Nevoada

Від calorebrothers

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Você conseguiria não se perder quando tudo que resta é a perdição? Agora uma sem-teto, Emery Harvord terá que... Більше

DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
AVISOS

UM

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Від calorebrothers

A porta é aberta abruptamente. O vento ruge por trás de meu irmão, que chacoalha a cabeça como um cachorro para se livrar do excesso de água nos pelos. Pingos de chuva despencam das pontas de seu cabelo, seus fios morenos mais escuros agora que molhados. Ele bate a porta sem muito cuidado, vindo em minha direção com passadas largas. Uma crosta barrenta envolve suas botas, deixando uma trilha de sujeira por onde ele pisa.

— Não serei eu quem limparei isso — alerto de bom humor, encarando o chão encardido.

Relutante, Ryne reage a minha provocação com um sorriso torto. Mas vejo em seus olhos que seu foco não está em mim. Ele vira a cabeça em direção a janela mais próxima, seu maxilar tensionado. Não consigo evitar de acompanhar seu olhar.

Gotas gordas de chuva escorrem pelo vidro, embaçando, mas não cobrindo totalmente, a vista para o lado de fora. As folhas de nosso pequeno pinheiro ameaçam serem arrancadas pelo vento, a um triz de se desprenderem dos galhos. Antes que eu possa perguntar o que meu irmão observa, ele gira o calcanhar e se agacha, ajoelhando-se ao meu lado.

— Há quanto tempo está aqui? — seu rosto está sereno, inexpressivo.

— Quatro horas, talvez.

Enquanto aguardo uma resposta, fito a lareira cuspidora de faíscas douradas. Chamas reluzentes dançam em meio ao carvão superaquecido. O fogo funciona como um cobertor contra o frio de inverno, embrulhando meus ossos num abraço caloroso, mas não suficiente. Ainda tremo, cada centímetro de meu corpo parecendo sentir a tempestade que uiva alto do lado de fora.

Com cuidado, deslizo a miçanga preta seguinte pelo fino fio de nylon. Uma série de outras pulseiras, misturadas com colares, tornozeleiras, braceletes e anéis, repousa em minha caixa de madeira, um presente de minha falecida mãe. Linhas grossas e irregulares entalhadas à mão fazem pouco para melhorar o visual simples demais do objeto sem cor. Nada além de riscos rasos, finos e bruscos feitos por uma criança descontente com a escassa beleza daquilo que ganhara. Hoje em dia, porém, o objeto não poderia ser de maior valor para mim. Ele é uma relíquia, uma fonte de memórias.

Ryne observa meu trabalho das últimas horas, pegando delicadamente um de meus artesanatos. Seus dedos o acariciam com uma delicadeza estranha.

— Desembucha logo — digo a ele, impaciente diante de suas atitudes incomuns.

Hesitante, meu irmão mais novo leva uma mão até o bolso de sua calça, retirando de lá um folheto encharcado. As palavras nele escritas parecem milagrosamente intocadas pela água. Sem dúvida a tinta fora enfeitiçada por algum veroniano.

Antes que eu possa começar a ler o comunicado, Ryne logo adianta:

— A Purgação será hoje.

— Hoje? — o choque em minha voz é nítido. — Por quê?

— Não sei.

— Que horas?

Ele dá de ombros.

Umedeço os lábios em uma falha tentativa de hidratá-los, mas até minha língua parece seca.

Não faz sentido. A Purgação só ocorre ao final de cada estação, contudo o inverno acabara de dar as caras. Mesmo nós, financeiramente acima da média tascara, não temos uma economia pra lá de farta. Não quero nem imaginar como a notícia afetará a população mais pobre. Os veronianos, como sempre, simplesmente tomarão quaisquer bens que desejem dos habitantes de sua colônia, sem sequer cogitarem se importar com as consequências disso na vida alheia. E não somos exceção à regra.

— Quanto eles estão pedindo?

Seus lábios se contraem em uma linha reta como se estivessem prestes a dar uma notícia ruim. Ryne engole em seco, respirando fundo.

— Dessa vez eles querem outra coisa — ele abaixa o olhar. Em busca de coragem, percebo. — Eles tomarão nossa casa.

Meus olhos se arregalam. Pisco algumas vezes, horrorizada com suas palavras. Incrédula, arranco o folheto de suas mãos, lendo-o e relendo-o várias vezes antes de explodir.

— Mas isso é um absurdo! Por que diabos esses presunçosos precisam da nossa casa? Não, definitivamente não. Não saio daqui! — Replico, levantando-me cambaleante. Um nó apertado se forma no fundo de minha garganta.

— Não é como se tivéssemos opção, Emy.

— Cale a boca! Estou cansada desse povo mimado colocando a gente para baixo, Ryne! Não ouse fazer isso você também!

Ele não diz nada. Ao invés disso, permanece inerte com os punhos cerrados. Palavras não são necessárias, de qualquer forma. Mesmo durante meu surto, lá no fundo, sei que não há nada que possamos fazer. Mas talvez não custe tentar.

— Não faremos nada então?

— Nós temos algum dinheiro, talvez...

— Talvez possamos negociar? — interrompo, completando sua frase.

Ele nega, mordendo o lábio inferior.

— Talvez possamos nos hospedar em algum lugar.

Quero gritar. A agonia em meu peito é tão grande que imagino estar prestes a desmaiar. Tudo parece fora de foco.

— Como você consegue ficar tão calmo? Nós seremos sem-teto, Ryne! Como pode ser tão insensível?

Mas sempre foi assim. Mesmo dois anos mais velha, nunca deixei de ser a criança da casa. Mesmo agora, com recém-completos dezoito anos, já uma mulher formada, sou eu quem está dando chilique. Entretanto, dessa vez, não acho que minha revolta seja desnecessária, e me irrita que Ryne não demonstre estar tão zangado quanto estou.

Lágrimas ameaçam brotar em meus olhos, umedecendo meus cílios. Tento afastá-las tarde demais.

Sem saber ao certo o que fazer, subo as escadas correndo. Ninguém me impede.

Foi difícil reunir minhas coisas. Mais difícil ainda foi me dar conta de que não posso colocar uma casa em uma mala. Durante o período que passei guardando meus pertences, meu pai viera pedir para conversar comigo. Mandei-o embora, afirmando que tudo que eu precisava era de um tempo sozinha para refletir. Não era mentira, mas tampouco era verdade. Desabafar com alguém seria bom, mas devido ao meu conhecimento prévio, sei que ele deve ter ficado tão devastado quanto eu, se não mais, e a última coisa da qual preciso no momento é de meu pai chorando no meu ombro.

Duas batidas na porta. Ajoelho-me sobre o edredom branco antes de responder.

— Entre.

Ryne adentra o quarto com suas íris castanhas transbordando pena. Basta um sorriso triste para eu compreender sua mensagem.

— Já vou descer — sussurro, travando um soluço no meio do caminho.

— Rápido — diz ele enquanto se retira.

Meus olhos vagam pelas paredes de meu quarto. A pintura rosada está desbotada, fosca se comparada à quando acabara de ser posta. Desenhos de quando eu era mais nova permanecem pendurados com prendedores de roupa em um fio de barbante colado ao lado de minha cama. Achei inútil levá-los comigo, mas também não fiz questão de jogá-los fora.

Tantas coisas pelas quais suamos. Tantas coisas que daremos de mão beijado, sequer sabendo o porquê, ao povo que nos escraviza há séculos. Fecho os olhos, buscando algo dentro de mim que me ajude a apaziguar minha dor emocional. Mas o ato não serve para nada, pois tudo que me ocorre são flashes de memórias que para sempre estarão perdidas, enterradas sob o túmulo que para nós se tornará esta casa.

Arrasto minhas malas para fora do quarto e, sem me importar com o barulho, paro no topo da escada. Quatro pares de olhos me acompanham: os de meu irmão, os de meu pai e os de dois desconhecidos, claramente recém-chegados de Verona. Não me preocupo em memorizar suas aparências.

— Querem mais alguma coisa? Um café, talvez? — meu tom é amargo, ríspido, sarcástico.

Um dos homens pigarreia, constrangido. O outro, em contra-partida, envia-me um olhar com uma promessa assassina. Retribuo o olhar, arqueando uma sobrancelha.

Não sei quais poderes eles possuem. Poderiam me queimar, enterrar-me viva, congelar-me até a morte. Mas nenhuma dessas coisas passou por minha mente no segundo em que os provoquei.

Antes que meu temperamento acabe por me matar, Ryne sobe ao meu alcance e me agarra pelo punho, obrigando-me a descer. Quanto mais me afasto de minha em breve antiga vida, mais meus pés fincam no chão. Não leva muito tempo para eu estar sendo praticamente arrastada para fora de casa.

Quando Ryne afrouxa um pouco o aperto, estico o braço e puxo minha capa cinzenta do cabideiro ao lado da porta de entrada. Um rasgo se forma em uma das mangas, mas, fora isso, a vestimenta sai inteira. Seguro-a firmemente entre as mãos.

De repente, o homem que me dirigira o olhar mortífero me empurra bruscamente para frente. Para meu desespero, Ryne, tão surpreso quanto eu, não é capaz de me manter em pé. Caio de joelhos contra o chão. Sinto meu rosto arder, mas não de constrangimento.

Meu irmão não tarda ao me erguer, fazendo-me apoiar meu corpo no dele até recuperar o equilíbrio perdido com o choque.

— Você não é ninguém — cospe o veroniano, cada sílaba banhada em puro veneno. — Mas eu sou. Nós somos. Que fique claro.

Agora que presto atenção, suas íris são quase tão claras quanto gelo, contribuindo com a sua postura fria. Elas me seguem por longos segundos, ameaçadoras. Você deveria agradecer. Poderia ter sido pior, é o que querem dizer.

A última coisa refletida em meus olhos é o fogo voraz da lareira que queima por trás de dois semblantes repugnantes.

E então somos lançados ao nada.

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