Azul Que Cobre O Asfalto

By ViniciusArierreff

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Pietro, um velho acostumado às suas tradições, se vê em uma viagem arriscada em busca de uma vida normal em m... More

Segundo
Terceiro
Quarto
Último

Primeiro

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By ViniciusArierreff

   A vida no campo nunca fora fácil. Sempre, durante toda a existência humana, viver na fazenda fora um sacrifício. Acordar cedo, cuidar dos animais, tirar o leite, trabalhar para o sustento diário…  Eram tarefas gratificantes, que tinham a capacidade de acalmar o espírito; contudo, as mãos não deixavam de calejar por isso. A vida urbana, não. Era totalmente diferente; mais fácil, mais prática. Não era atoa que as cidades tinham crescido tanto nas últimas décadas do século XXI.

   Contudo, diferente do que a maioria da população pensava, Pietro insistia em manter suas raízes vivas. Tinha nascido e crescido na pequena fazenda de seus pais e lá permanecera durante toda sua vida, casando-se e criando seus dois filhos até que eles não precisassem mais de sua criação. Depois, passou a viver com sua velha esposa, sozinhos, sempre unidos, até que a vida fizera questão de separá-los.

   A vida no campo, por mais difícil que fosse, era a vida que ele conhecia; e não sabia pensar uma outra vida em que teria sido tão feliz. Conseguia enxergar muito bem o prazer acima dos desprazeres, o sossego acima dos desastres, a paz acima da destruição… Sim, fora muito feliz na roça, por mais que as coisas tivessem mudado muito nos últimos doze meses.

   Ouviu um de seus bois bufar, começando a se cansar com o trajeto.

   — Acalme-se, Barão… — Pietro disse. Olhou para a estrada a frente, estendendo-se infinitamente no horizonte. — Tamo só no começo, rapaz.

   Não podia julgar o animal pelo desânimo em prosseguir, o velho sabia muito bem que ele não tinha culpa; tornara-se complicado alimentar dignamente qualquer ser vivo que fosse nos últimos meses. O capim do pasto sofria com a falta de nutrientes e com a ausência de um cuidado mais árduo do velho, o que levava a desnutrição dos animais da fazenda, e os bois não eram exceção. Fosse em outros tempos, Pietro sabia, o boi só começaria a se cansar após passar a próxima cidade. Mas aqueles tempos tinham ficado para trás.

   Tinha acabado de sair da estrada de terra batida que levava para suas posses. Agora, andava nos primeiros quilômetros do asfalto quente da GO-070; apenas ele, seus quatro animais e a companhia inseparável de seu Deus. Caminhavam devagar, como  em todas as outras viagens dos anos anteriores — nem tudo havia mudado. Em seu carro de boi, levava o básico e necessário: comida, apenas para si, pois a dos animais crescia solta rodovia afora, água o suficiente para que matasse a sede até encontrar a próxima nascente que cortava a estrada, seus materiais de higiene pessoal, alguns pares de roupa, seu berrante, sua imagem de Nossa Senhora e objetos para autodefesa, caso surgisse em seu caminho algum mal que a ajuda divina não fosse capaz de livrá-lo, o que provavelmente aconteceria em breve.

   Olhou em volta, confirmando para a sua mente velhaca que o perímetro que avistava era seguro. Ao seu redor, nenhuma casa ou nenhuma construção humana, senão a rodovia, podia ser enxergada. O máximo de preocupante que estava próximo era uma pequena reserva de Cerrado ao lado da estrada, porém, a reserva era composta por escassas árvores e arbustos, com predominância dos capins que cresciam na região, e não dava muitas oportunidades de esconderijo para alguma ameaça. Averiguou, também, o asfalto. Durante o dia era difícil de ver as manchas, mas tudo indicava que aquele pedaço do caminho estava limpo das bactérias. Poderia aproveitar a viagem, como nos velhos tempos, ao menos nos próximos minutos.

   Aquela praga estava em todos os lugares, era até admirável que ainda houvessem áreas limpas. Tudo que aquelas bestas tocavam, ficava infectado; Pietro aprendera com o tempo que era inútil tentar limpar as coisas. O melhor a se fazer era evitar as áreas contaminadas e impedir que novas áreas se sujassem. A melhor forma de defesa era se manter na espreita, sem alardear, e para isso era preciso calma e silêncio. Tivera que se adaptar; o carro de boi não tocava mais seu canto tão belo, o roncar das rodas de madeira enquanto girava em torno de seu eixo não se fazia mais ouvir, as engrenagens do veículo sertanejo tinham sido bem polidas e lubrificadas para que o som desaparecesse. O velho também arranjara protetores para seus bois; uma espécie de bota cobria os cascos dos animais, evitando que os pobres tivessem contato com as bactérias. O homem estava esperto, o ano que passara lidando com a nova realidade lhe dera a esperteza necessária.

   Lembrava-se como se fosse ontem das notícias nos jornais da tevê. Os malditos cientistas, bichos curiosos e atrevidos, resolveram futricar no passado. Os caixões estavam lá, quietos, seguros, contudo os homens da ciência tinham que estudar os corpos das vítimas do acidente do Césio-137. Foi um alvoroço. As pessoas queriam esquecer aquela tragédia, não revirar os corpos a procura de sabe-se lá o que pudesse ser encontrado neles. O caso, rapidamente, virara notícia na capital, no Goiás inteiro e, então, no país: o passado iria ser revirado em nome do conhecimento.

   O que os pesquisadores, tão famintos por conhecimento, não esperavam, era que a natureza estivesse aguardando o momento certo para fazer a prova definitiva aos homens. Não havia só corpos dentro das caixas de chumbo, mas também seres microscópicos. As desgraçadas das bactérias estavam lá; e vivas. Estavam adormecidas, em forma de esporos — Pietro se lembrava bem dessa expressão nos jornais. Seres minúsculos, capazes de não só resistir ao efeito do césio, como também de acordar novamente para o mundo e causar uma distribuição que ele jamais imaginou um dia ver.

   As bactérias começaram a se desenvolver, infectando as pessoas, de uma por uma. Os sintomas começaram a surgir em uma velocidade surpreendente. Vômito, diarreia, dores no corpo… Depois tremedeira, insônia, delírios, paranóia… E, por fim, perda da consciência de viver em sociedade, aumento da agressividade, sede de sangue… De um por um, indivíduo a indivíduo, a praga foi se alastrando. Logo, novas informações sobre os infectados foram colhidas. Não gostavam da luz natural, escondiam-se durante o dia e saíam enraivecidos a noite. A bactéria carregava consigo uma marca única: a fluorescência; tudo que estava contaminado se tingia de azul florescente durante a noite. Os infectados não eram exceção, quanto mais aqueles seres se multiplicavam no organismo, mais era perceptível no escuro. Sangue, saliva, lágrimas… Tudo era azul ao cair da noite.

   Por fim, em um último estágio, a radiação decompunha a carne, o corpo apodrecia, se definhava, e quando os nervos perdiam a sua função, a morte chegava para acabar com os sofrimento das vítimas, trazendo sossego a corpos já sem alma. Todo esse processo levava cerca de dois meses, Pietro sabia por experiência própria.

   Não demorou muito para que toda Goiânia entrasse em decadência. Menos tempo ainda para que o trem se tornasse um problema nacional; depois mundial. A doença não tinha cura, nem escapatória, uma hora ou outra ela o pegaria, ele tinha ciência dos fatos. Entretanto​, sua fé permanecia acesa e ele não desistiria de viver enquanto tivesse forças para isso. Seguiria com a viagem, calmo e sempre, com a proteção de…

   Sua linha de raciocínio foi perdida quando um odor pungente invadiu suas narinas. O cheiro inebriante tomou o ar a sua volta, abraçando a si e a seus animais. Ele ficou de pé dentro do carro de boi, segurando o chapéu para que o vento não o fizesse partir. Analisou todo o território, usando da minúcia, até que encontrou o que procurava. Mais a frente, assim que a estrada fazia uma curva em meio a uma plantação de eucalipto que tomava os dois lados da via, dois veículos amassados; tinham batido de frente, colidido grotescamente. O amontoado de lata estava no centro da rodovia, bloqueando quase toda a passagem.

   Pietro guiou seus companheiros para que passassem pelo acostamento. Ao passo que seu lento veículo ia cruzando o lado dos automóveis acidentados, ele ia observando o estrago. O cheiro, logicamente, era de carne pobre, as moscas ao redor da lataria evidenciavam aquilo. Haviam duas pessoas mortas em um carro esportivo e outra numa pampa já antiga, estilo ano 2070 ou mais. O aroma repulsivo era de putrefação, contudo não era de corpos contaminados; o cheiro que as bactérias deixavam era mais ácido, grudava mais no nariz. Tinham morrido única e estritamente pelo choque da colisão.

   — Tá vendo, Diamante — ele disse, chamando a atenção de um de seus bois. — Eu falo procê que num precisa de pressa. Isso que dá quando se quer correr demais — puxou a orelha do amigo.

   Prosseguiu viagem, sem se deixar prender pelas cenas escabrosas. Não eram​ as primeiras pessoas que via naquela conjuntura e, pelo extenso caminho que tinha pela frente, tinha absoluta certeza que não seriam as últimas.

   Caminhou mais cerca de meia hora, até encontrar um córrego que passava perpendicularmente sob o asfalto. Os bois estavam cansados, almejam uma sombra fresca, água cristalina e um palmo de capim que pudessem abocanhar, já ele, pedia apenas a sombra de uma árvore onde colocaria seu fogãozinho de duas bocas e cozinharia um bom rango; e aquele córrego tinha tudo isso. Parou fora da estrada, retirou as rédeas de seus quatro animais e os acompanhou até às margens, onde os quatro se colocaram a saciar a sede.

   Olhou para o céu; pela posição do sol, que reinava no centro de um fundo azul, passava do meio-dia. Retirou o celular do bolso e confirmou com a tecnologia os dons temporais que havia aprendido com seu pai: era quase uma hora da tarde. O calor era intenso, mesmo por debaixo das árvores, o que o levou a cogitar um banho de rio, há muito não mergulhava a cabeça em águas correntes. Estava começando a tirar as botinas, quando um barulho se fez ouvir. Um barulho próximo, dentro do carro de boi.

   Pietro colocou-se em estado de alerta, caminhando sorrateiramente até seu veículo de pouca tecnologia, mas de grande valor.

   — Que disgrama! — praguejou ele, quase em sussurros, por ter deixado seu revólver dentro de sua mochila.

   Haviam notícias de infectados que conseguiam perambular durante o dia, fazendo novas vítimas mesmo depois do raiar do sol. Contudo, até o momento ele considerava que tais notícias não passavam de boatos, um entre tantos outros que a mente humana assustada era capaz de inventar; não contava que iria encontrar um logo ali, em uma parte da estrada livre dos microorganismos.

   De longe, conseguiu distinguir uma silhueta humana sobre seu carro de boi, vasculhava suas coisas de forma apressada. O ser estava tão focado no que procurava, que sequer se importava em saber se estava sendo vigiado ou não. E estava. Pietro assistia a tudo, meio receoso em chegar em perto, contudo obrigava-se a dar passos lentos em direção ao intruso. Pelo comportamento inconsequente, pensou o velho, só poderia ser um infectado já em estágios avançados de contaminação.

   Apanhou no chão o primeiro pedaço de pau que vira, avançou um pouco mais rápido. Estava quase do lado do ser. Ergueu o tronco, disposto a acertar direto na cabeça, sem dar chances de luta.  Entretanto, quando ia golpear, o ser rolou para o lado, caindo do carro de forma estabanada e soltando um grito de susto. Um grito que um infectado não produziria. Pietro viu o garoto cair de bunda no chão cascalhento forrado por capim, levantando as mãos no instante em que percebera que o que lhe atacava era o dono do veículo. Os olhos assustados, a roupa suja, a feição pálida.

   — Por favor — implorou, os olhos já brilhando em desespero. —, não me mate.

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