Quero ser livre quando penso: filosofia em primeira pessoa como liberdade de
pensamento e ação
O que vem a ser fazer filosofia em sua própria língua ou em primeira
pessoa? Essa é uma ideia do grande filósofo alemão Friedrich
Nietzsche, que viveu no século XIX. Nietzsche era um filósofo
romântico, e para entender o que é fazer filosofia em sua própria
língua é necessário entender o que foi o Romantismo e como esse
Romantismo chega ao pensamento de Nietzsche, e a sua proposta de
fazer filosofia em sua própria língua, em vez de fazê-la na língua dos
outros.
Vejamos então, para começar, o que é fazer filosofia na
língua dos outros – comecemos pelo negativo para depois descobrir
o que é o positivo nesse caso. Aqui, língua dos outros não significa
língua estrangeira; é mais sofisticado do que isso. Antes de falar
sobre o que é a língua dos outros, lembremos do sentimento que
move Nietzsche quando ele retorna ao seu trabalho sobre o
nascimento da tragédia grega e fala que naquela época, quando
escreveu esse trabalho, ainda não era capaz de falar em sua própria
língua e, então, foi obrigado a falar na língua dos outros. Nietzsche
trata, aqui, da capacidade de falar das coisas a partir de si mesmo e da
coragem que isso demanda. O mais fácil é passar a vida falando na
língua dos outros. No caso específico de Nietzsche, falar na língua
dos outros era dizer o comum, o conhecido sobre a origem da
literatura trágica. Fazer "mera" história da literatura trágica grega (é
fazer o que se faz até hoje, quase sempre, na vida acadêmica, por isso
ela é quase irrelevante). Falar na sua própria língua, para Nietzsche,
era assumir sua filosofia trágica, era se reconhecer como um filósofo
trágico grego em plena Alemanha do século XIX. Era reconhecer,
como os trágicos gregos, que a vida não tem nenhum sentido maior
além de enfrentar o conflito que ela é, e, quem sabe, ser lembrado
pela coragem e disposição a se elevar acima do banal. E a partir daí
falar do mundo e para o mundo. Isso é filosofar com o martelo, como
dizia nosso romântico.
Muitas vezes, em filosofia, assumir a própria língua é se
reconhecer numa determinada concepção de mundo (no caso de
Nietzsche, e do meu, na concepção trágica grega), e assumir seu lugar
particular nela. Não se trata de reinventar a roda, mas dizer
livremente o que se quer dizer para seus semelhantes acerca do
mundo, sempre a partir da tradição de pensamento à qual um
pensador se filia. E para fazer isso é essencial que se tenha algum
repertório filosófico. E coragem para falar em primeira pessoa.
Quem nunca leu nada não tem opinião sólida sobre nada, apenas
achismo, uma opinião vazia, como dizia Platão, quando fazia a
diferença entre ter opinião (doxa) e conhecer algo (episteme).
Conhecer demanda trabalho, conversar com outras pessoas e ler
alguns livros. Na maioria dos casos, conversar com mortos. Uma
opinião vazia, qualquer bêbado tem.
Falar a língua dos outros faz parte de um sentimento mais
amplo, que é, de certa forma, viver uma vida que não é a sua. Muitas
vezes temos a sensação de que estamos vivendo a vida dos outros e
não a nossa. Essa sensação aparece quando sentimos que fazemos o
que os outros querem e não o que nós queremos. Esses "outros"
podem ser o que chamamos de sociedade, pais, família, marido ou
mulher, filhos, o mercado, o Estado, "Deus", o mundo. Pouco
importa aqui se é o mundo ou a sociedade esse outro; o que importa é
a sensação de que não estamos fazendo o que verdadeiramente
queremos. E por que não conseguimos fazer o que queremos?
Por mil razões, entre elas porque nunca sabemos ao certo
o que queremos. E quem disser que sabe, o diz porque é mentiroso,
imaturo ou ignorante. Talvez porque não exista de fato esse "eu
verdadeiro" que quer fazer o que ele quer verdadeiramente fazer. Não
vou entrar aqui em questões do tipo "esse eu é meu cérebro ou minha
alma imortal ou o resultado de herança biológica e social em
interação?". Ou "sou uma construção social?". Não porque essas
questões não importem; elas importam, mas porque não é isso que
quero discutir agora. Enfim, exista ou não esse eu verdadeiro, o
sentimento de falsidade consigo mesmo, ou de fazer o que os outros
querem que façamos, é a mais pura realidade contemporânea, e fazer
filosofia em língua própria passa por ser capaz de romper, de certa
forma, com essa sensação, que muitas vezes se apresenta à
consciência e ao afeto de quem a tem, como uma espécie de
escravidão. A frase que vem à nossa cabeça é "sou um escravo do
mundo e não sou livre". A pergunta é: posso escapar disso? Acho que
em alguma medida sim. Vamos ver.
Mas antes de verificar essa sensação, que me parece
verdadeira, independentemente de ser possível de fato ou não dizer
de onde ela vem, existem outros motivos para vivermos uma vida
que não sentimos que seja a nossa. Um desses motivos para não
conseguirmos viver a nossa própria vida pode ser mais prosaico e
banal: não termos grana e sermos obrigados a ser motoboy, e
pronto. Ou trabalhar em telemarketing. Está na moda gente bonitinha
falar que os mais jovens estão mudando seus valores para com o
trabalho. Bobagem: jovens com grana podem, ainda bem, escolher o
que fazem. É só isso. E como tudo hoje vira um statement (uma
afirmação "de valor"), fica bonitinho na fita posar de "nova
consciência" na relação com o trabalho. Não existe nova consciência
com o trabalho; existe gente que pode escolher o que faz porque tem
grana, e existem profissionais que pregam em empresas (e ganham
uma puta grana com isso) que há, sim, uma nova consciência para
fazer os coitados esmagados pelo cotidiano corporativo acreditarem
que conseguirão um dia escolher o próprio trabalho – dificilmente
conseguirão. Esses gurus corporativos são uns mercadores de
esperança barata.
Vale dizer, você pode ser uma pessoa supercorajosa e
mandar tudo para aquele lugar e fazer o que quer, mas é quase certo
que o estômago vai falar mais alto, na maioria das pessoas normais.
Às vezes, ser normal é ser banal. Mas, se você tiver grana, pode
vencer mais facilmente essa escravidão ao estômago.
Voltemos à verdade da sensação de que vivemos uma vida
que não é a nossa. Vejamos essa sensação num sentido mais profundo
do que apenas a questão da grana. Para fazermos isso, teremos de
enfrentar a questão do Romantismo, para além da ideia simplista de
que Romantismo significa somente amor romântico.
O Romantismo foi um movimento literário, filosófico e
religioso que nasceu na região mais tarde chamada Alemanha, em
meados do século XVIII. Esse movimento, apesar de estar associado
no imaginário das pessoas à ideia de amor entre um homem e uma
mulher, e aos sofrimentos decorrentes desse amor (como no
romance de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther), foi muito mais
que isso. Para entendermos o que o Nietzsche tinha na cabeça quando
falou sobre a importância de fazer filosofia em primeira pessoa, é
necessário sabermos o que foi o Romantismo de fato, porque a
afirmação de fazer filosofia em primeira pessoa é uma afirmação
romântica. É o que veremos a seguir.