Hades e o Mestre dos Truques

By RPrezlivros

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Conto baseado no mito de Sísifo conhecido como ser humano mais ardiloso do mundo grego e que através de seus... More

Capítulo 1 sem título

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O ar daquela sala era quente e pesado, fazendo Sísifo suar como um porco. Acorrentado a uma cadeira, observava o ambiente opressor ao seu redor: as paredes enegrecidas, escavadas nas rochas do Tártaro subiam até a escuridão sem teto; uma mesa imponente, em mármore negro e sua respectiva cadeira de espaldar alto, feita em ossos, possuía diversos crânios humanos adornando-lhe as extremidades; velas negras e rubras também encontravam-se dispostas pela mesa e completavam o cenário sinistro. Sua parafina derretida formava estruturas estranhas: homens gritando, mãos esqueléticas se erguendo, feições contorcidas de dor. Aquele ambiente opressor, aliado a calor abafado e o cheiro de enxofre o estavam deixando completamente atordoado. Podia jurar que aquelas estranhas figuras que surgiam da parafina derretida estavam se mexendo e emitiam lamentos que lhe faziam arrepiara alma!

—Apreciando a paisagem, meu caro Sísifo?

O troar de uma voz irônica atrás da cadeira a que estava preso fez com que o homem se virasse ligeiramente. Aquela presença ali não era nenhuma surpresa...

—Exijo ser julgado pelos três juízes! – bradou com imponência, empertigando-se todo.

Hades soltou uma risada alta, tomando seu lugar à mesa. Trazia o corpo oculto por uma longa capa negra e um capuz sobre a cabeça que não permitia ver nada em seu semblante, exceto o brilho alaranjado de seus olhos embora fosse impressionantemente alto.

—Radamanthys, Minos e Aiacos têm coisas mais importantes a fazer do que perder tempo com alguém tão pretensioso como você. – retornou a divindade no mesmo tom jocoso que mantivera desde que ali entrara.

—Mas, eu...

—Silêncio! – bradou Hades, tão alto que fez com que as paredes ao redor tremessem. —Você tem ideia da confusão que causou, "senhor mais ardiloso do mundo"?

Hades o encarava em expectativa, agora, não mais com o seu tom zombeteiro, mas com evidente ira em sua voz. Sísifo, que até aquele momento mantivera-se altivo, certo de que encontraria uma forma de sair dali, sentiu-se afundar brevemente na cadeira. Sem os juízes, aquilo só poderia significar uma coisa...

—O grande rei de Corinto irritou Zeus que já não é muito conhecido por sua piedade. Como se não bastasse, enganou a morte e a manteve presa por anos... e por uma coleira, tal qual um cachorro! – Hades que havia iniciado sua fala com indignação, agora inclinava a cabeça para trás rindo deliciado. —Tenho que admitir que isso foi engraçado. Tânatos até hoje fica constrangido quando o chamo de "Peludo"!

Encorajado pela postura mais relaxada de Hades, Sísifo também permitiu que um sorriso divertido lhe passasse pelos lábios ao lembrar-se daquela travessura: havia feito um acordo com o velho Asopo onde, pela informação sobre o paradeiro da filha raptada por Zeus, havia negociado a instalação de uma fonte de água para sua cidade que fora consagrada às Musas. Aquilo deixara Zeus profundamente irritado, tanto a ponto de enviar a morte - Tânatos. Mas Sísifo era esperto: percebendo o quanto aquela figura era odiada por sua própria natureza fez uma jogada de mestre e começou a elogiá-lo dizendo que ficaria ainda mais belo se lhe permitisse colocar-lhe um colar. Encantado com tantos elogios que jamais havia recebido, Tânatos permitiu que Sísifo colocasse o adorno em seu pescoço apenas para constatar com assombro, medo e raiva que o colar, na verdade, tratava-se de uma coleira que o manteve preso por anos. Aquele feito, o de driblar a própria morte, rendeu fama a Sísifo que ficou amplamente conhecido como o "Mestre dos Truques", o ser humano mais ardiloso.

—Você realmente acha isso engraçado, humano? – sibilou Hades, pronunciando a última palavra com evidente desdém.

Sísifo pensou em responder que realmente achara graça de seu feito, mas algo lhe dizia que era melhor permanecer em silêncio. Hades inclinou-se ameaçadoramente sobre a mesa, o alaranjado de seus olhos havia se tornado maior e mais intenso ao passo que as velas ao redor continuavam derretendo em seus formatos e sons assustadores.

—Não contente em irritar Zeus e prender Tânatos, você ainda concedeu aos aos humanos algo reservado somente aos Deuses: a imortalidade! – prosseguiu Hades em seu tom irritado. —Imagine que absurdo uma horda de seres humanos imortais, esses seres ínfimos e sem importância brincando de ser Deus durante todo o tempo em que Tânatos esteve preso! Guerras se sucediam e o que ocorreu? Ninguém morria! Pode imaginar a fúria de Ares ao não poder consumar o resultado das batalhas simplesmente porque não havia a morte? Um caos! Esta é a palavra! Instalou-se um verdadeiro caos!

—E desde quando o senhor do mundo inferior se preocupa ou se solidariza com as dores de outros deuses que o baniram para cá? – Foi a vez de Sísifo destilar seu veneno de forma maldosa.

Seu ego inflado tinha toda a intenção de provocar Hades, mas não esperava pelo que viria a seguir. O deus, mais rápido que um raio, levantou-se de sua cadeira e em fração de segundos, inclinava-se ameaçadoramente sobre Sísifo que agora sentia, mais do que nunca, o cheiro de carne podre e enxofre.

—Seu humano desprezível! – começou Hades de forma ameaçadora, seu hálito de enxofre varrendo a face do prisioneiro. —O Tártaro, meu reino, é o local para onde vão as almas condenadas! Seu sofrimento e sua agonia são o meu alimento e se as pessoas não morrem, não há mais condenados e se não há condenados...não há comida para mim!

Com isso, Hades jogou o capuz para trás, revelando sua face em evidente estado de putrefação, onde podia-se observar músculos, ligamentos e dentes sobre o que antes era sua bochecha direita; uma pele acinzentada cobria o restante do rosto, tão fina que era possível ver os vermes se movendo sob sua superfície em outros pontos. A pele de seus dedos, igualmente acinzentados, descolara-se dos ossos e em alguns, estava apenas pendurada; de seu crânio, tufos do cabelo longo e negro também se desprendiam deixando à mostra alguns pedaços de osso e seus olhos, anteriormente alaranjados, agora eram de um vermelho cor de fogo.

—Você, seu humano insignificante fez À mim, Hades, filho de Cronos, o mais jovem dos titãs, filho de Urano e Gaia, senhor do mundo inferior passar fome!!

A voz da divindade trovejou tão alto que Sísifo sentiu as paredes de rocha negra ao seu redor trepidarem. Até mesmo as estranhas figuras formadas pela cera das velas pareceram congelar-se; seus gritos e murmúrios, emudeceram-se.

—Veja o que me tornei quando os humanos se tornaram imortais! E ainda tem coragem de me pedir um julgamento justo?? Você não passa de um verme, um verme que agora será meu por toda a eternidade!

O aspecto pútrido de Hades que lhe sorria com dentes enegrecidos, o cheiro de carniça e enxofre misturado ao calor abafado daquele lugar estava fazendo com que Sísifo sentisse vontade de vomitar, mas não havia nada em seu estômago que pudesse colocar apara fora. Talvez não houvesse mais nada em suas entranhas.

No dia em que Ares havia conseguido libertar a morte e esta o trouxera para o Tártaro, Sísifo imaginou que seria castigado, mas jamais poderia sonhar em provocar a ira de Hades por tê-lo forçado a uma "dieta". Sua intenção ao enganar Tânato era simplesmente continuar vivo.

Perdido em seus pensamentos, Sísifo não viu em que momento a sala deixou de existir, mas o fato é que agora ambos estavam ao sopé de uma montanha negra e estéril que subia até quase se perder de vista em direção ao céu avermelhado. Um vento quente soprava, agitando-lhe os cabelos e colando alguns fios à sua testa empapada de suor. Hades apontava com seu dedo tétrico para uma imensa pedra de mármore que jazia próximo de onde estavam ao que Sísifo respondeu com um olhar de total incompreensão.

—O quê? Depois de toda a bagunça que criou, você achou realmente que passaria o resto da eternidade ao seu bel prazer? – Soltou uma risada sinistra. —Seu castigo será rolar a pedra até o cume desta montanha...

—Mas ela irá rolar para baixo novamente! – protestou o prisioneiro, vendo a faixa estreita no alto da montanha, onde mal caberia ele em pé, quanto mais uma pedra daquele tamanho provocando mais uma risada medonha de seu algoz.

—Esse é o verdadeiro sentido de inferno para seu povo: realizar um trabalho infrutífero por toda a eternidade. – zombou Hades, realmente divertindo-se com a situação e empurrando-o, ainda que contra a vontade, até a pedra gigantesca cujo branco reluzente contrastava com todo o entorno.

Sísifo o olhou com a mais absoluta indignação e, novamente de forma involuntário, viu suas mãos sendo posicionadas sobre a rocha para começar a sua tarefa infrutífera. Tentou lutar contra, mas a cada vez que resistia, feridas purulentas que queimavam sobre a pele o faziam repensar. Uma vez mais, ouviu a risada maldosa de Hades, acompanhada dos gritos e lamentações que escutou ainda na sala e lhe disse com ironia:

—Bem vindo ao inferno, humano! 



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