Filosofia para Corajosos- Lui...

By Siquers

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O objetivo deste livro é ajudar o leitor a pensar com a sua própria cabeça. Para tal, o filósofo e escritor L... More

APRESENTAÇÃO
PARTE I
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 4
PARTE II
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
PARTE III
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30

CAPÍTULO 3

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By Siquers


Quero ser livre quando penso: filosofia em primeira pessoa como liberdade de

pensamento e ação

O que vem a ser fazer filosofia em sua própria língua ou em primeira

pessoa? Essa é uma ideia do grande filósofo alemão Friedrich

Nietzsche, que viveu no século XIX. Nietzsche era um filósofo

romântico, e para entender o que é fazer filosofia em sua própria

língua é necessário entender o que foi o Romantismo e como esse

Romantismo chega ao pensamento de Nietzsche, e a sua proposta de

fazer filosofia em sua própria língua, em vez de fazê-la na língua dos

outros.

Vejamos então, para começar, o que é fazer filosofia na

língua dos outros – comecemos pelo negativo para depois descobrir

o que é o positivo nesse caso. Aqui, língua dos outros não significa

língua estrangeira; é mais sofisticado do que isso. Antes de falar

sobre o que é a língua dos outros, lembremos do sentimento que

move Nietzsche quando ele retorna ao seu trabalho sobre o

nascimento da tragédia grega e fala que naquela época, quando

escreveu esse trabalho, ainda não era capaz de falar em sua própria

língua e, então, foi obrigado a falar na língua dos outros. Nietzsche

trata, aqui, da capacidade de falar das coisas a partir de si mesmo e da

coragem que isso demanda. O mais fácil é passar a vida falando na

língua dos outros. No caso específico de Nietzsche, falar na língua

dos outros era dizer o comum, o conhecido sobre a origem da

literatura trágica. Fazer "mera" história da literatura trágica grega (é

fazer o que se faz até hoje, quase sempre, na vida acadêmica, por isso

ela é quase irrelevante). Falar na sua própria língua, para Nietzsche,

era assumir sua filosofia trágica, era se reconhecer como um filósofo

trágico grego em plena Alemanha do século XIX. Era reconhecer,

como os trágicos gregos, que a vida não tem nenhum sentido maior

além de enfrentar o conflito que ela é, e, quem sabe, ser lembrado

pela coragem e disposição a se elevar acima do banal. E a partir daí

falar do mundo e para o mundo. Isso é filosofar com o martelo, como

dizia nosso romântico.

Muitas vezes, em filosofia, assumir a própria língua é se

reconhecer numa determinada concepção de mundo (no caso de

Nietzsche, e do meu, na concepção trágica grega), e assumir seu lugar

particular nela. Não se trata de reinventar a roda, mas dizer

livremente o que se quer dizer para seus semelhantes acerca do

mundo, sempre a partir da tradição de pensamento à qual um

pensador se filia. E para fazer isso é essencial que se tenha algum

repertório filosófico. E coragem para falar em primeira pessoa.

Quem nunca leu nada não tem opinião sólida sobre nada, apenas

achismo, uma opinião vazia, como dizia Platão, quando fazia a

diferença entre ter opinião (doxa) e conhecer algo (episteme).

Conhecer demanda trabalho, conversar com outras pessoas e ler

alguns livros. Na maioria dos casos, conversar com mortos. Uma

opinião vazia, qualquer bêbado tem.

Falar a língua dos outros faz parte de um sentimento mais

amplo, que é, de certa forma, viver uma vida que não é a sua. Muitas

vezes temos a sensação de que estamos vivendo a vida dos outros e

não a nossa. Essa sensação aparece quando sentimos que fazemos o

que os outros querem e não o que nós queremos. Esses "outros"

podem ser o que chamamos de sociedade, pais, família, marido ou

mulher, filhos, o mercado, o Estado, "Deus", o mundo. Pouco

importa aqui se é o mundo ou a sociedade esse outro; o que importa é

a sensação de que não estamos fazendo o que verdadeiramente

queremos. E por que não conseguimos fazer o que queremos?

Por mil razões, entre elas porque nunca sabemos ao certo

o que queremos. E quem disser que sabe, o diz porque é mentiroso,

imaturo ou ignorante. Talvez porque não exista de fato esse "eu

verdadeiro" que quer fazer o que ele quer verdadeiramente fazer. Não

vou entrar aqui em questões do tipo "esse eu é meu cérebro ou minha

alma imortal ou o resultado de herança biológica e social em

interação?". Ou "sou uma construção social?". Não porque essas

questões não importem; elas importam, mas porque não é isso que

quero discutir agora. Enfim, exista ou não esse eu verdadeiro, o

sentimento de falsidade consigo mesmo, ou de fazer o que os outros

querem que façamos, é a mais pura realidade contemporânea, e fazer

filosofia em língua própria passa por ser capaz de romper, de certa

forma, com essa sensação, que muitas vezes se apresenta à

consciência e ao afeto de quem a tem, como uma espécie de

escravidão. A frase que vem à nossa cabeça é "sou um escravo do

mundo e não sou livre". A pergunta é: posso escapar disso? Acho que

em alguma medida sim. Vamos ver.

Mas antes de verificar essa sensação, que me parece

verdadeira, independentemente de ser possível de fato ou não dizer

de onde ela vem, existem outros motivos para vivermos uma vida

que não sentimos que seja a nossa. Um desses motivos para não

conseguirmos viver a nossa própria vida pode ser mais prosaico e

banal: não termos grana e sermos obrigados a ser motoboy, e

pronto. Ou trabalhar em telemarketing. Está na moda gente bonitinha

falar que os mais jovens estão mudando seus valores para com o

trabalho. Bobagem: jovens com grana podem, ainda bem, escolher o

que fazem. É só isso. E como tudo hoje vira um statement (uma

afirmação "de valor"), fica bonitinho na fita posar de "nova

consciência" na relação com o trabalho. Não existe nova consciência

com o trabalho; existe gente que pode escolher o que faz porque tem

grana, e existem profissionais que pregam em empresas (e ganham

uma puta grana com isso) que há, sim, uma nova consciência para

fazer os coitados esmagados pelo cotidiano corporativo acreditarem

que conseguirão um dia escolher o próprio trabalho – dificilmente

conseguirão. Esses gurus corporativos são uns mercadores de

esperança barata.

Vale dizer, você pode ser uma pessoa supercorajosa e

mandar tudo para aquele lugar e fazer o que quer, mas é quase certo

que o estômago vai falar mais alto, na maioria das pessoas normais.

Às vezes, ser normal é ser banal. Mas, se você tiver grana, pode

vencer mais facilmente essa escravidão ao estômago.

Voltemos à verdade da sensação de que vivemos uma vida

que não é a nossa. Vejamos essa sensação num sentido mais profundo

do que apenas a questão da grana. Para fazermos isso, teremos de

enfrentar a questão do Romantismo, para além da ideia simplista de

que Romantismo significa somente amor romântico.

O Romantismo foi um movimento literário, filosófico e

religioso que nasceu na região mais tarde chamada Alemanha, em

meados do século XVIII. Esse movimento, apesar de estar associado

no imaginário das pessoas à ideia de amor entre um homem e uma

mulher, e aos sofrimentos decorrentes desse amor (como no

romance de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther), foi muito mais

que isso. Para entendermos o que o Nietzsche tinha na cabeça quando

falou sobre a importância de fazer filosofia em primeira pessoa, é

necessário sabermos o que foi o Romantismo de fato, porque a

afirmação de fazer filosofia em primeira pessoa é uma afirmação

romântica. É o que veremos a seguir.

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