Sucessão de Zeus

By viniciusclisboa

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Como seria a sucessão do trono em uma família real de imortais? Nenhum aliado é confiável quando a disputa pe... More

Capítulo 1: ANO 2000

Capítulo 2: Século XXI

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By viniciusclisboa


Luzes intensas brilhavam em meio à escuridão do Oceano Pacífico. A água estava calma, o vento soprava sem afobação, e o luar deixava prateado o horizonte que se distanciava sem que qualquer ilha ou porção de terra ficasse visível. O mar estava por toda parte, e Ártemis não podia tocá-lo, já que à sua família cabia apenas o mundo que estava acima dele - o Céu de Zeus. A pelo menos um quilômetro de altura, ela vigiava de cima os festejos pelo início da produção de petróleo em mais um dos milhares de pontos desertos do oceano. E não partilhava da mesma alegria que os engenheiros.

Sua parcela de inspiração sobre a humanidade atingia principalmente ativistas do meio ambiente, políticos de partidos verdes, grupos de apoio à causa animal, pesquisadores obcecados com teses como o aquecimento global, e, especialmente, mulheres engajadas em cada um desses grupos. Se havia uma delas naquela festa, certamente também estava descontente com os milhões de litros a mais de combustível fóssil que deixariam as profundezas da Terra e chegariam ao continente.

Era uma pena que o restante dos imortais não estivesse muito preocupado com isso, pensava ela. Como ficou definido na Assembleia Milenar de Assuntos Humanos, a prioridade dos deuses era compensar o ateísmo, e, para isso, a solução foi inspirar mais radicalização nas religiões monoteístas. Se haveria menos religiosos, então, os religiosos que sobravam deveriam produzir mais fé. Quanto mais fé, mais poder para Zeus, pois cada oração que se dirigia a um deus no céu emanava sua energia para ele. E quanto mais poder para Zeus, mais néctar para barganhar o apoio dos aliados.

O que eram alguns insetos e plantas perto da distribuição de poder celestial? Ártemis não via horizonte para suas preocupações, e as mãos da arqueira mais precisa do mundo ficavam atadas diante da trama política impenetrável.

Não havia nada a ser feito.

Mesmo que gigantesca, a plataforma de petróleo que ela observava era frágil o suficiente para não durar muito mais que alguns minutos se a Deusa da Caça lançasse sua ira. Sabotá-la seria ainda mais fácil do que destruí-la, e dúzias de ideias passavam por sua mente em questão de instantes quando cogitava essa hipótese. Mas nenhuma delas seria possível. Não enquanto os humanos fossem "eleutéreos".

"Livres para errar", como estava decidido em Assembleia e sacramentado no Pacto Eleutéreo, os homens e mulheres sobre a Terra e o Mar estavam imunes à vontade divina enquanto estivessem vivos. Sorte a deles? Ártemis acreditava que não. Quanto mais livremente as pessoas perdidas vagavam pelo mundo, mais se enrolavam na teia de decisões equivocadas que tomavam. Inspirá-los era uma tarefa complexa e imprevisível com que muitos deuses preferiam não perder tempo, e os poucos que tentavam não pareciam ter muito sucesso -ou intenções nobres.

Um vento súbito e gelado movimentou a seda que vestia Ártemis, em um longo tomara que caia roxo que descia perdendo a cor até chegar branco e esvoaçante na altura de seus pés. Seu penteado curto e crespo, rente à cabeça, permaneceu imóvel, e seu olhar não deixou a plataforma. Não era preciso conferir para saber quem tinha chegado.

- Eu gosto delas - disse uma voz provocativa e acelerada.

Ártemis desprezou e manteve seus lábios grossos bem fechados.

- São inapropriadas, brutas, invasivas, mas muito eficientes. São tudo o que não somos: diretas e objetivas. Não precisam ser belas nem se interessam por parecerem amigáveis. Fazem o que tem que fazer e funcionam muito bem.

Quanto mais palavras ditas, mais não ditas. Essa era a regra número um para conversar com Hermes.

- Quase sempre - corrigiu ela.

- É, quase - e uma risada discreta acompanhou a concessão.

- Eu gosto de silêncio. E não gosto de adjetivos barulhentos. Pode me ajudar? - dispensou sem cerimônia.

- Que mau humor para uma noite de lua clara. Pensei que encontraria você cheia, e não minguante.

Foi preciso tomar ar para se recuperar dessa infâmia.

- Chega, Hermes. Chega. Você já foi melhor com as palavras. Me diz logo o que veio dizer.

- Não vou poder fazer isso. Preciso que você me acompanhe.

- Vocês precisam do meu voto para que dessa vez? É Ares de novo?

- Se Ares pedisse à Assembleia para anexar territórios não teríamos metade das guerras do último milênio - espezinhou Hermes, como quem não pode perder uma chance - O que precisamos dessa vez não é do seu voto. É apenas da sua atenção, para um pronunciamento.

- Um pronunciamento? Quando?

O espanto não se deveu à raridade de um pronunciamento, já que, em uma tirania, é normal que o tirano se pronuncie a todo momento. Só que Zeus não costumava marcar pronunciamentos extraordinários. Ele preferia consumir o tempo dos outros deuses na Assembleia com suas delongas e vaidades.

- Você acha que eu estaria aqui se fosse semana que vem? É agora - respondeu Hermes - Mas é fechado. Apenas para os herdeiros.

- Se é apenas para os herdeiros, deveria ser no singular. Só há um herdeiro.

O mensageiro sorriu com o canto da boca.

-É disso mesmo que se trata. De herança.

Ártemis não conseguiu concluir se deveria esperar algo bom ou ruim. Ao menos teria pouco tempo para tentar adivinhar o que Hermes queria dizer.

***

Os pronunciamentos de Zeus costumavam ser demorados e enérgicos, mas muito solenes. Palavras piegas, frases longas e títulos de nobreza ultrapassados faziam dos discursos uma visita ao museu do poder - e às razões de tanto atraso no Olimpo.

Foi o próprio Zeus que declarou Ártemis "a caçadora" em um desses episódios embaraçosos. O caso se deu em um dia de Assembleia, depois que se encontraram acidentalmente quando ele estava transfigurado em touro no meio da mata por algum motivo que preferiu não explicar, e ninguém perguntou. Naquele momento, ela repetia seu divertimento preferido, a caça, e assim o rei dos deuses concedeu a honraria, esperando que não contasse a ninguém sua estripulia.

Foi ele que encheu Apolo com as qualidades de deus da arte, do esporte, do sol, da democracia, da civilização e de tudo o que se possa imaginar de apoteótico e não conflitante com outros que foi preciso agradar. Afrodite ficou com a beleza, Atena, com a justiça, Deméter, com a fertilidade, Hebe, com a juventude. Aos aliados, toda a glória. Cada nomeação era proposta com um grande discurso inútil para delegar funções que os imortais já cumpriam, seguido de uma votação, quase sempre unânime, em que cada um precisava seguir o rosário de homenagens.

Nessas votações, Hermes, explorado para todo tipo de trabalho subalterno, ganhou a fama de viajante e mensageiro, pois dava recados; de comerciante, já que buscava e pagava as mercadorias do pai; de trapaceiro, porque tinha que inventar formas de atender à vontade de Zeus mesmo quando não era correta; e até de negociador, como tinha resolvido uma série de impasses gerados pelo humor intempestivo do rei. Ali estava ele mais uma vez, conduzindo Ártemis ao Salão Dourado do Olimpo. Poderia agora ser declarado o Deus da Condução? Provavelmente já era isso também.

O versátil caçula de Zeus era curiosamente o mais parecido com o pai. Cabelos negros e pesados ganhavam penteados modernos que ele gostava de mudar e exibir em eventos de alta costura nos mais diversos países, com ternos de corte elegante, gravatas caras e relógios luxuosos. Hermes frequentava o que havia de mais sofisticado no mundo dos humanos e ditava a moda olimpiana copiando sua inventividade. Acompanhava Ártemis com uma camisa branca de mangas dobradas em três quartos, um colete chumbo de botões pretos, que demarcava sua cintura fina, e uma gravata escura - tudo em variações de cinza. Estava radiante e sorria com seus dentes brancos e perfeitos sem que ninguém lhe contasse uma piada. Parecia o cara certo para a servidão real. Menos por seus olhos castanhos amarelados. Grandes, assertivos e pretensiosos, estavam sempre dizendo algo lateral, e escondendo o que era mais importante.

Ártemis era indiferente a isso, pois acreditava que só se intrigava com o poder quem por algum motivo o cobiçava. Talvez fosse a mais despolitizada entre os imortais, principalmente por não se sentir afetada ou ameaçada por nenhuma das decisões tomadas ou posições defendidas. Era a filha mais velha de Zeus, junto com Apolo, e gozava desse posto aristocrático sem ter o peso de estar na linha de sucessão. Pouca coisa do que Hermes tinha a dizer lhe interessava. Mas pouca coisa era diferente de nada. Principalmente depois de ele ter falado em herança.

Quando os pés dos dois tocaram o chão de mármore rosa da antessala do trono, onde chegaram apenas com a clareza de seus pensamentos, Apolo e Atena os esperavam impacientes. As ordens que Hermes tinha eram de que só poderiam entrar juntos.

Enfim, estavam os quatro deuses que afiançavam a Zeus uma tirania democrática, traduzindo sua vontade em votos que faziam de sua família a mais numerosa na Assembleia. Eloquentes e cheios de nobreza, Hermes, Atena e Apolo davam ares sensatos e benevolentes às vontades de Zeus e votavam com Ártemis em prol delas. Eram para o Rei um importante artifício de dissuasão política.

Uma claraboia de cristal retangular iluminava o centro da sala que terminava em uma pesada porta dourada e ornamentada com bronze, ao lado da qual dois seres de forma masculina, cabelos longos e brancos se achavam no direito de bloquear a passagem dos imortais. Eram dois dos mais importantes olimpianos, Havek e Camathus, e foram forjados nos raios de Zeus para serem sua tropa de confiança naquele palácio onde os sussurros carregavam punhais. Ao todo, cem homens e mulheres inférteis foram criados e aprimorados para essa função, e, milênios depois, noventa e sete deles continuavam vivos. Zeus vangloriava-se de que seus subordinados poderiam resgatar Perséfone do submundo, deter as tropas de Deimos e Phobos e vencer toda sorte de monstros nascidos de Posseidom. E só não faziam isso porque não havia dado a ordem. Ao lado de outras armas, faziam parte de seu poderio militar.

-Uma demora considerável para quem pode sumir aqui e aparecer ali - disse Atena com sua voz grave e de tom julgador. 

 - Você não encontra uma caçadora com facilidade quando ela não quer ser encontrada - rebateu Hermes sem constrangimentos.

O mensageiro não era famoso por seu porte físico, mas ficava especialmente pequeno perto daquele trio. Ártemis e Atena tinham corpos femininos de estatura alta, ombros definidos e mãos pesadas. Eram como amazonas, uma de pele negra e a outra acobreada. Os cabelos curtos de Ártemis garantiam praticidade e agilidade. Os de Atena eram ondulados na altura dos ombros, em um tom escuro e de brilho pomposo.

Já Apolo era mais que um cavaleiro, era um gladiador. Entre os quatro, era o mais alto, tinha cintura fina e costas largas. A visão de seu rosto quadrado sobre o corpo atlético era difícil de esquecer. Os quatro juntos, com as roupas elegantes e a aparência impecável, poderiam ofuscar qualquer tapete vermelho do cinema. Eram os filhos mais leais a Zeus e gozavam de prestígio por isso.

-É uma pena que se esconda, porque cada dia reaparece mais bonita - Apolo galanteou sua irmã gêmea como costumava fazer nas raras vezes em que os dois se encontravam.

Atena buscou ler a expressão de desdém que Ártemis fez questão de exibir. Dificilmente qualquer outro ser mortal ou imortal dirigiria a Apolo o mesmo desinteresse.

- Não vamos nos atrasar mais - Hermes andou até a porta - Temos muito o que conversar.

Cada uma de suas mãos tocou um dos lados do portal e o empurrou. O peso fez com que abrisse lentamente, e um ranger quase cerimonial anunciou a chegada na sala mais importante da Terra.

Quando os quatro imortais entraram naquele salão circular onde vitrais de batalhas épicas e pilares de mármore desenhado em ouro sustentavam a abóbada no teto, com afrescos da condenação de Cronos encenada da deglutição dos filhos à prisão do pai, eles se surpreenderam com a quantidade de convidados para o pronunciamento reservado.

Uma multidão de mais de cinquenta olimpianos estava na sala, com suas lanças inclinadas para frente em reverência aos imortais que entravam. De pé, no centro do círculo, Hera os esperava com um pedaço de papel nas mãos. Seu vestido verde escuro e acetinado contrastava com a expressão abalada e os olhos fundos em seu rosto, que se não fosse tão belo, estaria apagado pelo esplendor de suas jóias de ouro e esmeraldas.

Ártemis percebeu o clima trágico e parou seus passos. Atena continuou se aproximando para olhar mais de perto, e Apolo tentou parecer solidário com sua mãe, mudando sua expressão para alguma de condescendência. Era óbvio que se tratava de mais uma crise conjugal.

- O que aconteceu, mãe? Por que está assim?

A rainha do Olimpo preferiu contar da forma mais direta que podia e com o tato que o autor da mensagem havia desejado. Hera levantou o papel para lê-lo novamente, como se não tivesse decorado as palavras, apertou os lábios uma vez e foi breve.

- "Devorem-se pelo meu trono" - Hera parou e sorriu para os filhos - Ele só se esqueceu de assinar: "Com amor, Zeus".

Faltaram palavras para a poesia de Apolo e para a filosofia de Atena.

- Onde ele deixou isso? - sobrou para Ártemis seguir o rastro.

- Onde mais me humilharia? Na nossa cama, ao meu lado. Hoje de manhã.

Apolo quase achou graça ao ver a que ponto o absurdo havia chegado. Não era a primeira ruptura entre Zeus e Hera, e ele não conseguiu pensar que era algo além de mais uma.

- Ele vai voltar, mãe. Não é a primeira vez que ele escapa do Olimpo. É a essência dele - Apolo foi minimizando e se aproximando para abraçar Hera.

- Não dessa vez. Ele parou de alimentar a barreira - disse ela, virando de costas e andando no sentido contrário ao da porta de entrada.

A expressão de espanto dos três aumentou. A barreira olímpica impedia que o mar se elevasse para além dos domínios de Posseidom e mantinha os mortos nas catacumbas de Hades. O poder de Zeus a alimentava constantemente e rivalizava com a energia dos irmãos, estabelecendo os limites de cada um na Terra.

- Se a barreira ainda está de pé, é com os meus poderes. Seu pai parece não se importar mais com as consequências de nada.

Hera andava vagarosamente, ainda segurando o papel, com as duas mãos. Não o amassava ou dobrava. Apenas guardava.

- E assim a barreira vai continuar a partir de agora. Pelo menos até que Posseidom e Deméter sejam avisados - Hera continuava a andar para longe dos filhos - E é por isso que vocês estão aqui.

A rainha subiu os três degraus que separavam o trono do patamar ordinário do salão. De cima, parou e voltou a olhar para os quatro.

- O que eu quero de vocês é unidade para manter a nossa família nesse trono. Tudo o que vivemos e construímos em todos esses anos de paz foi obra nossa, liderada por nós, e não podemos abrir mão disso. Não podemos deixar que nos tirem desse trono. Mas a única forma de fazer isso agora é ocupá-lo eu mesma.

E se sentou, com uma das mãos no colo e a outra no braço da cadeira. As pernas se cruzaram e a coluna se manteve ereta, erguendo a coroa em sua cabeça na direção do céu.

Se havia qualquer dúvida em Atena, Ártemis e Apolo de que aquele não seria um pronunciamento qualquer, agora não restava mais. Assistiam ao dia mais importante dos últimos milênios, sem sombra de dúvida.

- Foi por isso que nos chamou juntos? - Atena se antecipou. - Por que sabe que não vamos concordar com essa ilegalidade?

- Não há lei que trate do que aconteceu hoje - Hera respondeu firme.

- Foi uma decisão de Zeus, chancelada em Assembleia, que determinou que Apolo seria o sucessor. E estava sendo preparado para isso - contra argumentou em seu tom de juíza.

- E estou preparado para isso - Apolo se colocou.

- Apolo seria o sucessor quando Zeus o nomeasse. Mas ele preferiu fugir sem passar seus raios a ninguém - Hermes interveio.

- "Devorem-se pelo meu trono" - Hera repetiu, em tom trágico.

- Hera, o que você está iniciando vai derrubar a legitimidade do Olimpo. Se não seguirmos o protocolo que passamos séculos discutindo, vamos abrir brechas para que os outros nos questionem. Nyx foi presa quando tentou trair meu pai, Epimeteu foi morto quando quis sentar nesse trono, e Ares foi banido quando tentou tomar o lugar de Apolo.

- Mas agora estou aqui.

Ares saiu de trás dos olimpianos com o peito estufado dentro de um terno totalmente negro. Estava se divertindo muito com a chance de afrontar Apolo e Atena e parou no lado esquerdo de sua mãe, com a mão em seu ombro. Hera segurou sua mão e sorriu.

- Como ousam fazer isso? - Apolo questionou levantando a voz e os ombros - Ares foi banido desta Assembleia. Ele tentou me matar, assassinou milhões de pessoas, foi humilhado por mim e escorraçado daqui!

- Não estamos em assembleia. E quem o baniu não está mais aqui - Hera rebateu.

- Se você tivesse me escorraçado, não teria que ter pedido à Assembleia para me expulsar. Você sabe que não terminaria assim.

- Então, vamos ver isso agora!

Apolo apontou a mão direita para Ares e uma luminosidade fervente se acendeu entre seus dedos e na palma de sua mão. Hermes se colocou na frente do irmão e segurou em seu braço, pedindo para que o baixasse.

- Nós precisamos de Ares, Apolo - Hermes começou a falar didaticamente enquanto ia conduzindo para baixo o braço musculoso do irmão - As informações que eu tenho são de que Posseidom preferiria lançar Eolo, como propôs na época em que discutimos sua posição de sucessor, e Deméter está com ele. Se Hera questionar que não se trata de uma sucessão como a planejada e nos unirmos em torno dessa ideia, temos como sustentá-la no trono. Temos como nos sustentar. Se nomearmos você, Ares poderia apoiar Posseidom e Eolo, e há grandes chances de Hefesto fazer isso também. Seria uma guerra sangrenta.

- E, em vez disso, teremos um golpe familiar? - Atena discordou. - Isso não vai prosperar. Posseidom vai ficar tão revoltado de ser passado para trás que pode se unir a Hades. E ele terá razão se fizer isso. Serão Posseidom, Hades e Deméter. E vocês acham que Hefesto e Afrodite vão ficar ao lado de Hera? Isso é loucura! Apolo tem muito mais chances que você de ser aceito!

- Estamos trabalhando em todas as frentes - disse Hera. - Éris convenceu Hécate a nos apoiar. Hebe já jurou lealdade a mim. E temos boas propostas a fazer para Deméter e Dionísio. Pluto e Íris também não serão difíceis de convencer, já que não vivem longe do luxo desse palácio e jamais sobreviveriam a uma guerra.

- E com vocês três teríamos a certeza de que não haverá peso suficiente em um nome alternativo - Hermes completou.

- E vocês planejaram tudo isso em uma manhã? - Atena insinuou.

- Parece difícil para você? - Hermes atacou.

Sem punhos cerrados ou músculos contraídos, Hermes e Atena se enfrentavam.

- O que é isso? - Ártemis gritou, invadindo o ringue onde pareciam se desenhar duas equipes de lutadores, e repetiu - Mas o que é isso? Já estamos nos devorando pelo trono? A Terra está morrendo e não adianta disputarmos esse maldito palácio, porque não vai sobrar mais nada para governar. Não somos a maioria? Vamos chamar a Assembleia, apresentar a situação e confiar na articulação de alianças que sempre sustentou nosso pai no poder. Se vai ser Hera ou se vai ser Apolo, é irrelevante. O que importa é que seja alguém que pare de fingir que não estamos caminhando para o fim do mundo.

Ares não conteve a risada, e Hermes também olhou para a irmã como se fosse uma lunática.

- Se chamarmos a Assembleia divididos, estamos condenados - Hera respondeu e cruzou as pernas. - Crianças, é muito nobre defender as leis e a justiça, mas elas só existem quando por trás delas está uma força intimidadora. Só a força pode garantir a lei. E Apolo, sejamos francos, sem seu pai para garanti-lo, você não é capaz de intimidar Hades e Posseidom. Eu sinto dizer isso, mas se romperem comigo, vocês três serão o menor grupo que vai brigar pelo trono, e o único que não conta com o apoio de nenhum deus antigo. Quem vai se juntar a vocês? Eros? Pã? Sem Zeus, o Olimpo só tem a mim.

Apolo olhou para Atena à espera de que ela dissesse alguma coisa, mas só houve silêncio. Ártemis mais uma vez viu seus alertas sobre o fim do mundo ignorados diante das discussões por poder.

- Podemos tentar um meio termo - recuou Atena. - Podemos apoiá-la em um primeiro momento, como transição, mas com o compromisso de que os planos de sucessão serão mantidos. Você governa para estabilizar as coisas e, quando tudo estiver em ordem, passa a coroa para Apolo. Acho que dessa forma é justo.

Apolo tinha a testa franzida quando começou a ouvir a sugestão, mas foi assentindo com a cabeça conforme o argumento evoluiu até lançar um olhar firme na direção de Hera como quem oferece uma trégua. No fundo, no entanto, engolia a humilhação de concordar sobre sua fraqueza.

- Vocês não estão em posi...

- Não, Hermes! - Hera cortou - Deixe que eu respondo.

Hera se levantou do trono para poder olhá-los ainda mais do alto. Suas joias cintilavam e seu rosto tinha pequenos espasmos que poderiam convocar um terremoto. Mesmo assim, ela começou bem devagar.

- Apolo e Atena, o que são vocês dois? Com todas as suas inspirações artísticas, atléticas e filosóficas, o que vocês dois sabem sobre o poder e sobre as disputas de forças que construíram esse mundo em que agora vocês podem dizer o que é justo e o que é belo? Vocês não são nada sem a tirania de Zeus! Nada! Vocês são só uma elite parasita que não sobreviveria sem a brutalidade deste trono! Por que quando uma guerra de verdade surge, e vocês nunca viram uma, vou dizer a vocês o que é justo e belo: É o que mata seu inimigo e o que poupa seus aliados. Eu estava lá. Eu lutei contra Cronos. Eu vi minha irmã, minha melhor amiga, dar a vida para salvar Zeus, e eu o ajudei a vencer Cronos. Vocês sabem por que Zeus se tornou o imperador deste mundo? Por que ele deu o golpe final? NÃO!

Hera chegou nessa parte gritando com tanta autoridade que era impossível interrompê-la. Percebendo que sua última exclamação ecoou nos vitrais e estremeceu os pilares da sala do trono, ela voltou ao tom inicial, com suavidade e altivez.

- Eu dei o golpe final. Eu matei Cronos - disse separando bem as palavras. - E isso não está pintando aqui neste teto, isso não está nas honrarias, nem nas histórias nem nas canções. Sabem por que não? Por que eu amei Zeus? Não! Claro que não! Porque eu inventei Zeus! Eu viabilizei que Zeus governasse o mundo! Posseidom e Hades eram espertos demais para serem manobrados em sua sanha por poder. Zeus, não. Ele era o mais poderoso, e o mais tolo. Eu me casei com Zeus porque sabia o quanto ele gostava mais do poder do que da política. E se alguém é responsável por esse império que é o Olimpo, por essas alianças e por existir essa maldita Assembleia, esse alguém sou eu! É por minha causa que Posseidom nos apoia, e Deméter se mantém ao nosso lado mesmo depois de tudo. Vocês acham que Zeus conseguiria aliados? Ele faria mais guerras e provavelmente terminaria derrubado por uma rebelião, como foi Cronos. Vocês conhecem o pai de vocês. Sabem bem o que estou falando. Mas eu jamais poderia ter feito tudo isso em meu nome, porque Zeus, Posseidom e Hades jamais respeitariam que uma deusa governassse o mundo deles. Por isso, tive que me rebaixar a ser a esposa de Zeus. E eles ainda não aceitam isso, não é verdade, Ártemis? Por que Apolo é sucessor de Zeus, se vocês são gêmeos? Por que ele e não você?

Ártemis já tinha se perguntado sobre isso inúmeras vezes e sabia que a resposta era mesmo essa que Hera lhe dizia com todas as letras. O trono não era algo que ela queria, mas com certeza era algo a que tinha direito. E o querer talvez não seja a melhor medida nesse caso. Em toda a sua vida, Zeus a estimulou a buscar a natureza, a caminhar pela Terra e a viver em liberdade. Hábitos sedutores perante a opção de cumprir protocolos da política e ouvir as mais indecorosas propostas em negociatas. Mas por que Apolo, ainda criança, sentou-se pela primeira vez no trono de seu pai? Por que a liberdade não servia para ele? O desinteresse da deusa da caça pela diplomacia, sem dúvida, não foi uma semente trazida pelo vento.

Hera ainda não havia terminado.

- Então, eu vou dizer a vocês o que é justo: este trono sempre me pertenceu, ninguém tem mais direito a ele do que eu, e vou ocupá-lo de agora até o fim dos tempos. E se vocês acharem que me devem alguma gratidão, ajoelhem diante de mim, como fizeram seus irmãos. Ajoelhem, ou serão os primeiros a conhecer as consequências da desobediência à nova coroa.

Quando Hera terminou sua oferta, Ares se ajoelhou e beijou sua mão esquerda, enquanto Hermes, que subia os degraus durante sua fala, fez o mesmo com a direita.

Ártemis segurou o vestido para afastá-lo das pernas e também se ajoelhou. Depois de baixar a cabeça para sua mãe, ela a levantou e olhou nos olhos de Apolo.

- Tudo que sempre quis foi governar ao seu lado. Eu te amo - disse Apolo, decepcionado.

- E eu nunca quis pertencer a você. Eu nunca quis ser a sua Hera - respondeu Ártemis.

Atena não dizia nada e isso denunciava sua impotência. Todos os cenários que ela cercou com regras e protocolos com suas propostas na Assembleia foram surpreendidos pelo improvável desaparecimento de Zeus. Só lhe restava concordar ou...

- A única coisa que sabemos por enquanto é que Zeus não está no trono! Todo o resto quem contou foi você, que agora distorce a lei para assumir o poder. Eu não acredito nesse bilhete, não acredito nos seus cenários e não acredito nem nesse seu desabafo mesquinho. Abriremos uma Assembleia para definir uma equipe de investigação sobre o que você está dizendo e tenho certeza de que vamos descobrir muito mais coisas. E não sente no trono antes de ter a coroa, porque a sucessão vai seguir a lei com a aprovação da Assembleia! Apolo é o único rei legítimo!

- Como ousa? - Hermes levantou-se.

- Vocês dois vão entender o que é legitimidade - Hera pareceu ainda mais furiosa.

Apolo colocou-se ao lado de Atena e mais uma vez suas mãos se iluminaram em uma temperatura solar, mas elas foram ofuscadas quando Hera ergueu o braço direito e, em sua mão, surgiu o Trovão Olímpico com um clarão que se veria do espaço. A arma invencível, de poder inigualável, havia sido deixada para trás por seu dono. Diante dela, civilizações e deuses deveriam se ajoelhar ou desaparecer.

- Não! Isso, não! - Ártemis se levantou.

- Isso vai custar muito caro a você, Hera. Será o seu fim - Atena disse e encontrou seu olhar com o de Apolo.

- Não. Será o de vocês.

Como Ártemis, Hermes parecia surpreso com a escalada da discussão, mas não interferiu. Em vez disso, olhou para Atena com interesse em como sua maior adversária nas palavras faria para se livrar de uma ameaça com a qual não se podia dialogar. Ares, por outro lado, tinha fogo em seus olhos e só lamentava não estar ele mesmo segurando o trovão.

Uma luz que cegou até mesmo os deuses explodiu no Salão Dourado pela segunda vez na história. Apenas Epimeteu havia conhecido a mais grave punição do Olimpo, e não houve testemunhas para a execução. As cores e formas demoraram a ser novamente reconhecíveis, e Apolo e Atena não haviam deixado rastros de sua existência. As primeiras vítimas dos novos tempos eram a arte e a justiça.

Visivelmente cansada, Hera baixou o braço. Seus olhos novamente voltaram à desolação, e ela deu as costas para os filhos que restaram, dirigindo a Hermes um último olhar. Andou ainda mais devagar do que antes, como se o verdadeiro movimento estivesse em seus pensamentos.

Ártemis levou as mãos ao rosto, sem acreditar no que havia testemunhado. Ares e Hermes trocaram olhares que também foram de perplexidade. O mensageiro achou melhor ir atrás de sua mãe.

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