O Bastante para não sermos An...

EvertonMedrado tarafından

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Daha Fazla

O Bastante para não sermos Anjos

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CAPÍTULO I

A cama estava mais dura do que nunca. É engraçado quando o cheiro de mofo se torna comum para o olfato. Embora fizesse algum tempo que não tinha voltado para aquele lugar, cada pedaço dele era como um abraço de um parente imbecil agradecendo por voltar.

Antes de caminharmos ao corredor onde estavam as celas, íamos a um quarto onde analisavam nossas bocas, cortavam nosso cabelo e nos colocavam nus para revistar a entrada de qualquer objeto proibido lá dentro. Pediam para que nos agachássemos umas dez vezes, para terem certeza de que não carregávamos nada enfiado nos nossos rabos.

Já nas celas, as caras não mudavam. Havia sempre o novato escolhido para puta comunitária, que com o tempo se acostumava com o serviço. Mas quanto a mim e a alguns daqueles caras, era como se o fato de nos ver novamente fosse uma questão de tempo e, em alguns casos, de sorte.

Outros que sempre estavam por ali eram os mesmos policiais gordos com cheiro de alho e café mal feito. Os idiotas mal nos olhavam nos olhos. Por trás daquelas grades, eles sabiam que não era só com um revólver de merda que nos impediriam de rasgar suas gargantas com nossas próprias mãos. A cabeça de um ladrão é simples. Somos movidos pela oportunidade.

A maior parte do nosso bando era de vagabundos sem nenhum princípio. Eles seriam capazes de matar um cara por ter lançado um olhar diferente ou apenas porque hoje seria um dia bacana para ver um engomadinho chorando de dor. Todos ali aceitavam a ruptura daquilo que era o correto. Daquilo que os entediava. Mas principalmente, todos eram miseráveis. Carregavam suas pulgas e as dividiam em suas celas. O íntimo que com pesar era esmagado pelas unhas sujas quando achados.

A questão de seguir e aceitar uma oportunidade foi exatamente o que me levou um dia a voltar a este lugar... Era um escritor em uma grande cidade. Lembro-me que, naqueles dias, o pouco que tinha servia para que comprasse algumas resmas em uma papelaria próxima ao meu apartamento no subúrbio.

Vivia de pequenos pagamentos de alguns trabalhos. Dividia o espaço dos meus textos com notícias sensacionalistas de um dos mais insignificantes jornais da cidade, um folhetim que era vendido nos metrôs. O dinheiro era pouco e quase sempre atrasava. Então, junto com isso, eu me frustrava em um emprego ridículo estacionando carros de clientes de um hotel. O tipo de trabalho em que as pessoas não apertam a sua mão e desviam o olhar dos seus olhos.

Já nas ruas, sempre olhava os rostos me analisando e pensava em como é curioso e incrivelmente sincero o olhar de um estranho em direção ao meu. O ato de julgar acontecia na fração de segundo. Usava uma jaqueta cinza e velha, com alguns buracos. As senhoras e os cavalheiros que me viam logo percebiam que ali se tratava de mais um pobre miserável esquecido.

Provavelmente todas as noites em que saía do trabalho, caminhava pelas calçadas movimentadas das grandes avenidas. As vitrines gritavam cheias de luzes e manequins ridículos. Diziam que o mundo era vazio.

Eu sempre me perguntava onde poderia chegar, o reconhecimento que possivelmente meus textos teriam potencial a alcançar, ou se estaria esquecido como tudo aquilo ao meu redor também estava. Pensei na proporção das coisas caso dessem errado. Daí me veio aquela explicação inconsciente de que não dar o primeiro passo, não me arriscar nas margens do abismo que estava por vir, seria uma merda maior, como se até o crescimento se tratasse de raiva, ou de uma vingança, à possibilidade remota do fracasso.

O mundo era como um round disputado de uma luta de pesos pesados, onde quase sempre o ódio é o maior dos estímulos. A vida seguia daquele modo... Hora ou outra as coisas iam mal. Aliás, bem piores. Como quando um burguesinho me acusou de ter arranhado seu carro no estacionamento e o gerente daquele lixo de hotel me despediu na mesma noite. Tive vontade de aguardá-lo sair do seu expediente e quebrar a sua cara deixando-o na calçada e bem fodido.

Mas saí pelos fundos daquele lugar e acendi o último Marlboro olhando para o céu. A noite estava apagada, sem estrelas. Voltei ao estacionamento pulando a grade adjacente a um beco escuro. Encontrei uma corrente no chão, que provavelmente servia para fortalecer a tranca do portão durante a madrugada. Por um momento esbocei um sorriso puto. Parecia que os deuses queriam um pouco de diversão lá do alto. Então foi o que fiz. Encontrei o Sedan Lincoln do cara e estourei os faróis e para-brisas. Tenho que admitir: foi algo irradiante de se fazer.

Era a proporção do caos e a fúria comum que estavam bem ali, sobre os vidros trincados que voavam pelo lugar. Sempre me sinto maravilhosamente bem em destruir algo. É um sentimento quase divino e tão inocente que até chamariam de instinto.

Sabia que não podia sair por aí fazendo merdas. Já havia sido preso um tempo antes, mas havia todo aquele prazeroso caos dentro de mim. E aquilo agia tão forte o quanto ninguém seria capaz de parar. Eu não teria grana para pagar as contas por uns bons dois meses, estava fodido, mas quem não estava?

Fui caminhar pela avenida. A noite era pouco movimentada, quase quieta. Passei em frente a uma cafeteria e pensei em comprar um pedaço da torta que me chamara à atenção na vitrine de vidro. Mas tinha apenas alguns trocados no bolso, uns dois tostões.  Precisava me contentar com alguns pedaços de pão. Passei em uma padaria e saí de lá com duas baguetes francesas quando, em frente à loja, estacionou uma senhora que, apressada, saiu do carro e passou por mim entrando no lugar. Ela tinha um cheiro doce e irritante, daqueles que lembram borracha e tutti-frutti.

Pela janela vi sua bolsa no banco do motorista. A noite prometia algo, e a oportunidade estava ali, como um cedro que aparecia na mira de um caçador. Tentei cuidadosamente abrir a porta, mas acabei descobrindo que estava fechada. Olhei para os lados e ninguém se dava ao interesse do que porra eu fazia ali. A mulher tagarelava com o vendedor sem dar atenção alguma ao carro. Aproveitei a fração de segundo e agi rápido. Quebrei o vidro com o meu cotovelo, agarrei a bolsa, enfiei dentro da sacola junto com os pães e corri em direção aos becos.

Algumas prostitutas, mendigos e veados foram os únicos que encontrei ali. Caminhei em direção a um lugar mais isolado e vasculhei a bolsa. O nome da mulher era Betty “Alguma Coisa”. Joguei os documentos dela em uma lata de lixo do meu lado. Dentro da bolsa Louis Vuitton estava grana suficiente para que eu pagasse a metade de um aluguel, além de um estojo de maquiagem, cigarros, preservativos, papeis amassados e um celular.

Fiquei com os cigarros, preservativos e o celular. Talvez conseguisse uma grana vendendo-o para alguém que pagasse bem. A corrida me cansou. Queria relaxar. Levei a bolsa até uma das putas e a ofereci em troca de um boquete. Afinal, parecia uma boa ideia. Fomos até um canto escuro entre as paredes e ela abriu o meu zíper, chupando o meu pau em frente aos mendigos. Passou sua língua em minhas bolas e me agradeceu pela bolsa nova depois que eu gozei fora de sua boca.

Eram 23h00. Peguei um ônibus para o subúrbio. Eu me sentia bem, embora um pouco cansado. Meu cotovelo doía um pouco, mas logo eu estaria em casa. Chegando ao meu bairro tudo me pareceu normal. Algumas crianças pobres jogavam bola na rua e os vagabundos de sempre dormiam embaixo do meu prédio.

Subi as escadarias e fui abrir a minha porta, quando um policial me empurrou por trás em direção à parede, me algemou, socou as minhas costelas e me golpeou ao chão, derrubando os pães e pisando no meu rosto com seu coturno cheirando a bosta. Não sabia se o cheiro de estrume vinha das botas ou do sujeito.

Então foi assim que acabei voltando. Retornei à prisão junto aos antigos rostos, como já havia dito. Percebi que cada um contava a sua história e pensei que não seria algo ruim me dedicar a escrevê-las. Havia tempo de sobra para isso. Tudo o que eu iria precisar era de um pouco de giz e papéis.

Costumo roubar o giz azul da biblioteca medíocre que eles têm aqui. Já o papel, tenho apanhado algumas sacolas de pão que um guarda me oferece. Parece que ele gosta do que escrevo. Detesto o fato de que a biblioteca se resume a uma literatura desinteressante.

Os caras da minha cela não se sentem mal por me ver escrever. Posso até dizer que são público cativo. A maioria me pede para que eu escreva as suas histórias e é impressionante o quanto me são interessantes. Eles me chamam de “Escritor” e é assim que as coisas caminham ultimamente.

Há muito que aprender aqui dentro. Cada um carrega um tipo de tristeza, esquecimento ou ódio que, de alguma forma, lhe afetará. Em algum momento você se pergunta onde todos aqueles homens falharam. E então percebe que talvez a resposta esteja em um sentido contrário: o mundo ao redor fez com que cada um aqui dentro seja sua própria falha.

Viver, de todo modo, é como pisar na chama que queimará totalmente seus pés até o final do caminho. E eles sabem disso. Quando ouço suas histórias, não vejo em que “poetizar” e tornar tudo mais romântico. Não sinto necessidade de lhes embelezar com flores. O que eles me contam é o real falando por si só: o beco dos vagabundos, as brigas de bares, a vida gritante dentro de cada um. Sou apenas uma ferramenta diante disso tudo. O cara que expõe o verdadeiro quadro das coisas para algum papel vagabundo. Sou um deles.

Tente enxergar as coisas de outra perspectiva, um pouco mais suja, e sem um céu de nuvens de merengue. Encare o fato de que não haveria o belo sem o seu contraste com o horrível. E então, finalmente, suponha que tudo na vida é uma merda. Dessa forma, o máximo que você pode receber em troca é a surpresa de não ter sido tão ruim quanto esperava. Entre aqueles vagabundos sempre se encontrava uma resposta, mesmo que nem mesmo a pergunta estivesse em sua cabeça. Mas ali a vida era entendida, pois só no inferno você seria capaz de se honrar pela quantidade de dor que é capaz de suportar.

 CAPÍTULO II

Um dos meus amigos sentou-se timidamente ao meu lado na última noite. Perguntou-me o que eu escrevia. Parecia uma criança procurando alguém para se enturmar no recreio.

- Escrevo coisas que as pessoas não querem ler. – eu disse.

Ele me olhou fixamente por alguns segundos e soltou um pequeno sorriso sujo. Pediu para que eu apanhasse o papel. Queria me contar algumas coisas.

Seu nome era Mikael T., ou pelo menos será assim que irei chamá-lo aqui. Um viciado em heroína que morava em um barraco próximo as ferrovias do sul da cidade. Roubava algumas carteiras dos passageiros aglomerados nos vagões durante o dia e à noite trocava o dinheiro em alguns gramas com traficantes.

Mikael tinha cabelos escuros e uma barba rala que cobria o seu rosto magro e pálido. Seu aspecto era bastante velho e adoecido. Contou-me que seus avós o expulsaram de casa quando seu vício em cocaína foi descoberto durante a faculdade. A partir disso passou a viver longe do bairro onde foi criado, aproveitando-se do descuido de alguns turistas. Suas mãos passeavam pelos bolsos alheios tão bem que podia chamá-las de luvas.

Foi preso pela primeira vez quando rasgou a garganta de um policial que dormia no posto de segurança e saqueou sua arma para tentar usar em alguns assaltos. “Uma ideia estúpida”, ele dizia.

Ao sair da prisão passou a procurar outras possibilidades de roubo no centro da cidade. Caminhava pelos becos e conheceu algumas gangs punk. Organizavam assaltos em relojoarias e viviam nas ruinas de um prédio abandonado cheio de pichações. O tipo de lugar em que os carrapatos eram tão presentes quanto os ladrões que moravam por lá. E foi neste lugar que encontrou uma garota que trabalhava como prostituta na Av. St. Thomás: a vadia de quem falarei bastante por aqui.

A garota voltava, a maioria das vezes, surrada pelo seu cafetão que a agenciava. Mikael furtava alguns analgésicos das farmácias sempre que possível, entregando os comprimidos para a menina durante a noite. Havia algo belo na miséria, afinal. Algo que ultrapassava os sonetos de Shakespeare ou as óperas Wagner.

A prostituta tinha uma aparência magra e doente, tanto quanto ele, além de não dar nenhuma pista aparente que tinha apenas os seus quinze anos. Seu cabelo era sujo e quase sempre fedia ao cheiro do perfume barato que lhe era dado. Seus olhos eram fundos e lúgubres, o que sensibilizava ainda mais Mikael que, com o tempo, passou de alguma forma a amá-la. Algo que seria um pecado, caso não estivessem tão sujos dele.

O dinheiro dos seus roubos era quase sempre usado para ajudá-la de algum modo. Ele sempre deixava claro que queria vê-la longe daquele lugar. Porém um dia a garota voltou muito espancada. Estava tão ferida que mal conseguia parar de soluçar em seu choro. Deitou-se no seu velho colchão estirado no lugar e encolheu-se no canto com marcas vermelhas em todo o corpo.

Mikael caminhou até perto e perguntou:

- O que aconteceu?

- Não quero falar sobre isso, caia fora. – ela disse chorando.

Com todo o carinho que um miserável poderia ter, ele encostou sua mão no rosto molhado de lágrimas, acariciou com afago sua pele úmida e disse:

- Becca, o que ele lhe fez?

Soluçando de choro e dor a garota falou:

- Ele me estuprou.

Mikael calou-se. Vestiu o seu casaco e apanhou uma garrafa com algumas doses restantes de uísque. A noite estava fria. Seus lábios estavam gelados e seu corpo tremia de frio e raiva. Ele saiu do prédio e andou pelas ruas enquanto terminava a garrafa. As noites estariam eternamente fodidas e aquela caminhada seria o início de uma boa tempestade.

Ele caminhou em direção à Av. St. Thomás, que não era tão distante dali. As garotas esperavam os clientes na calçada, enquanto ao longe o cafetão xingava uma das putas segurando seu dinheiro.

Mikael se aproximou e estourou a garrafa no rosto do homem. O cafetão ficou tão machucado que não conseguiu reagir ou levantar do chão. Aquilo foi o suficiente para que ele continuasse pisando em sua cabeça até o sangue escuro escorrer pelos bueiros da calçada. Mikael ouviu o som das sirenes se aproximando, sentou-se no chão sujo e esperou pelos policiais. Sentia-se satisfeito ao escutar os gemidos sufocados do homem jogado no chão.

A satisfação é como olhar para trás e não se importar pelo que haverá na sua frente. É como ter coragem suficiente de fechar os olhos e se jogar no mar, acreditando que nem mesmo o maior dos monstros irá devorar seu corpo caso você nade rápido o suficiente. Mikael não se importava. Às vezes tudo o que devemos fazer é nadar no mar durante a noite e dela esperar o pior com um sorriso na cara.

 CAPÍTULO III

E assim se passavam os dias, com o tempo arrastando-se entre as folhas amarelas que se juntavam dentro do meu travesseiro. Aqui dentro é como se cada dia durasse semanas de uma silenciosa, ininterrupta e maldita pausa.

Como disse, até o momento não quero romantizar o que acontece neste lugar. Não quero tornar toda esta realidade em um conto de fadas digerível. Não pretendo colocar rosas nos vagabundos que infestam este lugar – como muitos fazem – e, da mesma forma, não tenho interesse de tornar este um texto sobre o que acontece dentro das paredes sujas de uma prisão qualquer. O que será, e que vem sendo, escrito aqui é o real, a sinceridade amarga do homem como ele é, acima de tudo.

Um homem pode ser chamado de “fora da lei” ou vagabundo. Mas de qualquer forma não deixará de se considerar um homem. E a eles devo o meu respeito. Mesmo aos cães que farejam comida no lixo há a liberdade como respeito do seu próprio ser, protegidos pelos caninos brancos e afiados. Quando lidamos com governos e elegemos líderes responsáveis por nossas contas e liberdades sempre acabamos abrindo o espaço para que um de nós coloque sua voz em cima do altar de arrogância dos seus interesses, que vira o rosto às nossas necessidades. Anarquismo? Talvez, mas se perguntar sobre a importância daquele que nos rege é antes de tudo um dever, para que a alternância necessária, e a inexistência da imposição, possam fazer com que venhamos a entender a real importância de caminharmos na perspectiva de ajudar o vizinho sem lhe olhar o rosto ou perguntar-lhe o nome.

Somos então os caras tidos como errados, os arrogantes sujeitos com pouca ou nenhuma educação. Às vezes apenas bêbados maltrapilhos morando na rua, outras vezes um sujeito segurando em uma mão um punhado de ódio e na outra uma arma, mas ao todo carregamos o sagrado fardo comum: somos todos julgados e abandonados. Não que eu venha pedir desculpas ou dar razões aos nossos comportamentos. Estou pouco me fodendo para o que acham deles. Temos em nossos punhos, muitas vezes, alguma expressão de rancor daqueles que nos tomam como intratáveis, ou simplesmente nos existe, e resiste, a necessidade do ato insano em si, tal qual um animal sente a necessidade das presas afiadas.

Os ternos, os dourados relógios de pulso, os perfumes irrespiráveis ou apenas a sensação estéril de rotina não nos fazem parte. Nunca fizeram. E acredito que há algum tipo exótico de genialidade nestes vagabundos, algo pulsante. Uma coisa que esquenta qualquer alma que disso se aproximar, algo que está dentro do peito e não devia, aquecendo o frio que venha de qualquer inverno, alimentando as nossas próprias vidas. Algo que lhe faria sentir-se como um viciado caso provasse. E dessa forma somos de alguma maneira mais vivos, menos inertes. Doentes, amantes e obcecados.

 CAPÍTULO IV

Eu caminho só. Como uma palavra torta e perdida na frase. Existem alguns homens tão sozinhos que se tornam pequenas estátuas esquecidas e mofadas; mas alguns outros resolvem caminhar, também sozinhos, e talvez sejam estes que mereçam a honra por um dia terem sidos homens.

“Você só se dá conta do quão sozinho é quando o som das vozes na sala de estar são apenas os seus passos no assoalho”. Era o que dizia uma antiga canção que eu ouvia quando criança. Sempre preferi caminhar só e, entre o orgulho e a passividade que a solidão me colocava, sempre tive tendência à primeira opção.

Não acredito que teria sido algo melhor - como um homem melhor - se dedicasse a minha atenção aos conhecidos de um balcão de bar, ou a alguma mulher que me amasse. Pois até mesmo amar exige a essencialidade de que “se ame” e, como na maioria dos sozinhos, nunca exercitei esta parte.

Minha barba crescia. Aqui eles não dão atenção para isso e eu não me importava. Havia um velho em minha cela com uma barba que se encostava a seu peito. Poderia ser um velho mendigo que roubou peixe e banha, mas de qualquer maneira, ele não parecia querer se aproximar para me contar isso.

Em seu braço esquerdo havia uma velha fragata tatuada, algo comum em marinheiros e pescadores vagabundos. Tudo o que eu sabia sobre ele era que fora um homem do mar e que possuía um olhar tão calmo e triste como o oceano pela noite. Aquele homem havia visto continentes, experimentando a vida sobre as próprias pernas velhas e cansadas... até chegar a esta cela, a mesma cela suja em que estou agora. Todas as histórias que aqueles calçados estragados contavam seriam capazes de me tornar uma criança, diante do homem que ainda haveria de nascer dentro de mim. E ao final disso eu saberia que, por mais que a vida queimasse os meus pés, o caminho não acabaria. Afinal só ele é perpétuo e nós sempre estaremos deitados sobre o seu estrado desconfortável.

Ser amargo não significa encarar a verdade. A estes se dá o nome de idiotas, mas encarar a verdade facilmente pode cominar em sê-lo. Aprendi isso nas ruas pela noite, que podem ser tão valorosas como o mar longe da praia. O medo purgatório e a tensão por onde ando podem me indicar quem serei, a partir de onde passei e do que dali retirei. Tente isso, caminhe entre os mendigos, e saberá que as suas tristezas são as suas mantas mais grossas e o papel em que se deitam são suas memórias mais torpes. Pois assim é todo homem aos seus próprios olhos. Até mesmo se eles fechados tentarem encará-lo por dentro.

Ser um miserável é antes de tudo aceitar. Entender que por mais que um rosto seja belo ele envelhecerá e que de lá sairão os primeiros pelos de uma barba que um dia estará velha e cinza. Encaramos as nossas chagas como a memória carregada na pele e, quando ganhamos dinheiro pedindo nossas esmolas, estamos honrados por sabermos que estamos além dela, além do muro que lhe impede de apertar nossas mãos sujas e ásperas por nojo. Pois o nojo é a coroa de quem reconheceu o ouro atirado ao lixo, esquecido. O ouro que será mais amado e valorizado.

A miséria é a única dádiva que se pode retirar do tempo e do esquecimento. Mas encarar seu hálito frio em um beco pela noite é a prova da coragem que apenas os marinheiros e pescadores também sabiam decifrar. O medo, como uma matéria densa que lhe envolve da cabeça aos pés e lhe aperta o peito, mostrando como sua fragilidade quebra de tal forma a se fazer lembrar como pequenas varetas de madeira sendo dobradas. Você tremerá, de frio e de medo, tanto no mar quanto nos becos, invariavelmente. Mas se sobreviver será tão forte quanto a razão de tê-los experimentado. Carregará o céu sobre as costas e seu olhar será calmo e triste, assim como será o mais gelado dos invernos. 

CAPÍTULO V

Lembro que naquela época o céu era laranja, o mundo estava sufocado por entre o câncer das enormes chaminés industriais da cidade. Até mesmo durante a noite as estrelas se apagavam pelas nuvens escuras de carbono, parecia que o mundo estava tão doente nos céus quanto nas sarjetas e nos bueiros.

Eu caminhava inerte a tudo isso, olhava o asfalto passando pelos meus pés sentindo o cheiro do lixo exposto nas ruas. Os carros passavam barulhentos, as pessoas caminhavam insociáveis, e até mesmo a rotina estava poluída de alguma forma. Foi durante a minha passagem pelo bairro industrial, procurando algum trabalho que me pagasse bem, que entrei em um bar vagabundo próximo a uma estação ferroviária...

Os bares vagabundos possuem a peculiaridade de lhe passar o conforto de um refúgio longe da sujeira escondida. Afinal são eles os templos do que há de mais impuro, tratando-nos da forma certa, como o silêncio.

Perto do lugar, alguns cachorros se divertiam com pedaços de pão, que encontraram dentro de uma lixeira virada. Comprei um maço de cigarros com um garoto de rosto apático no balcão de entrada. O lugar tinha uma aparência enferrujada e pobre, aquilo me fazia sentir em casa.

Sentei no pequeno banco e pedi uísque.

- Gelo? – perguntou o atendente.

- Puro. – respondi.

Havia uma senhora sentada diante de uma mesa ao fundo. Sua forma era idosa e gorda, seus cabelos brancos cobriam parte do rosto amargurado e enrugado; fingia ler um jornal dobrado, acompanhada por uma xícara de porcelana; mas com certa discrição me observava.  Por algum motivo, me julgava.

Estava desempregado, mal vestido, com uma aparência pútrida, procurando algum emprego braçal que pagasse bem e aquilo estava tão perceptível quanto o cheiro do lixo que os cães haviam virado no lado de fora. Meu brio estava apagado. O meu rosto tinha uma rala barba escura, eu era algum tipo de coisa velha e esquecida.

Por um instante fechei os olhos sentindo o cheiro do copo de uísque perto do meu rosto. Naquele momento, ou talvez, nesta vida miserável, é isto que me faz sentir anestesiado a todo o cheiro de lixo ao meu redor, a todo o olhar julgador de velhas imbecis escondidas atrás de uma folha de jornal. O álcool possui a capacidade de nos fazer esquecer, de deixarmos que a velha roda dos dias gire nos deixando em paz. Fazia-me esquecer do cheiro deste lugar e não me importar por vagar cansado.

Esta cidade é como um pedaço de pão podre disputado por vira-latas. Aliás, todo este lugar é uma coisa ruim mas, especificamente, nos bares, existe algo capaz de se subliminar em alguma forma existencialista de templo moderno. Neste lugar os problemas podem ser afogados no álcool tão bem quanto sua consciência possa simplesmente aprender a deixar de existir. E isto era algo que eu fazia muito bem: não existir, me apagar à luz que me cobria.

Não compreendia aquele significado patético de levantar cedo, trabalhar, voltar para casa, descansar, para que no outro dia, pela manhã, voltasse a refazer todo o ciclo como um operário robótico programado, ou algum tipo de animal que ara um pasto - a exemplar vida vazia que aguarda o final de semana como uma promessa ilusória de recompensa, para que assim se possa comprar as coisas insignificantes que se acumulam, sem uso, na sua casa, lembrando-lhe sempre o quão idiota você é por entrar novamente em todo o processo. Merda, pura merda, encaixotada em embalagens invioláveis para que roubem o nosso dinheiro.

Era assim que vivia antes de arrumar o emprego no estacionamento do hotel, e logo depois ser preso para estar aqui, diante deste pequeno celeiro, escrevendo as minhas memórias e as memórias de meus amigos malditos. Andava confuso, esgueirando-me em algum lugar atrás dos pequenos momentos, atrás de um emprego, atrás de uma dose, um trago. Era como se tivesse urinado em algo muito sagrado. Minha vida, um barco de nada no meio de um oceano de trivial futilidade. O mesmo tipo banal de futilidade que faz as pessoas acordarem às 6h00 e caminharem aos seus empregos, vazias e confusas.

Recordo-me, ainda hoje, que durante aquela noite bebi por horas, até o momento em que um homem entrou. Um engravatado que pediu três doses de Baileys e sentou-se próximo. Ele me parecia um religioso. Digo isso pelo olhar crédulo, o cabelo bem cortado junto ao terno barato e a abotoadura ruim na gravata extravagante.

Eu estava bêbado e julgava o pobre idiota sem nem mesmo conhecê-lo, religioso ou não... Naquele instante, ele me parecia com os putos que me julgavam mal. E sabia bem que julgar mal é como uma tentativa fantasiosa de mudar algo em você a partir daquilo que vê nos outros... Mas para o nosso azar o cara se sentou no banco do meu lado, eu não queria saber quem era, não queria saber o seu nome ou de onde vinha. Queria apenas secar o meu copo. Permanecer só, sem ninguém ao meu lado.

Gostaria bastante de ver o mar naquele momento, de me sentir como o velho marinheiro, perdido, mas feliz por estar sozinho.  As pessoas me fazem sentir isso: a vontade de cair fora, fugir. Não existe um problema com o sentimento de solidão. Eestar sozinho é apenas aproveitar a própria companhia - e se você não suporta sua própria presença deve ser desagradável para todos que compartilharem dela. Estar sozinho é viver da sua forma, esquecer o fardo daquilo que é certo ou daquilo que fere os outros apenas por não ser o “comum”.

Dane-se o comum.

E então ele começou. Abriu a boca cheia de mau hálito e iniciou o desperdício de palavras enquanto eu pensava: “Porra, só queria ficar sozinho”. Antes de tudo, estava certo, era realmente um homem da igreja. Disse-me que havia largado o álcool há anos e, naquela noite, havia caído em sua própria desgraça novamente.

O alcoolismo, aquilo soou como algum tipo de chamado divino. Deus estava lá de cima, ao lado das loiras angelicais nuas, me mandando um sinal avisando sobre a merda em que eu estava me metendo. Lembro-me que quando eu era jovem e passava as tardes na casa do meu avô alcoólatra, ele sempre me dizia:

- O diabo pode desvirtuar um homem, mas nunca o fará tão bem quanto o álcool e as mulheres.

Bem, meu avô podia ter sido um apóstolo.

O engravatado virava cada copo de uma única vez. Parecia nem sentir o que estava fazendo. Enquanto fazia isso, me contava que havia entrado neste vício durante o câncer que levou a esposa a morte. Aquilo não era da minha conta, mas comecei a ouvir o que dizia. Fiz isso durante horas, até que me cansei, olhei para ele e disse que seria mais produtivo que pagasse uma vagabunda para ouvir o que tinha a dizer, pois naquela noite eu não faria aquilo. Levantei do banco e saí do lugar. Enquanto caminhava para fora pensei em como as pessoas são carentes, sozinhas e estúpidas. A maioria age de uma maneira tão patética que um simples desconhecido é eleito a um tipo de latrina para que derramem seus carmas.

Apenas queria aquela noite para esquecer tudo isso, toda esta ideia de que o mundo é um enorme problema. Além deste motivo, estava bêbado demais para ajudar aquele estranho. Estava bêbado demais para ajudar a mim mesmo, acima de tudo.

Caminhava já distante do bar. A noite estava calma. Não havia uma única pessoa na rua. Passava aparentemente sozinho por um viaduto. Alguns caminhões atravessavam abaixo de mim e foi neste momento que ouvi passos na escuridão em minhas costas.

Olhei para trás e lá estava ele: o alcoólatra religioso. Segurando um pesado cano de ferro, vindo em minha direção. Parecia que eu tinha feito um novo amigo afinal... ele estava muito puto - e eu diria que aquilo era até engraçado. Então tentou me atacar. Nós dois estávamos bêbados e aquela coisa parecia algum tipo de dança estranha. O primeiro golpe falhou quando desviei. Fechei os meus punhos e soquei seu estômago o mais forte que consegui. Ele cambaleou para trás, segurou-se no pequeno muro de proteção do viaduto e voltou em minha direção. Desta vez acertou meu braço esquerdo com bastante força. Devolvi o golpe com um belo cruzado no queixo. Seu corpo caiu novamente, mas, desta vez, escapou para o lado de fora da proteção, atirando-se para o asfalto na frente de um dos caminhões, que o atropelou me fazendo ouvir os ossos quebrarem embaixo das grandes rodas.

Tudo aconteceu de uma maneira tão rápida que não conseguia saber exatamente no que pensar. Incidentalmente, eu havia matado um homem. Sabia disso. Seu sangue estava espalhado pela pista, como um lunático quadro de horror. A morte sem motivo, o álcool, toda a sujeira em torno da tragédia, tudo me fazia sentir como algum tipo de amaldiçoado.

 


OBRIGADO POR LER OS PRIMEIROS CINCO CAPÍTULOS.

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Obra Registrada na Biblioteca Nacional.

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Sobre o Autor e Contato:

Evmedrado@hotmail.com

Sou Estudante de Direito, moro em Salvador, e tenho 22 Anos. Dedico-me à literatura HÁ cinco Anos, período AO quali escrevi contos, Crônicas, novelas etc Tenho Como Inspiração OS Trabalhos de Hemingway, Tolstói, Genet, Kerouac, e OUTROS. Possuo hum Estilo Opaco Remete Bastante AO Bata e Metro. Procuro UMA Linguagem Direta e Pragmática, típica do Cenário Contemporâneo fazer Fazer e urbano.

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