Stolen (L.S Version)

By waslarries

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Louis é um adolescente normal esperando para pegar um voo no aeroporto de Bangkok com seus pais. Ao se afasta... More

olá
capítulo 1
capítulo 2
capítulo 3
capítulo 4
capítulo 5
capítulo 6
capítulo 7
capítulo 8
capítulo 9
capítulo 11
capítulo 12
capítulo 13

capítulo 10

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By waslarries

Naquela noite ventou. Deitado na cama, ouvi o vento levantar a areia e arremessá-la contra o madeirame e as janelas da casa. Era como uma rajada de tiros. Ou de chuva. Fechando os
olhos, eu quase conseguia imaginar que era uma chuva inglesa, tamborilando ao meu redor num dia de verão, encharcando os jardins e os campos, inundando o Tâmisa e os esgotos perto da minha casa.

Eu já tinha me esquecido de como o som da chuva pode ser reconfortante, de como pode nos dar uma sensação de segurança.

Você foi se deitar antes de mim, naquela noite. Estava muito calado, desiludido comigo, eu acho.

Sua aventura não tivera  o resultado que esperava. Será que você estava começando a se arrepender? Estaria achando que tinha escolhido o garoto errado? Ou talvez apenas tenha percebido, pela primeira vez, que eu era um garoto comum, sem nada de especial, um desapontamento tão grande para você quanto para qualquer outra pessoa. Eu me virei e
dei um tapa no travesseiro, aborrecido com esses pensamentos e por ainda estar acordado.

De repente, ouvi você gritar. Foi um som que varou o silêncio e me fez dar um pulo na cama. Um som desesperado, animalesco, que parecia vir do seu íntimo mais profundo. A coisa mais alta que ouvi em muitos dias.

Meu primeiro pensamento foi o de que havia mais alguém na casa. Alguém que tivesse vindo me resgatar e estava primeiro se livrando de você. Mas foi uma ideia idiota. Ninguém resgata ninguém assim, exceto nos filmes. E com certeza não no deserto. No deserto, a equipe de resgate chegaria de avião e cercaria a casa com holofotes e barulho. E nós ouviríamos qualquer um chegar mesmo que estivesse a quilômetros.

Mesmo assim, fiquei atento a ruídos provenientes do lado de fora ou passos na varanda. Mas não ouvi nenhuma batida, nada que sugerisse que havia outra pessoa na área. Somente eu. Somente você. E a única coisa que eu conseguia ouvir eram seus gritos.

Além de gritar, você também dizia alguma coisa, mas não consegui entender o que era. Entre uma coisa e outra, você parecia estar chorando. Eu me levantei da cama. Peguei a faca. Andei até a porta do quarto na ponta dos pés, devagar e em silêncio. Quando você gritou de novo, eu puxei a maçaneta, usando o seu grito para camuflar o rangido. Saí para o corredor.

Não vi nenhum vulto, nenhuma pessoa. Mas seus gritos ficaram mais altos, roucos, e ecoaram por toda a casa. A sua porta estava entreaberta. Encostei o ouvido na fresta e fiquei escutando. Houve alguns segundos de silêncio, talvez até um minuto ou dois.

Então ouvi você chorar baixinho. Mas o choro aumentou rapidamente até se tornar incontrolável e desesperado, do modo como uma criança às vezes chora.

Espiei pela abertura, tentando enxergar na penumbra. Alguma coisa estava se mexendo na sua cama: você. Não havia outro movimento. Abri mais a porta.

— Hazz?

Você continuou a chorar. Dei um passo na sua direção. Uma tênue claridade entrava pela janela e iluminava o seu rosto, revelando suas bochechas molhadas. Você estava de olhos fechados.

Dei mais um passo.

— Harry? Você está acordado?

Com os punhos cerrados, você socava o pulôver enrolado que usava como travesseiro. Seu lençol tinha escorregado, expondo suas costas no colchão descoberto. Esticado como estava, você parecia grande demais para a cama. Suas costas eram longas e retas, longas como um tronco de árvore.

Mas naquele momento você tremia como um arbusto. Abri totalmente a porta e observei o aposento. A janela se encontrava fechada, e não havia nada sugerindo que alguém tivesse
entrado no quarto. Fosse qual fosse o motivo, você estava gritando durante o sono.

Seus soluços diminuíram e você enterrou o rosto no pulôver. Fiquei parado, olhando. Você chorava como eu tinha chorado quando cheguei, desesperadamente, interminavelmente, mas baixinho.

Era uma coisa estranha, que quase me deu vontade de chorar também. Abanei a cabeça.

Você era rijo, forte e perigoso.Talvez fosse apenas uma encenação. Enquanto eu observava, você encolheu as pernas contra o peito e começou a se balançar. Depois começou a gritar de novo. Os gritos doíam nos meus ouvidos. Eu tive que tapá-los. Dei um passo na sua direção. Tinha que fazer você parar. Sem pensar no que estava fazendo, segurei seus ombros. Sacudi você. Sua pele estava pegajosa. Quente.

Seus olhos se abriram, mas você não me viu imediatamente. Viu outra pessoa. Você me empurrou para o lado e se encolheu no colchão até esbarrar na parede. Seus olhos esbugalhados se moviam de um lado para outro enquanto você tentava enxergar direito. De repente, você começou a murmurar palavras e sons.

— Não me leve embora — você dizia. — Por favor, me deixe em paz.

Tentei atrair seu olhar e mantê-lo fixo em mim.

— Sou eu, Louis— eu disse. — Não vou levar você a lugar nenhum. Fique calmo.

— Louis?

Você pronunciou meu nome como se fosse uma vagalembrança. Você pegou o lençol e se cobriu com ele.

— Você está sonhando, Hazz— eu disse.

Mas você não estava escutando. Engatinhou para a frente e agarrou minha camiseta. Dei um passo para trás.

— Pare, Harry !

Dei um tapa nas suas mãos e empurrei seus dedos. Mas seu rosto mostrava desespero.

— Não me leve embora — você soluçou com voz de criança.— Mamãe esteve aqui, as árvores, minhas estrelas... eu não quero ir.

Você me enlaçou pela cintura, atirando os braços em torno dela. E começou a chorar junto à minha barriga. Seus olhos estavam abertos, mas você ainda não estava me enxergando. Batia nas minhas costas com os dedos e puxava minha camiseta.

Toquei seus cabelos e o abracei, puxando você pra mim.  Seu choro diminuiu um pouco.

— Sou eu, Louis. — repeti. — Acorde, Hazz. Nada vai acontecer a você. Ninguém vai te levar embora. Vai ficar tudo bem.

Senti suas lágrimas sobre a minha barriga; seus dedos enlaçados na minha cintura não permitiam que eu me afastasse. Eu não queria me afastar.

Deixei você permanecer nessa posição. Subitamente, você parou de chorar.

— Eu não sei onde eu estou — você murmurou.

— Você está aqui — eu disse. — No deserto. Não tem ninguém aqui.

Você estava tão perto de mim, eu sentia o cheiro doce e suave. Eu não queria soltar você. Te ver daquele jeito, mexeu comigo. Então apenas continuei a fazer leves carinhos nos seus cabelos macios.

Você limpou os olhos na minha camiseta. Depois olhou para mim. Desta vez, você me viu; e sabia quem eu era. Seus olhos entraram em foco e seu rosto relaxou.

— Lou..— você disse.

Assenti.

— Obrigado.

— Você estava sonhando. Eu só acordei você.

— Obrigado.

Depois de algum tempo, você me soltou. Sentou de pernas cruzadas no colchão, olhou para o piso e começou a revolver os polegares um sobre o outro. Embaraçado, eu acho.

— O que você estava sonhando? — perguntei.

Você abanou a cabeça e não respondeu à pergunta.

Permaneci onde estava, esperando. A madeira estalava ao redor, e o vento bombardeava o teto de metal. Você olhou para a janela, como que verificando se ela ainda estava lá.

— O orfanato — você disse em voz baixa. — A viagem na van, indo embora.

Você olhou para a noite e as estrelas. Olhei para elas também. Achei que estava conseguindo discernir a linha do horizonte, que separava a terra, ainda mergulhada em trevas, do céu que começava a clarear. Você deu um suspiro e passou a mão sobre o rosto.

— Agora você deve estar pensando que eu sou maluco, não é?

Olhei para você, todo encolhido.

— Todos nós temos sonhos.

Seus olhos grandes brilhavam na penumbra, como os de alguma criatura noturna; uma criatura que precisava de cuidados.

— Quais são os seus? — você murmurou.

— Sonho com a minha casa, geralmente.

— Londres? — você refletiu sobre a palavra, tentando definir o que ela significava para você. — Como pode sonhar com esse lugar? — você disse, olhando de novo para a janela. — Como pode gostar tanto de lá?

— As pessoas amam as coisas com as quais estão acostumadas, eu acho.

— Não. — Você abanou a cabeça. — As pessoas deveriam amar as coisas que precisam ser amadas. Assim elas podem salvar essas coisas.

Você permaneceu em silêncio por um longo tempo, olhando para a janela, apenas pensando. Devagarinho, eu me encaminhei para a porta.

— Desculpe — você sussurrou.

Sem falar nada, saí do quarto. E voltei para o meu.

Não consegui dormir. Estava pensando em você, em seus pesadelos, em meus dedos enrolados nos cachos dos seus cabelos, em você chorando que nem um bebê. Eu sei que não podia me deixar afetar por isso, mas quem se importa? A essa altura, o sol já tinha torrado me cérebro.

Eu não sei onde eu estava com a cabeça quando meu corpo se levantou involuntariamente da cama, indo em direção ao seu quarto. Toda minha sanidade já tinha, provavelmente, ido embora. O vento levou para longe.

Entrei no seu quarto e você já estava dormindo.  Você parecia tão calmo, quase angelical. Eu o observei dormir por alguns minutos, apenas apreciando você.

—Hazz?

Nada.

—Curly? — eu disse mais uma vez. Só que agora estava cutucando você.

Você acordou. Ficou totalmente confuso por eu estar ali.

—Aconteceu alguma coisa? — você perguntou com uma voz grossa e sonolento.

—Não.

Você me olhou mais confuso ainda, não entendo o que tava acontecendo.

—Você está se sentindo mal? Qual é o problema?

—Não. Nenhum.

—Então o que te trás aqui, Lou?

Meu estômago revirou. O que eu estava fazendo ali, afinal?

—Eu não quero dormir sozinho. Eu tô com medo. — disse sem pensar.

Você paralisou. Chocado. Mas logo depois não conseguiu segurar um sorriso, entendendo o que eu queria.

—A cama não é muito grande, mas cabe nós dois. Venha.

Você se ajeitou na cama e eu me deitei do seu lado. Sentindo seu cheiro doce novamente.

—Não sabia que você era medroso. — você disse me puxando para si. Não protestei, apenas deixei.

—Shh, durma.

você obedeceu.

=

Seu quarto estava vazio quando eu acordei. Fui alimentar as galinhas.
Na volta, a camela veio ao meu encontro, andando pesadamente. Cocei suas orelhas e puxei os cabelos macios que cresciam dentro delas, como você tinha me dito que ela gostava. Ela descansou o focinho no meu braço.

— Ele vai ficar com você — murmurei para ela. — Quando eu for embora, daqui a alguns meses, ele não vai deixar você ir também.

Afaguei a pele de suas bochechas, aveludadas como asde um ursinho de pelúcia. Seus lábios macios roçaram as costas da minha mão.

— Como você pode ser tão gentil? — eu disse. — Você devia ser selvagem, pior que ele.

Toquei suas longas pestanas com as pontas dos dedos. Ela piscou.
Dei alguns passos, me afastando, mas ela me acompanhou. Dei uma volta pelo cercado e o ruído suave dos seus cascos permaneceu atrás de mim. Parei e me virei para ela, pensando em tentar uma coisa.

— Se abaixe — eu disse.

Levantei o braço, como você fazia. Ela soltou um pequeno gemido, inclinou o pescoço para a frente e dobrou as pernas até bater com a barriga no chão, levantando uma nuvem de poeira.

— Boa menina — eu disse.

Então me ajoelhei à sua frente. Nossos rostos ficaram à mesma altura. O focinho dela era enorme, e os dentes, estragados.

Seu hálito meio fedido penetrou nas minhas narinas. Ela virou a cabeça na direção dos galpões e do sol e fechou os olhos. Pousei o braço sobre seu ombro largo e musculoso. Ela encostou o pescoço no meu quadril. Nesta posição, eu poderia subir no pescoço dela, alcançar a corcova e montar nela. E poderíamos galopar para longe. Apoiei a cabeça no pelo dela e fechei os olhos também. Bolas de fogo dançaram por trás das minhas pálpebras. Naquele momento, pelo menos, ficar parado ali era o bastante.

Você passou o dia todo no galpão de pintura. Eu só reuni coragem para ir ao seu encontro no meio da tarde. Você tinha estado muito diferente na noite anterior, quase vulnerável... eu queria ver como reagiria à minha presença no dia seguinte.

A porta do galpão estava entreaberta. Eu a empurrei. O recinto estava muito iluminado e quente. Levei alguns momentos para me acostumar. As cortinas instaladas na janela
haviam sido arrancadas e amontoadas no chão. Com a luz do sol inundando o ambiente, pude perceber que as paredes, antes desbotadas, tinham sido repintadas com espirais, listras e pontos vividamente coloridos, intercalados com riscos vermelhos, negros e marrons. Folhas, areia e galhos, colados em alguns pontos, davam textura às superfícies. Se eu recuasse e observasse o trabalho como um todo, conseguiria enxergar padrões. Uma onda de pintas amarelas se estendia pelo chão como areia, e círculos azuis na parede oposta formavam tanques de água.

O galpão tinha um aspecto selvagem e me lembrou de uma história que mamãe lera para mim há muito tempo, sobre o quarto de uma criança que fora transformado num lugar selvagem.

Você estava no meio de tudo, de pé sobre um banco de madeira, pintando o teto. Vestia apenas um short, cujo pano fino e rasgado mal escondia suas coxas. Você pintou a área sobre sua cabeça com milhares de pontinhos alaranjados.Após algum tempo, pegou outro pincel atrás da orelha e encheu o espaço entre os pontos com espirais brancas. Parou somente quando acabou a tinta.

Você se virou. Seu peito, coberto por manchas cor de terra, brilhava de suor. Observei seu rosto, para ver se restara alguma angústia da noite anterior. Mas você parecia relaxado e feliz. Você desceu do banco e se aproximou de mim.

— Gostou da minha pintura? — perguntou.

— O que é isso, Picasso?

— É tudo o que existe em torno de nós, a terra. — Você sorriu. — Ainda não terminei. Todos os pedaços da parede vão se tornar parte disso. E eu também.

— Por quê?

— Quero capturar tudo, toda essa beleza, quero conectar...quero que você veja tudo do jeito que deve ser antes de... antes de ir...

Seus olhos estavam faiscantes. Eu me virei, captando as cores, rodopios e texturas à minha volta. Meus olhos se fixaram num grupo de pintas brancas e brilhantes sobre fundo negro, que cobria um dos cantos do teto. Lembravam estrelas, pequenas bolas de luz cintilantes. Seria esta a sua intenção? Você se aproximou mais.

Havia areia grudada em seus ombros e em metade do peito. Estendi a mão e toquei sua pele. Estava áspera e quente como as areias lá fora.

— Isso não coça?

— É só a camada básica — você disse. — Quando estiver totalmente seca, vou poder pintar os padrões.

— Que padrões?

Você sorriu ao perceber minha perplexidade. Então segurou minha mão, apertou-a contra o peito e a manteve ali.

— Padrões da terra. — Você acenou com a cabeça, indicando o interior do galpão. — Espere só até o sol começar a se pôr — você disse. — Tudo isso vai ganhar vida.

— Como assim?

— Você vai ver.

Minha mão, coberta pela sua, sentia o martelar profundo do seu coração. Rapidamente, eu a recolhi. Você tirou a mão do peito e a passou sobre os cabelos. Uma cascata de areia caiu no chão. Você abanou a cabeça, derramando mais areia.

— Tempestade de areia — você disse.
E começou a girar a cabeça, fazendo a areia voar e seus cabelos dançarem.

Segui você até a porta, ainda um tanto confuso com o que acabara de ver. Você colocou minha mão sobre suas costas. Sua pele estava morna e úmida. Sua coluna se projetava como uma raiz.

— Eu posso pintar minha parte da frente, mas preciso de ajuda para pintar as costas — você disse.

Retirei a mão rapidamente.

— Eu não quero pintar você.

— Não vai ser preciso. — Você se virou para me olhar. —Existem umas folhas perto do laguinho dos Separados, folhas longas. Você poderia pegar uma pra mim? E já que vai até lá me traga um punhado de musgo também.

Você voltou para dentro do galpão, enquanto eu tentava me equilibrar no caixote que servia de degrau, balançando para frente e para trás.

— Volte quando o sol começar a se pôr — você gritou. —Então vou estar preparado.

Você fechou a porta.

Caminhei displicentemente na direção dos Separados, dizendo a mim mesmo que não estava realmente fazendo o que você queria. Andava devagar, parando para observar algumas coisas, fingindo que a pequena flor púrpura que eu vira na areia era o verdadeiro motivo da minha caminhada. Como vira você fazer, eu batia com um bastão nas moitas mais altas, me precavendo  contra cobras.

Na lagoa, passei por baixo do galho de eucalipto, engatinhei até a beira da água e mergulhei meus dedos nela, me deliciando com a súbita frialdade. Em seguida, fui até a saliência rochosa que ficava no lado oposto, onde o musgo se alojava numa estreita fissura. Coisas corriam ao meu redor, mas não me afastei. Estava estranhamente calmo, aproveitando a letargia vespertina do lugar.

A pedra ficava em um lugar sombreado. Eu me sentei nela e estiquei as pernas, deixando minhas panturrilhas nuas entrarem em contato com seu frescor. Passado algum tempo, tateei dentro da fissura e arranquei um pedaço de musgo. Depois me imobilizei, esperando
que uma aranha minúscula terminasse de passar sobre os meus dedos.

Ao contornar novamente o laguinho, vi as folhas que você mencionara, grandes e de aspecto suculento. Pareciam estranhas naquele ambiente, cercadas por uma vegetação mais seca. Arranquei
uma delas do caule, fazendo jorrar uma seiva leitosa, que tentei estancar com as mãos.

Ao retornar, parei na área das galinhas. Babaca estava no fundo da gaiola, mas quando comecei a conversar com ele, ele trotou até a frente. Enfiando o bico através dos arames, arrancou um pedaço da folha que eu tinha acabado de colher.

—Harry não vai gostar disso — ralhei.

Mas Babaca apenas estufou as penas, orgulhosamente, e cuspiu o pedaço de folha. Sentei ao lado da gaiola, em meio aos murmúrios desaprovadores das galinhas. Logo as rãs começaram a coaxar, promovendo uma algazarra cada vez mais frenética.

O sol começou a baixar. Estava na hora. Entrei na trilha sinuosa e me dirigi ao seu galpão de pintura.

Abri a porta do galpão. Os raios róseos e alaranjados do sol poente brilhavam através da janela, banhando as paredes que você
tinha pintado. A luz se refletia nos grãos de areia, que fazia faiscar e
cintilar. Tudo à minha volta era colorido e fulgurante, numa escala
quase ampla demais para ser assimilada. Rapidamente você
transformara aquele espaço — em cujo centro estava perfilado. Seu
corpo colorido também refletia a luz. Suas costas eram a única parte
que ainda não tinha sido pintada. Senti um forte cheiro de ervas,
pesado e intoxicante como o odor dos seus cigarros.

Você veio até onde eu estava e pegou as plantas. Você estava nu. Mas tão coberto de tinta, areia, flores e folhas que não notei isto de imediato. A tinta e os materiais o vestiam como roupas. Você pintara o rosto com uma tonalidade vermelho-clara, coberta de arabescos amarelos e alaranjados. Seus lábios estavam marrom-
escuros. Uma textura granítica, acinzentada, cobria suas pernas. Seu
pênis fora pintado de preto, em meio a uma área de ramagens púrpuras, verdes e cinzentas. Eu me afastei às pressas, olhando para seus pés, que exibiam uma tonalidade ocre pardacenta, coberta por uma rede de espirais brancas. Voltei até a porta sem saber o que dizer. Você parecia um louco, paramentado daquele jeito. Mas era bonito também.

— Isso é o que eu queria lhe mostrar — você explicou. — A beleza desta paisagem. Você precisa saber que é uma parte dela.

Seus olhos brilhavam, muito verdes contra o fundo avermelhado. Pareciam fora de lugar, lembravam muito duas esmeraldas.

Você se ajoelhou no chão, ao lado de um prato com pétalas vermelhas. Esmagou as pétalas e lhes acrescentou água, para fazer tinta. Depois mergulhou o musgo na mistura e o esfregou nas costas, imprimindo sua textura em vermelho até onde pôde
alcançar. Um pouco da tinta escorreu, formando riachos de sangue que pingavam no chão. Olhei ao redor. Não vi nenhuma corda para me amarrar, nem nenhuma arma. A porta estava atrás de mim, aberta. Eu poderia ir embora facilmente. Mas, por alguma razão, não quis ir.

— A luz está diminuindo depressa — você disse.

Então pegou a folha que eu trouxera e mergulhou seu talo grosso numa substância negra e pastosa, até recobri-lo totalmente. Em seguida, esticou a mão para trás e tentou pressionar o talo nas costas. Quando percebeu que não conseguiria alcançar o lugar que desejava, estendeu a folha na minha direção.

— Você pode pintar os padrões em mim? — perguntou. — Com isso?

— Eu não quero.

Empurrei sua mão.

— Mas a luz está ficando mais fraca. Quero fazer isso antes de o sol se pôr, para você poder ver como tudo vai ficar.

Sua voz soava impaciente, firme. Você envolveu minhas mãos no calor das suas. Tintas vermelhas e negras sujaram meus dedos, imprimindo neles uma mancha semelhante a uma contusão.

— Por favor — você disse baixinho. — Faça isso por mim. Você sabe que eu vou levar você de volta. Eu prometi.

Seus olhos refulgiram sob a luz, e seus dedos apertaram os meus com mais força. Recolhi a mão e segurei o talo. Depois o mergulhei na pasta negra e me ajoelhei atrás de suas costas.

— O que eu devo desenhar?

— Qualquer coisa. O que você estiver achando deste lugar.

Minha mão tremia um pouco. Uma pequena gota de tinta caiu sobre o meu joelho. A extremidade do talo era pontuda e serrilhada. Eu a encostei na sua pele, fiz pressão e formei um ponto.

Você se contraiu um pouco. Um raio de sol atravessou a janela e atingiu suas costas horizontalmente. Minha visão ficou enevoada.

Apertei os olhos.

— Não estou conseguindo enxergar.

— Então faça sem enxergar.

Molhei o talo na pasta preta mais uma vez e desenhei uma longa linha reta de um ombro ao outro, arranhando sua pele enquanto tentava fixar a cor. Desenhei também uma mixórdia de
pontas eriçadas: uma triódia. Depois tentei esboçar uma pessoa, com
o corpo fino como um palito e um círculo irregular formando a
cabeça. Delineei olhos no rosto e os colori. Por cima, pintei cabelos
cor de fogo. Então desenhei um pequeno coração no meio do corpo.
Você estendeu a mão para trás e tocou meu joelho.

— Terminou?

— Quase.

Abaixo de um dos ombros, pintei um pássaro voando. Em seguida, desenhei um sol negro na base da sua nuca, brilhando acima de tudo.

Você se virou para me encarar e nossos joelhos se tocaram. Seu rosto estava a menos de meio metro.

—Você quer um pouco?

Você molhou o dedo em uma poça de barro cor de sangue e riscou uma linha na minha testa.

—Eu posso pintar você. — Você tocou no meu rosto, espalhando barro
vermelho nele também. — Ocre — você murmurou. — Intensifica tudo.

Você tirou a folha da minha mão e a moveu na direção do meu pescoço, mas joguei o corpo para trás.

— Não — eu disse.

Você deu de ombros, com tristeza nos olhos, segurou minha mão e me fez levantar. Resisti apenas um pouco. Depois andamos até o centro do galpão.

— Agora vamos esperar — você disse.

— O quê?

— O sol.

Você me puxou até um leito de areia e folhas, bem no meio da pintura multicolorida. O sol que resplandecia através da janela era tão brilhante que tive dificuldade em manter os olhos abertos, ou mesmo entreabertos. Havia ali um aroma refrescante de folhas, ervas e terra.

— Fique virado para esse lado — você disse.

Você se virou para a parede dos fundos, e eu fiz o mesmo.

Com o sol por trás de nós, pude ver seus raios destacarem até os mais leves pontos da pintura, fazendo com que parecessem tridimensionais. Você pegou algumas folhas secas, esmagou-as na mão e retirou seus papéis de cigarro debaixo de uma pedra. Tirando um pouco de cinzas de uma pilha, você as misturou com as folhas e colocou a mistura em um dos papéis de cigarro, que selou rapidamente com a língua.

Quando acendeu o cigarro, senti aquele cheiro novamente, aquele odor intenso de folhas do deserto
queimadas: o cheiro que naquele dia emanava de tudo o que havia no galpão de pintura. Você deu uma tragada longa e profunda, e passou o cigarro para mim.

Era como uma minúscula árvore em chamas queimando entre os meus dedos. Depois de rolar o cigarro de um lado para outro, olhando para a ponta incandescente, resolvi experimentá-lo, não sei explicar por quê. Talvez estivesse mais relaxado naquele dia, com mais esperanças de que você me deixasse partir. O odor
daquelas folhas não era tão desagradável quanto o de tabaco, nem tão pungente quanto o de maconha. Um sutil sabor de ervas encheu minha boca. De repente, comecei a respirar mais suavemente relaxei um pouco os ombros.

Você se deitou sobre os cotovelos. Quanto mais o sol baixava, mais vivas se tornavam as cores. Uma tonalidade avermelhada banhou todas as coisas, destacando até os trechos mais obscuros do painel. Colunas de luz iluminavam milhões de pingos de tinta e pétalas de flores. Vermelhos, laranjas e rosas se intensificavam em
torno de nós, até nos dar a impressão de que estávamos sentados sobre uma fogueira... ou no meio do próprio crepúsculo.

— Parece que estamos no centro da Terra, não é? — você sussurrou. — Bem no meio das brasas.

Senti o calor nas costas, grudando a camiseta na minha coluna. Pestanejei para que as cores parassem de se esfumaçar. Linhas e manchas negras dançavam diante dos meus olhos, como contornos de chamas.

O sol baixou mais. A luz alcançou seu corpo pintado e tornou você dourado... fazendo-o brilhar. Os grãos de areia em seus braços resplandeceram. Senti o sol sobre minha pele também, que adquiriu um suave tom alaranjado. Todo o galpão estava inundado de luz.

Você me observava, com seus olhos verdes flutuando em ouro. Notei as marcas negras na sua bochecha esquerda, minúsculos rastros de animais que iam até seus cabelos, passando por cima da cicatriz. Você estendeu a mão tocou meu braço no ponto onde o sol me atingia e onde minha pele estava mais aquecida. A areia que recobria seus dedos brilhou contra a minha pele. Você me afagou
com as pontas dos dedos.

— A luz está vindo de dentro de você também — você disse. — Você está brilhando.

Virei a cabeça e tentei abarcar toda a pintura de uma vez. Minha mente rodopiava um pouco, não sei se devido às cores, à luz ou à fumaça do seu cigarro. Aquele galpão pintando era muito diferente de todas as pinturas que eu tinha visto com mamãe, muito mais real de certa forma. E sim, eu admito: era lindo. De uma forma selvagem. Seus dedos traçavam padrões sobre o meu braço; círculos e pontos. Seu toque já não me assustava.

Rapidamente o sol se ocultou sob a janela e as cores desapareceram. Você me passou o cigarro de novo, enquanto as sombras do crepúsculo avançavam pelas paredes. Ficamos sentados ali por mais algum tempo, até as cores desaparecerem por completo.

Pestanejei e devolvi o cigarro. O aposento estava imerso em
penumbra e ficava cada vez mais difícil enxergar os objetos no chão.
Eu me levantei e cambaleei na direção da porta.

— Vou ajudar você — você disse.

Você segurou meu braço. Andava de modo confiante, enxergando como um animal noturno. Quando chegamos à porta, senti a friagem da noite. Abracei a mim mesmo, enquanto você retornava ao interior do galpão para buscar suas roupas. Você me entregou o suéter de lã que estava usando de manhã.

— Vista isso — você disse. — Vai se sentir mais aquecido.

Seu cheiro de doce, eucalipto e terra encheu minhas narinas quando passei o suéter pela cabeça. A lã arranhou meus braços.

Você estava de short quando olhei para você de novo. Você pegou meu braço pelo cotovelo e me levou para fora do galpão.

As estrelas já brilhavam no céu ainda cinzento. A lua era um sorriso torto. Deixei que você me conduzisse. Não falamos nada. Os únicos sons que ouvíamos eram os que minhas botas e seus pés descalços produziam na areia. Longe, muito longe em meio às
trevas, alguma coisa emitiu um uivo fantasmagórico, como uma entidade de mau agouro.

— Dingo — você sussurrou.

Muitos pensamentos me assaltavam naquele momento, e muitas emoções. Apertando meu cotovelo firmemente, você me guiava com segurança. Uma pequena parte de mim gostava daquela situação. Pisquei os olhos e abanei a cabeça, sem querer admitir fato. Mas era verdade, não? Parte de mim estava começando a aceitar você. Se eu cedesse, se começasse a me interessar por você — perguntei a mim mesmo — aonde isso me levaria?

— Está com fome? — você perguntou.

Abanei a cabeça. Então parei e olhei para o céu. Era agradável olhar para toda aquela penumbra. E até repousante, após todas aquelas cores.

— Eu só quero me sentar um pouco — eu disse. — Aqui.

— Sozinho?

— É.

— Vou pegar um cobertor.

Você se encaminhou para a casa. Observei suas costas desaparecerem na escuridão. Esfreguei os cotovelos, sentindo frio, e me afastei um pouco dos galpões, penetrando mais no deserto.

Encontrei um trecho plano, sem plantas nem pedras e me sentei ali.
A areia ainda estava quente. Enterrei as mãos sob as camadas superiores e senti o calor armazenado nos grãos se infiltrando em mim. Outro uivo ecoou ao longe. Desta vez era uma resposta; outro espírito gemendo nas trevas.

Olhei para as estrelas, agora em maior número, povoando as sombras como faróis de automóveis na hora
do rush. Suponho que, para as estrelas, aquela era a hora do rush.
Parecia haver tantas estrelas no céu quanto grãos de areia ao meu redor. Enterrei mais as mãos, enquanto os grilos atrás de mim iniciavam um coro entrecortado.

Senti as vibrações dos seus passos retornando. Você trazia um cobertor cinza enrolado nos ombros e outro pendurado no braço. Não tinha tirado a areia nem a pintura do corpo. Mas a pintura havia borrado um pouco; na sua boca, nos seus olhos, nos
seus braços... Você enrolou um dos cobertores em mim, e me entregou uma caneca.

— O que é isso?

— Apenas ervas e água. Vai manter você quente.

— Não estou sentindo frio.

— Vai sentir.

O vapor cheirava a folhas recém-colhidas. A infusão estava quente demais para que eu a bebesse de imediato, mas apenas segurar a caneca já era reconfortante. Inclinei a cabeça e inalei o vapor. Com o cheiro de mato ainda nas minhas narinas, olhei para as estrelas. Você olhou para cima também, perscrutando o céu como se estivesse examinando um mapa. Depois meneou a cabeça. Não consegui saber o motivo.

— Já tem tudo o que precisa? — você perguntou. E se virou na direção da casa.

Mas hesitou antes de dar o
primeiro passo. Permaneceu parado no lugar por alguns momentos,
esperando que eu dissesse alguma coisa... querendo que eu dissesse
alguma coisa. Estalou os dedos da mão e brincou com os polegares,
nervosamente. Eu cedi.

— O que você está vendo lá em cima? — perguntei, erguendo as mãos para o céu.

Você sorriu, agradecido.

— Posso ver o que você quiser.

— Você conhece os padrões?

— Você quer dizer as constelações? —

Você deu de ombros.

— Eu conheço os meus padrões.

— Como assim?

Você se agachou ao meu lado rapidamente.

— Conheço as formas que eu vejo nelas. Posso traçar rostos de pessoas lá em cima, coisas da terra... qualquer coisa, na verdade. Se você olhar para elas por tempo suficiente, essas estrelas vão dizer tudo o que você quiser saber: pontos cardeais, condições atmosféricas, hora do dia. Podem até lhe contar histórias.

Você sentou ao meu lado e enterrou as mãos na areia. Quando viu que eu estava com as botas enterradas na areia, sorriu e enterrou seus pés. Isso me lembrou de quando Niall e eu
partilhávamos a mesma cama e nos enfiávamos embaixo do mesmo
edredom. Essa época me pareceu um milhão de anos distante. Ficamos algum tempo calados, tão silenciosos quanto as mariposas que esvoaçavam em torno de nós. Estendi a mão e peguei uma, que se debateu na minha mão.

Quando abri a mão, ela permaneceu imóvel, provavelmente machucada. Tinha a cor bronzeada da minha pele. O luar iluminava os padrões de suas asas, tênues e intrincados. Ela tinha pequenas antenas peludas. Suas pernas  começaram a me dar coceira. Como aquela coisa conseguia sobreviver? Parecia tão delicada. Sacudi a mão e ela caiu na areia. Eu lhe dei um empurrão e ela se afastou voando, meio desajeitada, pronta para nos rondar novamente.

— Essas mariposas são precoces — você disse. — Elas só deveriam aparecer daqui a algumas semanas. Você teve sorte.

Você sorriu. Seus olhos se enrugaram nos cantos e suas covinha apareceram.

Olhei para outro lado imediatamente. Queria sustentar seu olhar, mas sabia que não deveria. Algumas estrelas piscavam para mim, outras se mantinham imóveis. Ouvi os estalidos agudos dos morcegos, cujas
silhuetas vislumbrei na escuridão, batendo as asas silenciosamente
no céu aveludado.

Naquele momento era como se fôssemos as duas únicas pessoas no mundo. Não estou sendo sentimental, foi o que realmente senti. Os únicos sons no ambiente eram os zumbidos dos grilos, os estalidos dos morcegos, o leve assovio do vento na areia e os ocasionais uivos dos dingos.

Não havia buzinas de carros. Nem
trens. Nem esquinas movimentadas. Nem cortadores de gramas. Nem aviões. Nem sirenes. Nem alarmes. Nem nada humano. Se você me dissesse naquela hora que havia me salvado de um holocausto nuclear, eu poderia ter acreditado.

Você se deitou na areia, com o rosto voltado para as estrelas. Ficou tão silencioso e imóvel que poderia estar adormecido. Ou morto. Cutuquei você.

— O quê? — você deu um meio sorriso. — Estou pensando nas estrelas.

— O que tem elas?

— Como tudo é eterno e passageiro ao mesmo tempo.

— Como assim?

Você falava ainda olhando o céu noturno.

— Bem, aquela estrela lá longe, à minha direita, está piscando
alucinadamente; mas por quanto tempo ela vai continuar piscando? Uma hora, duas ou por um milhão de anos? E por quanto tempo vamos ficar sentados assim? Só por mais alguns momentos ou pelo resto das nossas vidas? Você sabe qual opção eu escolheria...

Ignorei seu comentário e olhei também para as estrelas.

— Se você se lembrar bem, fui eu quem quis me sentar aqui. Foi você quem me seguiu.

Você se apoiou nos cotovelos.

— Quer que eu vá embora?

Seu rosto estava a menos de um metro do meu. Eu poderia me inclinar até você, ou você poderia se inclinar até mim. Nós poderíamos nos beijar. Seus olhos estavam fixos em mim. Senti seu hálito aquecer a minha pele. Seus lábios estavam ligeiramente entreabertos, secos e rachados nas bordas. Precisavam de um pouco de umidade. Estendi a mão e tirei uma partícula de tinta ainda grudada na sua barba curta. Você segurou meus dedos e os apertou contra o queixo. Permaneci imóvel, sentindo o calor da sua mão e a aspereza da sua barba curta nas pontas dos meus dedos. Onde é que eu estava com a cabeça? Olhei de novo para as estrelas. Após alguns momentos, você deixou meus dedos escorregarem entre os seus.

— Eu só quero ficar sentado aqui — disse, com voz trêmula.

— Você pode fazer o que quiser.

— Eu quero ficar.

Não confiando em mim mesmo o bastante para encarar você, olhei para o céu. Vi algumas estrelas, particularmente próximas e
resplandecentes, descendo no horizonte. Eram como uma pequena
cidade, feita de luzes cintilantes. Uma rodovia de estrelas brilhantes desembocava nelas. Você percebeu em que direção eu estava olhando.

— As Irmãs — você disse. — É como algumas pessoas chamam elas.

— Por quê?

Você se sentou, surpreso com a minha disposição para conversar.

— Essas estrelas já foram mulheres bonitas — você disse. — As primeiras mulheres que existiram nesta terra. Quando elas andavam, árvores e flores surgiam atrás delas... e rochas. Um rio se formava nas pegadas delas. Mas um dia, quando elas estavam
tomando banho nesse rio, um espírito masculino ficou espiando elas. E decidiu que aquelas mulheres seriam suas esposas. Ele correu atrás delas e elas fugiram. Fugiram para o único lugar onde achavam que estariam a salvo, o céu. Elas viraram estrelas. Mas o espírito masculino foi até o céu e acabou virando uma estrela
também. Uma estrela que sempre anda atrás delas.

Você levantou o braço e apontou para uma das estrelas mais brilhantes.

— Está vendo? Ele está ali. — Você traçou uma linha entre a estrela e o aglomerado de estrelas que chamou de Irmãs. — Viu? Ele sempre está ali, perseguindo as irmãs eternamente... mas ele nunca consegue se emparelhar com elas.

De repente, estremeci.

— Quer dizer que as irmãs nunca conseguem fugir dele?

— É verdade. — Você apertou o cobertor em torno dos meus
ombros. — Mas elas também nunca são apanhadas. Ele está sempre
atrás delas, sempre observando... querendo elas. Ele persegue elas
ao redor do mundo. Você poderia ter visto ele perseguindo elas em
Londres, se tivesse procurado.

— Você sabe que a gente não consegue ver estrelas em Londres, não realmente — eu disse.

Você se deitou de novo na areia.

— Talvez não. Mas ele está lá, mesmo assim. Atrás das nuvens, atrás das luzes... observando.

Permanecemos sentados por mais algum tempo; eu bebendo o chá que você me trouxera e você falando mais sobre as estrelas. Você tinha razão a respeito do chá. A bebida parecia se espalhar sob a minha pele e me aquecer. Você me perguntou se eu queria que você acendesse uma fogueira, mas eu abanei a cabeça. Não queria nada que poluísse o show de luzes acima de nós. Você me mostrou
algumas das imagens que via no céu.

Primeiramente, um pequeno
agrupamento de estrelas que achava parecidas com os rochedos dos
Separados; depois, duas estrelas mais brilhantes, que seriam os galpões, e uma terceira estrela que seria a casa. Em seguida, você apontou para duas estrelas azuladas e disse que éramos nós. Apertei os olhos, tentando ver isso também. Mas tudo o que vi foram estrelas.

— Você consegue ver Londres? — você perguntou. — Lá em cima?

— Como assim?

— Você consegue ver a cidade? A silhueta dos prédios? As pontes? Você pode enxergar essas coisas nas estrelas?

Esquadrinhei o céu. Estava coalhado de estrelas, e mais estrelas surgiam a cada segundo. Havia estrelas demais para que se pudesse destacar qualquer coisa. Tracei uma linha imaginária entre algumas estrelas, como você fizera para delinear os Separados, e tentei formar o Big Ben. Você rolou o corpo e olhou para mim.

— É engraçado, não é? — você disse baixinho. — Assim como você olha para cima e vê uma cidade e eu olho para Londres e vejo uma paisagem.

Franzi a testa e olhei para você.

— Como assim paisagem? — Tudo o que existe abaixo. — Você esfregou os dedos na barba, enquanto pensava. — Toda a terra e a vida que estão embaixo do concreto, prontas para atravessar o calçamento e retomar a cidade a qualquer instante. Toda a vida que existe abaixo dos mortos.

— Londres é mais do que apenas uma pilha de concreto — eu disse.

— Talvez. — Seus olhos cintilaram no escuro. — Mas sem os humanos a natureza reassumiria o lugar. Levaria só uns cem anos para ela dominar tudo. Na verdade, nós somos transitórios.

— De qualquer forma, nós estamos lá — eu disse. — Você não pode ignorar os humanos, os edifícios, a arte e tudo o mais que existe numa cidade. Você não pode tirar isso. Senão, realmente não haveria nada...

Parei de falar quando me lembrei do que tinha deixado para trás; quando pensei no meu trajeto para a escola no ônibus panorâmico, passando pelos museus e pelos portões dos parques.
Pensei nas duas velhas senhoras sentadas à minha frente, conversando sobre a EastEnders3.

Passei os braços em torno das canelas e as apertei com força, quando pensei no que deveria estar acontecendo na minha terra. As aulas já teriam recomeçado, Liam e Niall já teriam voltado da viagem de férias e o verão teria terminado. As folhas estariam passando do verde para o amarelo, cobrindo o playground. A calefação corredores da escola ainda não teria sido ligada, e de manhã o cavernoso auditório da escola devia estar um gelo. Será que meus amigos estariam sentindo a minha falta? Será que alguém estaria anotando as aulas para mim? Ou já teriam me esquecido? Com lágrimas escorrendo no rosto, encostei a boca nos joelhos.

Depois escondi o rosto entre os braços, para que você não notasse que eu estava chorando. Mas você se levantou e se postou atrás de mim.
Você pousou a mão nas minhas costas, sacudidas pelos soluços. Sua mão era quente e firme.

— Você tem razão — você sussurrou. Senti seu hálito na minha nuca. — Talvez haja coisas boas nas cidades, às vezes... coisas bonitas.

Você me puxou até você. O modo como fez isto foi suave e gentil, primeiro me abraçando pelos ombros, e depois me guiando até você. Com a sensação de estar me movendo em câmera lenta, caí nos seus braços. Você apertou os braços e os dois cobertores em torno de mim, me envolvendo num casulo aconchegante. Pensei na mariposa que tinha capturado, segura na escuridão dos meus dedos, mas prisioneira.

— Desculpe — você disse. — Eu não quis deixar você triste.

Senti você tremer. Você me apertou com mais força contra o peito, e também contra a areia, terra e pintura que ainda estavam lá.

Eu me afundei em você, pela primeira vez precisei de você. Seu cheiro de terra se espalhava em mim. Você afagou meu rosto, levando a tinta ocre que estava lá para os meus cabelos. Permaneci sob os cobertores, aconchegado no calor do seu corpo.

Seus braços eram firmes como pedras. Senti seus lábios roçarem meus cabelos. Senti seu hálito quente nas pontas das minhas orelhas. Contraí o corpo, mas não me afastei. Pensei cuidadosamente nas palavras que queria dizer.

— Se nós estivéssemos em Londres — comecei — antes de tudo isso acontecer, me conhecendo como me conhece agora, você ainda me sequestraria?

— Sim — você murmurou, arrumando meus cabelos atrás
das minhas orelhas. — Eu não posso ficar sem você.

Você apertou mais os cobertores em torno de mim. Senti suas mãos quentes e secas sobre os meus ombros, seus dedos friccionando minha pele. Após algum tempo, você se deitou na areia e me levou junto com você. Não tive energia para lutar contra você.

E você estava quente, muito quente. Continuei com o rosto encostado no seu peito. Senti seu corpo relaxar. Deitei de lado na areia. Ainda havia calor nela, mesmo naquela hora tardia. Você me aninhava com um braço e afagava meus cabelos com o outro. E falava. Sussurrava histórias sobre como o deserto tinha sido criado, cantada pelos espíritos da terra. Contou como tudo estava
entrelaçado, como o mundo à minha volta se equilibrava na asa de
uma mariposa.

Fechei os olhos e deixei sua voz me acalentar. Seu ritmo era como o fluxo de um riacho. Senti seus lábios tocarem a minha testa. Estavam macios, não secos. E seus braços me puxavam para você, para as profundezas da terra.

Senti bontade de beijar você, então virei e fiz. Beijei você.

Você me beijou de volta. Foi um beijo doce e calmo e lento. Eu fiquei muito nervoso, assim como você. Mas fui relaxando ao seu toque. Seus lábios eram grossos e macios. 

Enrolei a mão nos seus cachos e o puxei pra mim. Você gostou do gesto e sorriu.

Eu me afastei de você. Ofegante. Você sorriu mais ainda e eu imitei você. Você me deu um selinho e ajeitou meus cabelos.

Fechei os olhos e me senti bem. Estava tudo certo. Estava tudo bem. Você me puxou e me abraçou.

Dormimos assim.

=
preparem o psicólogico de vocês, os lencinhos e a bombinha, porque os próximos prometem muitas emoções.

ah, a fic já com 1k de visualizações

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