Zorro

By julianocgn

103 17 23

O inventor de uma máquina do tempo usa sua criação para voltar décadas no passado e cumprir uma misteriosa e... More

Zorro

103 17 23
By julianocgn

Foi só fechar os olhos e já havia chegado. Estava acostumado com aquela sensação, afinal não era sua primeira vez. Longe disso. Depois de toda a fase de testes e de muitas melhorias, sua invenção não causava mais nenhum incômodo. A viagem era tranquila, instantânea e sem os solavancos do começo. Mal parecia que havia se deslocado. E, a rigor, realmente não havia. Verificou o dispositivo em seu pulso esquerdo e confirmou: estava onde desejava estar. Ou melhor, quando desejava estar.

Olhou ao redor e concluiu que jamais reconheceria aquele lugar se já não soubesse onde estava. Apesar de nunca ter morado naquele bairro, conhecia-o muito bem das constantes visitas aos avós. Lembrar-se desses momentos lhe trouxe uma pontinha de saudade, acompanhada de um breve aperto no coração. Mas teve de frear toda essa torrente nostálgica, pois tinha uma missão a cumprir, e não pretendia gastar ali mais tempo do que fosse necessário.

A falta dos conhecidos pontos de referência o deixou um pouco desorientado. Não havia os grandes edifícios que costumava ver por aquela área. O shopping center a dois quarteirões dali ainda não existia. As ruas não eram asfaltadas. O que se via eram casas, com quintais grandes ou pequenos, algumas lojinhas e carros antigos aqui e ali. Tudo orbitando ao redor de uma simpática pracinha, com bancos convidativos para uma boa conversa, e um espaço para crianças brincarem. Logo ao lado, ficava uma pequena igreja.

Mas àquela hora, nenhuma criança brincava, e ninguém conversava nem rezava. À luz da lua, o único som era dos grilos que se escondiam nas moitas e arbustos espalhados pela rua. Solitário naquele ambiente, o viajante sabia que aquela não era a hora mais adequada para os seus propósitos. Entretanto, esse era um revés que ele já havia previsto. Lamentou, não pela primeira vez, que sua invenção não lhe permitisse determinar a hora exata da chegada. Não era possível precisar o momento, e ainda havia uma série de variáveis nas quais ele teria de trabalhar para aprimorar a viagem.

Andou sobre os paralelepípedos seguindo a rua escura que ladeava a praça. Passou por um poste que lançava uma fraca luz, de maneira que era difícil ver qualquer coisa a partir de certa distância. Provavelmente só conseguiria identificar a lojinha que o pai descreveu quando estivesse muito perto, portanto tentou ficar atento enquanto caminhava. Mas segundo o pai, não havia como se perder. Bastava seguir direto naquela ruazinha e ele encontraria o tal estabelecimento.

Engraçado como as coisas são, pensou. Desde o sucesso de sua invenção, perdeu as contas de quantas vezes convidou o pai para uma viagem. "Já é seguro, os riscos são mínimos", dizia sempre, ao que pai costumava retrucar: "muito obrigado, mas não quero mexer no que já foi tão bom". Não que ele menosprezasse o seu trabalho. Em diversas oportunidades expressou o orgulho de ter um filho inventor. Incentivou-o desde pequeno nos estudos, deu todo o suporte para que trilhasse o árduo caminho da pesquisa científica. E a cada vitória, a cada etapa bem sucedida, a cada prêmio ganho com a gloriosa invenção, o pai estava sempre lá, parabenizando o filho por uma conquista que também era sua.

Entretanto, o pai havia mudado desde a descoberta da doença. Andava cabisbaixo, desmotivado, parecia admitir a derrota. É verdade que o prognóstico não era nada animador desde o início, mas era angustiante para o filho vê-lo daquele jeito, nada podendo fazer para ajudá-lo. Logo ele, acostumado a buscar soluções para os problemas mais complicados, agora se sentia impotente, inútil perante a situação de alguém que tanto ama. Foi por isso que se alegrou com o pedido do pai, por mais surpreendente e inusitado que tenha sido. Finalmente sentia que estava fazendo algo, uma singela retribuição frente a tudo que o pai lhe proporcionou.

Caminhando ao longo da rua, conseguiu distinguir algumas lojas na escuridão, mas nenhuma era a que procurava. Viu um mercadinho, um salão de cabeleireiro, um açougue, um bar. Todos fechados. Ele olhava de um lado a outro da rua procurando a tal loja. Já estava ficando impaciente, quando finalmente a viu. Uma fachada pintada com uma grande variedade de cores, bastante chamativa, mesmo com pouca luz. Era exatamente como o pai a havia descrito. Estava fechada, como esperado, então ele se sentou na calçada, com as costas apoiadas na parede da loja, e aguardou. Ficou observando a rua. Parecia não haver uma só alma viva nas proximidades. Até que isso era uma boa coisa, concluiu. Bem sabia que era aconselhável que a interação fosse a mínima possível para evitar interferências diretas. Nisso o pai tinha razão, era melhor não mexer demais.

Ali sentado, refletiu que não compreendia muito bem o pedido do pai. Obviamente não lhe negaria esse favor, pois tudo que queria naquele momento era fazer a vontade dele, mas não via sentido. Por que, dentre tantas coisas que poderia pedir, o pai teria escolhido isso? Chegou a questioná-lo, ao que ele respondeu: "Quando se está velho como eu, meu filho, é das coisas pequenas que se sente falta. Das coisas que se tinha com facilidade, mas que não mais se pode ter. Fui muito feliz, tive muitos bons momentos em minha vida. Não posso pedir que me traga todos de volta. Mas esse singelo pedido será suficiente para acalentar o coração desse velho. Ele, por si só, será capaz de trazer à tona as mais deliciosas memórias, e isso é tudo que eu preciso agora. No fim, meu filho, a ordem das coisas muda. Trabalho, dinheiro, bens, nada disso parece ter importância. São as coisas mais simplórias que nos vem à mente. Como em Cidadão Kane. Esse é o meu Rosebud. Acredite, um dia você vai entender." Talvez ele tivesse razão.

De repente sentiu um empurrão e abriu os olhos.

- ... né lugar de ficar dormindo não!

Ainda piscando, com a luz pálida da manhã em seu rosto, viu o homem que o empurrava em pé à sua frente. Levantou-se lentamente com a mão apoiada na parede.

- Me desculpe, senhor – falou, ainda sonolento. - Estava esperando a loja abrir e acabei pegando no sono.

- E pra quê chegar tão cedo assim? Não podia esperar em casa que nem gente normal? E tinha que dormir na frente da minha loja? Pensei que era um mendigo, já ia botar você pra correr.

- Mais uma vez me desculpe. É que acabei de chegar de viagem, estou exausto. Mas preciso comprar algo na sua loja antes de ir para casa.

- Pois bem. O senhor espere um minutinho que eu ainda estou abrindo a loja. Daqui a pouco lhe atendo.

Enquanto aguardava, voltou a olhar para a rua e viu que o bairro começava a acordar. Outros estabelecimentos iam abrindo, e as pessoas começavam a seguir seu caminho para o trabalho ou para a escola. A luz do sol ia aos poucos se intensificando em mais um dia que começava.

Alguns instantes depois, o dono da loja retornou para atendê-lo. Pareceu estranhar um pouco o pedido, mas logo trouxe a caixa e entregou-a. Ao pagar pelo produto, o viajante pensou na sorte que tinha de a moeda não haver mudado desde aquela época. Seria mais uma dificuldade ter de ir atrás de dinheiro antigo para realizar a compra.

- O senhor teria papel de presente para embalar a caixa? – perguntou ao vendedor. – É uma ocasião especial.

- Sim, senhor – respondeu, não sem antes lançar um olhar intrigado.

Com o embrulho debaixo do braço, o viajante agradeceu ao vendedor e deixou a loja, fazendo o caminho de volta pela ruazinha. A claridade dava um aspecto bem melhor àquele lugar. Olhando ao redor, vendo as pessoas cuidando de seus afazeres, e sentindo o ar fresco da manhã, ele sentiu-se bem. De alguma maneira, compreendia porque seu pai amava tanto aquilo tudo.

Chegou à praça, mas não parou. Havia muita gente por lá, então achou melhor seguir adiante e procurar um lugar deserto. Encontrou-o ao lado da igreja, um pequeno jardim com algumas árvores que proporcionavam uma generosa sombra. Olhou ao redor e não viu ninguém. Sem tempo a perder, ajustou o dispositivo e fechou os olhos mais uma vez.

Logo estava de volta. Percebeu antes de abrir os olhos, só pelo barulho da cidade grande. Ao seu redor, o cenário ao qual estava habituado: uma profusão de prédios, asfalto e carros. O sol se escondia atrás de um arranha-céu. Correu pela calçada em direção à faixa de pedestres, esperando o semáforo fechar para os carros. O seu estava estacionado do outro lado da avenida. Chegando lá, rapidamente deu a partida e seguiu para o hospital. Não era uma longa distância, mas o tráfego estava muito lento devido ao grande volume de veículos. Ele estava acostumado com isso, não era nada de anormal. Mas naquele momento sentia uma urgência que o deixava impaciente naquela lentidão. Queria chegar logo, e ficar ali parado era angustiante.

Chegou ao hospital meia hora depois. Estacionou logo em frente, e entrou no saguão. O caminho do elevador e pelos corredores já era automático para ele, tantas vezes já o tinha percorrido nos últimos meses. Mas dessa vez sabia que era especial. Por isso seu coração batia tão acelerado. Chegando à porta do quarto, deu de cara com seu irmão mais novo, acompanhado de alguns primos e primas.

- Conseguiu? – perguntou o irmão.

Ele acenou com a cabeça e mostrou-lhe o embrulho. O irmão abriu um largo sorriso e pousou a mão em seu ombro. Ele retribuiu o sorriso, e em seguida abriu a porta do quarto. Lá dentro, o pai repousava em seu leito, rodeado por muitos rostos conhecidos. Viu a mãe, seu outro irmão, os tios, tias, e alguns amigos do pai. O quarto era bastante espaçoso, mas estava abarrotado de gente. Todos olharam para ele quando entrou. Pareciam esperá-lo. Atrás de si, o irmão fechou a porta ao entrar. Estavam todos ali. As pessoas que seu pai mais amava estavam ali.

Lentamente aproximou-se do pai. Ele estava muito debilitado, mas ainda lúcido. Só reconheceu o filho quando este ficou ao seu lado e pegou sua mão.

- Meu... filho... – balbuciou.

- Oi, papai. Estou aqui. – depositou o embrulho na frente do pai.

- Vo... você... cons... conseguiu... – seus olhos repentinamente arregalaram-se ao ver o pacote.

- Sim, como eu havia lhe prometido. Venha, vamos abrir – pegou as frágeis mãos do pai e ajudou-o a rasgar o papel. Fez boa parte do trabalho, é verdade. Nesse momento, todos no quarto observavam-nos. Ao vislumbrar a caixa por debaixo do embrulho, o pai sobressaltou-se mais uma vez.

- Zo... zor... zorro! – disse, com todo o entusiasmo que sua condição lhe permitia. Seus olhos brilharam com vivacidade, e um sorriso foi aos poucos se formando em seus lábios.

- Sim, papai. Trouxe uma caixa inteira desse seu pirulito. Pode se lambuzar à vontade. Seu médico provavelmente não aprovaria essa dieta, mas eu já tive todo o trabalho, então é melhor o senhor aproveitar – abriu a caixa e tirou de lá um pirulito. Rasgou a embalagem que o envolvia e colocou o doce na boca do pai. Ele pareceu maravilhado ao sentir o gosto. Lançou ao filho um olhar emocionado. Um misto de orgulho e gratidão. Gratidão também era o que se via nos olhos do filho. Por tudo que o pai lhe dera. Principalmente pelas coisas intangíveis, pelas quais ele sabia que nunca poderia retribuir em igual tamanho. Por mais que as circunstâncias parecessem mostrar o contrário, pai e filho sabiam que aquele era um momento feliz.

Os doces foram distribuídos entre as pessoas no quarto, e todos pareceram compartilhar um pouco da alegria do pai. O próprio filho provou o tal pirulito. Era bom, é verdade, mas ele não conseguia compreender o que tinha de tão especial. Obviamente tinha um significado diferente para o pai. "Cada um tem seu próprio Rosebud, meu filho", provavelmente diria. E ele tem razão. Nós nos apegamos a tantas coisas, e muitas delas só fazem sentido para nós mesmos. Às vezes, tentar entender os outros é perda de tempo. Muitas vezes é melhor simplesmente aceitarmos que somos diferentes, e entender que nem tudo tem que fazer sentido. Ver o pai feliz assim facilitava essa sua conclusão.

O filho abraçou a mãe, os irmãos, cumprimentou os parentes e os amigos do pai. Percebeu em todos uma certa alegria, uma leveza de espírito. Mesmo diante da situação, o clima no quarto parecia agradável, todos pareciam contentes por estar ali juntos, de certa maneira celebrando uma vida, homenageando-a.

Ele retornou para junto do pai e percebeu que o pirulito havia caído de sua boca. Seu rosto emoldurava agora uma expressão serena, mas aquele olhar penetrante ainda estava lá, agora sem acompanhar os olhos do filho. Estava fixado em algum ponto, imóvel. Ele havia partido, compreendeu. Os outros pareciam distraídos demais para perceber. Sem alarde, o filho aproximou-se e mais uma vez tomou a mão do pai na sua. Deu-lhe um beijo na testa e despediu-se silenciosamente. Encarou o rosto do pai novamente e permitiu-se uma primeira lágrima. Mas junto dela estampava um ligeiro meio sorriso. O pai se fora feliz. Tinha convicção disso. Teve uma bela vida, e uma despedida digna. No fim, foi capaz de "atar as duas pontas da vida". Não podia negar que isso o consolava um pouco. Afinal, poucos de nós conseguirão tais façanhas.

Continue Reading

You'll Also Like

4M 195K 101
✅ "We always long for the forbidden things." 𝐝𝐲𝐬𝐭𝐨𝐩𝐢𝐚𝐧 𝐧𝐨𝐯𝐞𝐥 ↯ ⚔︎ ʙᴏᴏᴋ ᴏɴᴇ ᴀɴᴅ ᴛᴡᴏ ᴄᴏᴍʙɪɴᴇᴅ ⚔︎ ...
27.9K 3.4K 37
It's gonna be short stories. Most of the stories will be around 10 to 15 chapters. If you are new to my profile, do check out the short stories I.
43.6M 1.3M 37
"You are mine," He murmured across my skin. He inhaled my scent deeply and kissed the mark he gave me. I shuddered as he lightly nipped it. "Danny, y...
66.5K 212 22
fetish ဖြစ်တာတွေ ချက်ဖြစ်ခဲ့တဲ့ roleplay တွေ တကယ်ဖြစ်ဖူးခဲ့တာလေးတွေ တချို့က ကိ စိတ်ကူးယဉ်တာဖြစ်သလို တချို့က ကိ တကယ်လုပ်ချင်တာ တချို့က ကိဖြစ်ခဲ့တာလ...