Filosofia para Corajosos- Lui...

Per Siquers

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O objetivo deste livro é ajudar o leitor a pensar com a sua própria cabeça. Para tal, o filósofo e escritor L... Més

APRESENTAÇÃO
PARTE I
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
PARTE II
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
PARTE III
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30

CAPÍTULO 24

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Per Siquers


O narcisismo

O conceito psicanalítico de narcisismo é largamente conhecido.

Usando o mito grego de Narciso (o cara que se encanta com a própria

imagem e pula na água em busca dela, se afogando), Freud descreve o

que poderíamos chamar numa língua de mortais "o amor-próprio

constitutivo no Eu". Freud diz que existem dois tipos de narcisismo.

Um primário, normal, pelo qual todo mundo passa (a tal da célula

narcísica), é aquele em que o bebê se encontra em estado

indiferenciado – ele, a mãe e o mundo são a mesma coisa, cheia de

prazeres e desprazeres. Em seguida, existe o secundário ou

patológico. Esse é que tem interessado àqueles que estudam o

comportamento contemporâneo.

O narcisismo patológico é aquele que caracteriza as

pessoas que tiveram má experiência de narcisismo primário (a mãe e

o mundo a sua volta não eram legais) e, portanto, quando se rompe

essa célula narcísica, ele sai com baixa reserva de libido narcísica,

que é aquela libido (energia psíquica positiva) que se constitui

quando o bebê achava que tudo era ele e ele era tudo, numa espécie de

êxtase místico selvagem. Freud chega mesmo a usar a expressão (que

não era dele) "sentimento oceânico", para descrever o sentimento

dos místicos, dizendo que esse sentimento não passava de breve

retorno ao sentimento gostoso da célula narcísica bem-sucedida.

Uma pessoa narcísica é uma pessoa com baixíssima

autoestima. Sim, vou usar narcisismo como sinônimo de autoestima

para facilitar uma primeira e essencial compreensão do tema.

Ninguém tem uma autoestima plena (as tais feridas narcísicas). O

narcísico tem menos ainda e é um miserável afetivo. O narcísico é

aquele que, quando leva um fora, desmonta mais que o normal. É o

chato de quem ninguém gosta porque reclama que ninguém gosta

dele o tempo todo.

Mas tem uma coisa mais importante na personalidade

narcísica. Ele é incapaz de amar ou investir afetivamente no mundo;

ele precisa que os outros invistam nele o tempo todo e é uma pessoa

cansativa. A generosidade e a gratidão inexistem numa personalidade

narcísica. Incapacidade para o vínculo afetivo abundante é a marca de

uma cultura narcísica, típica do mundo contemporâneo. E será aí que

surgirá o narcisismo como categoria de análise do comportamento

contemporâneo. A cultura do narcisismo, título da obra do historiador

norte-americano Christopher Lasch, de 1979, inaugurou essa análise.

Mais recentemente, as obras de psicólogos como Jean M. Twenge e

W. Keith Campbell (além de outras referências) retomam a categoria,

aprofundando a tragédia de uma cultura ingrata e arrogante como a

narcísica.

Uma cultura do narcisismo é marcada pela atomização

afetiva e pela negação contínua dela – como todo sintoma

psicanalítico, a cultura do narcisismo investe em afetos sociais sem

ônus cotidiano, como nada de filhos, mas adoro guaranis kaiowás!

Incapacidade de exercer funções de responsabilidade

direta por outros é típico do narcísico. Ao lado disso (mais um

exemplo do marketing de comportamento do qual falamos antes),

essa cultura precisa negar essa miséria afetiva, e nada melhor do que

defender causas como economia solidária, coletivos artísticos,

capitalismo social, alfaces e aborígenes. A cultura do narcisismo

acaba por se constituir numa forma de contrato social com base na

negação da solidão e insegurança afetiva que marca todo miserável

em autoestima.

Lasch já "prevê", em 1979, a dependência para com o

imaginário publicitário, o culto à celebridade (e ele nem conheceu as

que estão no Facebook!), a infertilidade feminina galopante, a

incapacidade de homens e mulheres se amarem e se entenderem sem

guerra (termo que ele mesmo utiliza), ainda que os especialistas na

miséria do amor heterossexual chamem isso de questão de gênero, a

baixa realização profissional por causa de um excessivo arrivismo

financeiro, a instabilidade nos vínculos, ainda que os picaretas

chamem isso de flexibilidade e espontaneidade. Enfim, Lasch percebe

que o capitalismo tardio e sua tendência a esfarelar tudo o que não

seja produtividade e sucesso nos levariam à disfunção narcísica

avassaladora.

Twenge e Campbell veem uma cultura do narcisismo já no

século XXI iniciado. Expressões como generation me ou living in the

age of entitlement (geração eu, ou vivendo numa era dos direitos),

que também são títulos dos livros da pesquisadora Jean Twenge,

descrevem esse nascisismo. Nesse cenário, os narcisistas, de alguma

forma, já "tomaram o poder". As escolas no final do século XX

iniciaram sua educação para o narcisismo (lembre-se do que falei

antes sobre a educação saber para onde ir), "ensinando" as crianças

que elas eram lindas em si mesmas e que seria necessário para o

sucesso que fossem elas mesmas. Grande bobagem, não? Qualquer

pessoa menos idiota que o normal sabe que ser eu mesma não é uma

coisa óbvia no dia a dia e que se desfaz no primeiro momento em que

nossas teorias sobre nós mesmos e os outros se chocam com a

realidade dos fatos. Para um narcisista, é essencial manter o ônus dos

vínculos em baixa; do contrário ele sofrerá mais que o normal. Os

pais, por sua vez, aderiram ao projeto de braços abertos, tendo

poucos filhos, ou nenhum, e amando golden retrievers no lugar de

filhos, dizendo para eles (filhos humanos ou caninos) que eles são

mais inteligentes que os outros, e que, no caso dos filhos humanos,

já são conscientes do problema da sustentabilidade desde o berço. O

governo, que não podia faltar, tornará lei o amor aos filhos, punindo

pais que digam "não" como produtores de baixa autoestima.

O cerco se fecha, e nossos autores dirão que uma cura

possível seria a experiência da gratidão. Mas gratidão é inviável num

contrato social em que o direito a tudo (o tal do entitlement) é a base

do cotidiano, porque se eu tenho direito a tudo, tudo que recebo é

obrigação daquele que me dá; logo, nunca experimento a ideia de que

recebo algo de alguém que seja fruto da graça do mundo.

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