus lábios por um breve momento juntaram-se aos de Daniel.

— Você é muito, muito importante para mim. — o sósia disse com verdade nos olhos. — Obrigado por ter vindo.

— Se cuida, Mané. — Daniel disse antes de apertar minha mão e sair do quarto com um sorriso bobo no rosto.

I don't wanna be without you, baby

(Eu não quero ficar sem você, baby)

I don't want a broken heart

(Eu não quero um coração partido)

Don't wanna take a breath without you, babe

(Não quero respirar sem você, baby)

I don't wanna play that part

(Eu não quero ter esse papel)

Sempre ele, desde sempre. Como pode? Quando estamos inseridos em uma situação dificilmente conseguimos enxergar a conjuntura dos acontecimentos da mesma forma que os outros de fora observam. Estamos tão focados nos micro problemas do dia a dia, tentando superar cada obstáculo que esquecemos de olhar ao redor para obter uma visão macro dos eventos.

Daniel sempre esteve ao meu lado, sendo fiel, parceiro, gentil e o melhor, disponível. Não confunda disponível com oferecido. Digo disponível por se fazer presente sempre que possível. Quantos amigos só estão ao redor em festas e churrascos? Quantos deles sequer se lembram do seu aniversário e te deixam mensagens em redes sociais? Quantos desses faz questão de aparecer na sua casa mesmo que tarde da noite depois de um dia de trabalho só para lhe dar um abraço? Daniel era um desses e eu não percebia. Obviamente um compromisso de amizade muito forte sempre houve entre a gente, não nego que isso pode ter se intensificado consideravelmente por conta das intimidades que tivemos, mas não foi passageiro. Não foi algo esporádico com o propósito de se fazer presente somente para saciar necessidades carnais. Ele sempre esteve ali ao meu lado desde para arrumar uma vaga para mim na goma até para saber como eu estava quando fui parar no hospital.

I know that I love you but let me just say

(Eu sei que eu amo você, mas deixe-me dizer)

I don't wanna love you in no kind of way, no, no

(Eu não quero amar você de jeito nenhum, não, não)

O tempo transforma os sentimentos. O tempo tira da frente dos nossos olhos o binóculo que usamos para focar em coisas específicas do cotidiano como, trabalho, estudos, saúde e desejos de consumo e em átimo lhe permite olhar ao redor e vislumbrar as coisas em sua magnitude, sem lentes ou filtros, sem vontades ou julgamentos. E só então nos damos conta das batalhas que travamos, dos rompantes que tivemos, do suor e das lágrimas que pavimentaram o nosso caminho e quanta bagagem desnecessária carregamos sem haver um por quê. Nesse instante de evidência percebemos o quão prejudicial o nosso ego, inveja, orgulho e tantos outros sentimentos são.

Eu e o Daniel tínhamos um refúgio dentro de nós, uma casa de lembranças boas e ruins, mas que mesmo assim ainda abrigava todos os sentimentos que dois seres humanos podem sentir um pelo outro. Construímos um alicerce forte de amizade e comprometimento que carecia de reciprocidade (principalmente de minha parte), mas que sobreviveu as mais intensas adversidades. Razão e emoção, essa mistura fomenta as nossas atitudes e está tão entrelaçada nas relações humanas que necessita da dosagem certa para que algo se torne concreto e segure as paredes de um relacionamento. Saber dosar quando usar mais razão do que emoção ou vice versa sempre foi um desafio muito complicado para mim. E quando eu achei que o elo que aproximava Daniel e eu era o fato de sermos dois gays compartilhando o mesmo espaço, naquele momento a vida me colocou em suspensão e me fez ver quantos "Danieis" passaram pela minha vida, quantas versões daquele amigo e colega de quarto se fizeram presentes e tentaram me fazer enxergar que já tínhamos um vínculo que precedia o fato de sabermos sobre a sexualidade um do outro, e mesmo depois de todos os momentos e parceiros que tivemos ainda estávamos lado a lado na vida um do outro.

Olhei para a minha versão daquele quando deitado naquele quarto de hospital e tentei analisar os caminhos tortuosos que me levaram até esse labirinto de pensamentos que queria me fazer enxergar alguma coisa.

Passos apressados e um falatório invadiram o quarto mesmo com a porta fechada. Pela janela, através das venezianas vi um corre-corre e decidi saber do que se tratava. Abri a porta do quarto e ouvi um dos enfermeiros dizendo:

— Ele está tendo uma parada cardíaca.

A frente dele havia uma maca e sobre ela uma pessoa coberta com um lençol branco com várias manchas de sangue tentava voltar a vida através das mãos de cinco enfermeiros que haviam ao redor, cada um segurando um equipamento, cada um fazendo alguma coisa. Olhei para o lado e outra maca cercada de enfermeiros vestidos de branco cuidavam de um outro paciente. A única coisa colorida naquele ambiente era a cruz vermelha do uniforme dos enfermeiros e as manchas rubras estampadas nos lençóis da segunda maca. Assim que a primeira equipe entrou no elevador, metade do falatório cessou. A segunda equipe se posicionou em frente a porta do segundo elevador que estava a caminho e nesse momento eu pude ver o rosto desfigurado de uma pessoa. Era impossível distinguir quem era por ponta do sangue pisado, dos inchaços e da quantidade de enfermeiros que cercavam a maca. Mas em um dado momento eu consegui olhar no único olho aberto da pessoa, o outro era uma massa roxa, disforme em forma de hematoma. Ele conseguia me ver também. Com dificuldade ouvi ele dizer com uma voz rouca:

— Fabio.

E nesse momento a porta do elevador abriu e giraram a maca para que ela entrasse. Senti pavor ao olhar as feridas vertendo sangue e no monstro que a pessoa se tornou por conta dos ferimentos. Ele me lançou um olhar de súplica e eu disse:

— Vai ficar tudo bem.

I don't want a broken heart

(Eu não quero um coração partido)

And I don't wanna play the broken-hearted boy

(E eu não quero ser o garoto de coração partido)

No, no, no broken-hearted boy

(Não, não, não um garoto de coração partido)

Olhei para os enfermeiros em busca de apoio, mas eles sequer me olharam. Todos entraram no elevador que havia chegado no andar e mesmo sem eu saber a identidade da pessoa pude sentir a dor que ela sentia. Quem é você? Como sabe meu nome? E antes que a porta fechasse, pude ver uma parte do corpo daquele homem que não estava coberta pelo lençol. Uma perna estava a mostra e em seu pé havia uma tatuagem. Mas meu cérebro não se ateve nela e nem tentou descobrir a quem ela pertencia, pois minha atenção voltou-se para o final do corredor a direita, quando nele surgiu a criatura das asas de fogo.

A música de fundo cessou. Se minha vida fosse um filme, aquele momento seria perfeito para inserir a trilha do Exterminador do Futuro. O anjo que por diversas vezes achei que fosse algum tipo de protetor havia se tornado um arauto do infortúnio. Minha reação foi imediata, fugir. Corri a frente e apertei os botões para chamar um dos três elevadores que haviam a minha frente. A porta do meio levava o enfermo da tatuagem para os andares de cima, então aquela porta estava fora de questão. A primeira porta que abriu foi a que levou a primeira maca. Corri para ela e por um triz não caí em uma desgraça maior. Assim que a porta se abriu pude ver uma linha dividindo o ambiente. A parte de cima da linha era verde e a debaixo vermelha. A princípio meu cérebro não conseguiu distinguir se aquilo era uma pintura abstrata que decorava o fundo do elevador. Parei abruptamente segurando nos batentes da porta do elevador quando percebi que não havia chão, teto, sequer paredes dentro do elevador pelo simples fato de não haver elevador algum. Um vento forte escapava para dentro do corredor e só então percebi que a porta aberta pairava em algum ponto entre um céu nebuloso repleto de nuvens esverdeadas e um oceano de águas vermelhas quilômetros abaixo. Olhei para o lado e o anjo continuava a sua caminhada vagarosa na minha direção. Estava nu, exceto pela túnica que lhe cobria as intimidades, naquela realidade parecia mais alto, suas asas de fogo preenchiam o corredor. Eu já tinha o enfrentado uma vez na minha realidade, ali o dono do jogo era ele. Eu sabia do que ele era capaz. Me arrastei pelo chão, me distanciando daquela porta para o nada e quando ouvi a sineta da terceira porta se abrindo atrás de mim, pus me a correr. Dessa vez era um elevador comum. Pisei com um pé para me certificar que ele estava ali mesmo e só então saltei para dentro do cubículo e apertei o botão incessantemente para que as portas se fechassem mais rápido. Senti o ambiente esquentando conforme o anjo se aproximava. As paredes do elevador começaram a esquentar também e então as portas se fecharam e eu senti o elevador se movimentar. Eu estava com o coração disparado e suando frio. Olhei para trás e o espelho do elevador estava diferente. Era como se houvesse um outro ambiente a minha frente. Coloquei a mão e senti o espelho gelado, olhei para trás a porta do elevador havia sumido, assim como as paredes e os botões seletores. Eu estava de volta ao banheiro do FAG Bar. A música de fundo continuava e agora eu notava uma voz conhecida cantando.

Saí do banheiro a tempo de ver uma pequena aglomeração em frente ao palco. Sobre ele, segurando o pedestal diante do microfone estava Daniel cantando a música que eu ouvi enquanto estava com a minha mente presa naquela outra realidade. De olhos fechados, banhado com as luzes azuis dos refletores, ele cantava com sentimento.

Fui percorrendo o caminho até a frente do palco e vi o Daniel, o meu Daniel, de uma forma diferente. Um dia alguém me disse que não havia a pessoa certa para ninguém, mas havia um alguém que mexe com a gente de um jeito diferente. Faz a gente transbordar de um querer estar perto para poder fazer, para lembrar do que já fez, para desejar fazer mais. E era exatamente isso que eu estava sentindo naquele momento. Talvez o anjo fosse responsável pela minha ida até aquela outra dimensão, talvez ele quisesse com que de alguma forma eu tivesse certeza do que eu estava sentindo, quisesse me fazer ver o caminho que eu e o Daniel já havíamos percorrido e me alertar de algo sobre alguém que ainda estivesse por vir. Entretanto, minha atenção estava tão focada em Daniel que eu acabei me deixando esquecer dos vislumbres que tive há pouco.

Daniel cantava para todos, mas seu olhar buscava alguém na pequena plateia. Um cara qualquer se aproximou esbarrando em mim. Fez um sinal com a mão como se pedisse desculpas. Em seguida apontou Daniel com a cabeça e comentou antes de dar um gole em uma caneca de cerveja que tinha na mão:

— Ele é gostoso, hein?

Fechei o cenho, pigarreei e falei:

— Mais respeito, por favor.

O homem por volta de seus cinquenta anos, visivelmente bêbado, perguntou:

— Ah você o conhece?

— Sim. — Respondi lhe oferecendo um efêmero sorriso "pois é".

— Estão juntos? São namorados?

— Estamos juntos. — Respondi ainda sustentando o sorriso e com a paciência se esvaindo pelo ralo.

O homem pediu desculpas e deu um jeito de sair de perto de mim. O olhar de Daniel se encontrou com o meu e ali tive a certeza de que era eu quem ele estava procurando. Era eu quem ele sempre esteve esperando. Ele cantou:

Now I'm at a place I thought I'd never be

(Agora eu estou em um lugar que eu pensei que nunca estaria)

I'm living in a world that all about you and me

(Eu estou vivendo em um mundo que tudo é sobre você e eu)

Ain't gotta be afraid, my broken heart is free

(Não é preciso ter medo, meu coração partido está livre)

To spread my wings and fly away, away with you

(Para abrir minhas asas e voar para longe, para longe com você)

— Não. Não somos namorados,... — Falei em voz alta comigo mesmo com o olhar preso nos de  Daniel. Abrindo um sorriso esperançoso completei: — ... ainda não.

***

Música que inspirou esse capítulo:

Broken-Hearted Girl - Beyoncé

Lyrics:

Broken-Hearted Girl

You're everything I thought you never were

And nothing like I thought you could've been

But still you live inside of me

So tell me how is that

You're the only one I wish I could forget

The only one I'd love to not forgive

And though you break my heart

You're the only one

And though there are times when I hate you

'Cause I can't erase

The times that you hurt me and put tears on my face

And even now when I hate you

It pains me to say

I know I'll be there at the end of the day

I don't wanna be without you, babe

I don't want a broken heart

Don't wanna take a breath without you, babe

I don't wanna play that part

I know that I love you but let me just say

I don't wanna love you in no kind of way, no, no

I don't want a broken heart

And I don't wanna play the broken-hearted girl

No, no, no broken-hearted girl

I'm no broken-hearted girl

Something that I feel I need to say

Up'til now I've always been afraid

That you would never come around

And still I wanna put this out

You say you got the most respect for me

But sometimes I feel you not deserve me

And still you in my heart

But you're the only one

And yes, there are times when I hate you

But I don't complain

'Cause I've been afraid that you would walk away

Oh, but now I don't hate you

I'm happy to say

That I will be there at the end of the day

I don't wanna be without you, baby

I don't want a broken heart

Don't wanna take a breath without you, babe

I don't wanna play that part

I know that I love you but let me just say

I don't wanna love you in no kind of way, no, no

I don't want a broken heart

And I don't wanna play the broken-hearted girl

No, no, no broken-hearted girl

Now I'm at a place I thought I'd never be

I'm living in a world that all about you and me

Ain't gotta be afraid, my broken heart is free

To spread my wings and fly away, away with you

I don't wanna be without my baby

I don't want a broken heart

Don't wanna take a breath without my babe

I don't wanna play that part

I know that I love you but let me just say

I don't wanna love you in no kind of way, no, no

I don't want a broken heart

I don't wanna play the broken-hearted girl

No, no, no broken-hearted girl

Broken-hearted girl, no, no

No broken-hearted girl

No broken-hearted girl

Tradução:Broken-Hearted Girl

Você é tudo o que eu achava que nunca seria

E nada como eu pensei que poderia ter sido

Mas você ainda vive dentro de mim

Então me diga como é que

Você é o único que eu desejo poder esquecer

O único que eu adoraria não perdoar

E apesar de você quebrar meu coração

Você é o único

E, embora existam momentos em que eu odeio você

Porque eu não posso apagar

Os momentos que você me machucou E pôs lágrimas no meu rosto

E mesmo agora, quando eu odeio você

Dói-me a dizer

Eu sei que eu estarei lá no final do dia

Eu não quero ficar sem você, baby

Eu não quero um coração partido

Não quero respirar sem você, baby

Eu não quero ter esse papel

Eu sei que eu amo você, mas deixe-me dizer

Eu não quero amar você em nenhum tipo de curso, não, não

Eu não quero um coração partido

E eu não quero jogar a garota de coração partido

Não, não, nenhuma garota de coração partido

Eu não sou uma garota com o coração partido

Algo que eu sinto que preciso dizer

Up'til agora eu sempre tive medo

Que você nunca viria ao redor

E eu ainda quero colocar isso para fora

Você diz que tem o maior respeito por mim

Mas às vezes eu sinto que você não me merece

E ainda você no meu coração

Mas você é o único

E sim, há momentos em que eu odeio você

Mas eu não reclamo

Porque eu tive medo de que você vá embora

Oh, mas agora eu não odeio você

Eu estou feliz em dizer

Que eu estarei lá no final do dia

Eu não quero ficar sem você, baby

Eu não quero um coração partido

Não quero respirar sem você, baby

Eu não quero ter esse papel

Eu sei que eu amo você, mas deixe-me dizer

Eu não quero amar você em nenhum tipo de curso, não, não

Eu não quero um coração partido

E eu não quero jogar a garota de coração partido

Não, não, nenhuma garota de coração partido

Agora eu estou em um lugar que eu pensei que nunca seria

Eu estou vivendo em um mundo que tudo sobre você e eu

Não é preciso ter medo, meu coração partido está livre

Para abrir minhas asas e voar para longe, para longe com você

***

HOMOFOBIA É CRIME SIM. DENUNCIE.

Polícia Federal: denuncia.pf.gov.br

Direito Homoafetivo: www.direitohomoafetivo.com.br

ABGLT: www.abglt.org.br

CVV | Centro de Valorização da vida: https://www.cvv.org.br/

DISQUE 100

***

Obrigado pela leitura! Deixe comentários. Eles ajudam a contar a história.

Continue Reading

You'll Also Like

2.2M 182K 110
Os irmãos Lambertt estão a procura de uma mulher que possa suprir o fetiche em comum entre eles. Anna esta no lugar errado na hora errada, e assim qu...
105K 8.5K 58
Talvez eu não merecesse ter ela. Ela era boa demais. Doce demais. Linda demais. Ela era pura. Inocente. Quase um anjo. Eu não tinha um pingo d...
1.1M 70.4K 101
|16+| André decide ir para fazenda do pai na esperança de esvaziar a cabeça dos problemas da cidade, só não imagina que iria sair enfeitiçado pela be...
558K 56.5K 85
🚫DARK ROMANCE - HARÉM REVERSO🚫 ▪︎ Se você é sensível a esse conteúdo NÃO LEIA! Eu fugi dos meus companheiros. Eu lutei para que eu pudesse fica...