UM DIA DE CADA VEZ

By EditoraGlac

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Um adolescente que luta contra um câncer. A cada dia que passa ele sente a necessidade de vencer a doença que... More

I CAPÍTULO

II CAPÍTULO

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By EditoraGlac


Logo cedo, acordei com a minha mãe e a enfermeira em meu quarto. Mandara clarear e ventilar o aposento. As janelas agora estavam abertas sobre as árvores do parque. Respirava-se o ar fresco. Punha-se o quarto em comunicação direta com o sol e com a vida.
Levanto cuidadosamente de meu leito e abracei delicadamente a minha mãe. A crise pior havia passado, embora eu estivesse ainda medicado. E olhando-a eu só desejava uma coisa: que ela ficasse tranquila. Se me cabia alguma culpa naquilo, era de vê-la preocupada.
- O que havemos de fazer com esses medicamentos enfermeira? - disse a minha mãe com a voz lastimosa.
A enfermeira a olhou e apenas fez um gesto de dúvida, porém ela respondeu em um tom calmo:
- Custa muito caro esses medicamentos Senhora, melhor fazer uma doação.
A minha mãe andava tranquilamente pelo quarto e lhe respondeu que sim, os medicamentos estavam pela hora da morte, de modo que os pobres se contentavam com alguns comprimidos, quando muito.
- Melhor, melhor, mas será que é possível? - olhou para a cesta com várias caixas de comprimidos que não seriam usados.
O silêncio reinou no quarto.
- Mãe! Estou bem melhor, eu posso descer e ir ao parque dar uma volta e ir a casa do meu amigo? - perguntei com um sorriso de canto de boca.
- Não meu filho. Você ainda está debilitado. O médico pediu para você ficar em repouso - interrompeu a minha mãe, agora com os olhos parados, a voz sempre mansa.
- Pode ficar tranquila. Eu não vou muito longe. Eu preciso espairecer um pouco - pedi meio desconsolado com a esperança que a deixa-se.
- Tudo bem, mas tenha cuidado - pediu preocupada.
Estava resolvido, tinha muito que fazer, iria a casa do meu amigo. Jogar conversa fora e aproveitar a vida, a morte não me apanharia desprevenido. Ao sair, vejo o parque, à manhã crescia sobre ele, a friagem se extinguindo, às árvores no parque já não eram vultos, firmes as cores do céu. Eu, observava, os meus olhos buscavam a paisagem, inseguro por dentro, talvez a força diminuísse. E eu, não queria isso. Queria sentir o vento, o cheiro da terra, a indiferença diante da morte.
O vento bateu muito baixo, as folhas das árvores no ar, o calor no chão agradável. E de repente foi o silêncio dentro de mim. A própria água do pequeno riacho conteve a carreira para evitar os ruídos. O céu parecia que descera, ficou baixo e sem nuvens, azul claro na imensidão. O silêncio, apenas o silêncio de doer nos ouvidos, o mundo parado como se dormisse.
Sentei-me! Concentrei-me como sempre fazia mas, tendo os olhos no parque, parecia fora do mundo. O meu rosto se abriu, sorri, ofegante. A pausa, com os olhos quase cerrados, eu parecia sempre sonhar.
Avancei, a estrada de pequenas pedras, em silêncio. Desviei em direção a areia, tirei os sapatos e pisei com muito delicadeza. O terreno macio, quase de barro, de um lado piavam as aves, de um outro, já ouvia balbúrdia das pessoas.
Fitei o meu olhar para duas mulheres que estavam sentadas no banco. Escutava a conversa como um alcovitador. A mulher na ponta do banco direito com uma criança no colo, perguntou:
- Você já pensou no nome?
- Chamará Rebeca.
- Eu sempre quis uma menina.
- Esperava um filho, mas era a vontade de Deus.
Voltei a pensar, a vida ali estava apenas começando para aquela pequena criança dentro do ventre de sua mãe. Teria muito anos pela frente. A tal Rebeca.
Metido no silêncio, tudo quieto como se nada houvesse acontecido, volto a caminhar, ainda tinha a conversa das senhoras em minha cabeça.
O dia se fez com grande claridade chegando muito cedo. E senti a força da luz penetrando o meu corpo. Feliz! Os passarinhos cantavam quando eu avistei dois homens, um jovem e um idoso. O senhor idoso era levado calmamente pelo jovem rapaz vestido de branco. Seria o cuidador dele? Todos que passavam por eles os cumprimentavam, como amigos de longa data. Certo mesmo era que, tão frágil e humilde o idoso, tinha amigos em todos os cantos do parque.
Por um instante, não tinha percebido que fiquei viajando naquele parque por algumas horas e não percebi que se passaram. Apressei os passos e cortei o parque praticamente em uma passada só. Ao chegar em frente a casa do meu amigo, eu o avistei, saindo de casa com uma cesta embrulhada e quando ele me viu, fulminou-me com os olhos.
- Eu estava preocupado com você -  respirou aliviadamente.
- Perdi a hora observando a paisagem.
- Não faça mais isso. Estava para ligar para os seus pais.
Seguiu-se uma pausa e esse comentário que parecia sem sentido. Eu olhei zangado para ele, e pelo rosto de meu amigo passou uma expressão indefinida.
- Fica tranquilo! Ei sei que estou doente, mas você não precisa ser igual aos meus pais. Ficam preocupados por qualquer motivo.
Ele olhou para mim e soltou uma gargalhada sem motivo. Então se debruçou bruscamente sobre mim, abraçou-me com fúria e arrastou-me rumo à sala, dando a impressão de que, estava mais tranquilo.
Em meus anos mais vulneráveis de nossa adolescência, meu amigo me deu um conselho que jamais esquecerei:
- Sempre que tiver vontade de satirizar alguém - ele disse - lembre-se de que você pode contar comigo. Eu sou o seu melhor amigo.
Ele não falou mais nada, mas sempre fomos excepcionalmente comunicativos de uma forma extravagante, e entendi a preocupação dele. Ele pôs de lado a cesta embrulhada em cima da mesa e fomos para o escritório de seu pai.
- Entra. Eu quero mostrar a você umas pesquisas que eu fiz sobre a sua doença.
- Pra quê isso? Todos nós sabemos que eu só serei curado com uma doação de medula óssea.
- Mas você está no estágio inicial e pode ser curado.
- Mas a cada dia que passa meu amigo, a doença complica mais.
Desculpe-me por minha impaciência, mas durante um ano inteiro estive ébrio de esperança; acaso sou culpado de não poder agora suportar sequer um dia de dúvida? Aqui o próprio fato justifica tudo.
- Bem, basta, basta! E agora escute uma coisa: tínhamos combinado que, iríamos a Lagoa.
- É verdade! Vamos! - disse ele. - Vamos! Depressa!
Olhei perplexo para ele.
- Bem, onde está o carro? Você pediu o carro ao seu pai?
Ele empalideceu.
- Eu esqueci de falar com ele. Mas nós podemos pegar o carro da minha mãe.
- Não, meu amigo, não - interrompi ele. - A sua mãe vai ficar furiosa.
- Nem mais uma palavra. Vamos assim mesmo. Eu prometi a você que o levaria a Lagoa hoje.
- Está bem, estou pronto...
A nossa animação era tamanha que, íamos como numa embriaguez, como se não soubéssemos o que se passava conosco. Ora parávamos e conversávamos longamente num lugar, ora começávamos a dirigir outra vez e passávamos sabe Deus por onde; e outra vez o riso, outra vez as lágrimas...
- Você vai se curar meu amigo.
- Não consigo pensar nisso sem me irritar... e o mal parece tão grande que é preciso acreditar nisso, se possível. Você não acha?
- Sim, mas o que se há de fazer? Você têm que ter forças.
- Só há uma solução: é eu aceitar de vez essa doença. Só assim eu vou sossegar.
O meu amigo permaneceu em silêncio.
- Ninguém quer parecer incoerente. Como me propus em ajudá-lo desde o início, é absurdo concordar com suas palavras. Mas não vejo outra alternativa. E você?
- Também não vejo - eu respondi lentamente. - Não de imediato... mas...
- Mas o quê? Talvez não estejamos vendo com clareza os problemas que podem surgir.
- Quero pedir um conselho. Preciso saber a sua opinião.
- Minha opinião! - ele exclamou.
- Sim, seu conselho e sua opinião. Não sei o que fazer.
- Basta pensar positivo. Há de ser uma vitória para você!
- Você acha isso importante para um doente como eu?
- Sim, esse é um ponto importante.
- Pode sugerir outra maneira de eu acreditar nisso?
- Não, não me ocorre nada.
Apesar de todos os meus inconvenientes, tornava-se assim vulneráveis aos meus pensamentos que desejavam fabricar um conjunto de falsas aparências. Não é surpresa que uma pessoa que obteve certa quantidade de independência desejará exercer o máximo de controle possível sobre a própria vida.
- Caso seja, se fui levado a me enganar e a infligir alguma dor, meu sentimento não foi despropositado.
- Perdoe-me. Não é fácil para mim discordar de você.
- Tais causas precisam ser declaradas, ainda que de maneira sucinta.
- Mas essas causas, embora ainda existentes, e existindo no grau máximo de complexidade, disponho-me a esquecer.
-  Não vou dizer que esteja errado. Porquê você não acha realmente que eu tenha qualquer intenção de magoá-lo; e já tenho o prazer de conhecê-lo há tempo o bastante para saber que gosta muito de às vezes expressar opiniões que na verdade são apenas frases pensadas ao meu respeito.
O meu amigo riu muito depois dessa minha declaração.
- Eis a alternativa que vivemos atualmente: preferimos acreditar que tudo será resolvido da melhor forma possível e nos esquecemos de que há um bem que depende de nós para voltar a ter a sua força.
- Mas por que devemos nos preocupar? Vamos aproveitar esse dia maravilhoso.
Como ocorre em qualquer ambiente em que a doença se infiltra de modo aparentemente benigno e tolerante, depois ele cresce sem parar, sufocando a mera possibilidade de viver com o mínimo de liberdade. Ao mesmo tempo, este anseio por uma liberdade que nós seres humanos tanto buscamos em momentos de grandes conflitos, chego a conclusão que essa tal liberdade é alimentada pelas minhas dúvidas, que não há explicação.
- Chegamos. Conforme prometido, estamos na Lagoa.
Essa pequena diversão devia servir para a gente como uma indenização pelos muitos inevitáveis transtornos trazidos pela minha doença. A imagem era bonita, divertida. Uma verdadeira beleza da natureza no meio da cidade grande, tão cheia de vida e despreocupada, na mais profunda paz de um belo domingo de primavera.
Quando me vi em pé, olhei à minha volta e devo confessar que nunca antes tinha percebido paisagem mais atraente. Tinha um jardim contínuo, os campos cultivados, pareciam canteiros de flores. Eu me sentia galardoado pelas necessidades da natureza; o que não admirava, pois já quase fazia um ano desde a última vez em que eu estive aqui. Era muito confortável sentar-se sob a grama debaixo de árvores centenárias de copas gigantes que se entrelaçavam. A minha volta, muitos jovens que circulavam, famílias sorrindo, crianças circundando por todo os lados. No chão, forrada com toalhas branquíssimas, com pequenos vasos de flores, bolos, sucos e frutas frescas, todos compartilhavam de alegria e felicidade naquele local.
A minha ânsia de viver flanava pela Lagoa da forma mais delicada, como o mergulhador, que num instante enche os pulmões, tinha contaminado todo aquele lugar maravilhoso. Afinal, a diversão durava como uma eternidade. Pouco a pouco se desenvolvia dentro de mim uma vontade imensa de lutar fortemente contra o câncer. Não faltava a mim a juventude e o brilho, eu sentia pulsar em minhas veias a vontade de viver e a disposição de um jovem de vinte anos suportar toda a dor.
O meu amigo me assistia em uma aquietação, sentado à sombra das velhas árvores, com uma maça na mão e a cesta embrulhada ao seu lado. Nesse instante, aproximou-se hesitante e falou algumas palavras:
- Tudo certo?  Você quer um pedaço de pão com presunto e queijo?
- Sim, meu amigo! - foi a resposta relaxada.
Ele se abalou em direção a cesta e trouxe para mim o sanduiche pronto.
- Devo esquecer que eu estou doente. Devo arrancar de minha memória, como linhas mal escritas, a viagem para a morte.
- Mesmo as lembranças terríveis devemos arrancar de nossas memórias - ele balbuciou timidamente.
- Você tem razão meu amigo.
Levantei, saí correndo, como se estivesse sendo escorraçado, a passos largos, saltando sobre pedras e raízes até eu me aproximar de uma ave. Em vão! Ela me avistou, bateu asas e toda desengonçada foi em direção as árvores. Era uma linda Garça. Ofegante, vermelho da curta corrida, voltei com as pernas tremendo; curvado, cansado pelo pequeno esforço.
Tão constante são as apreensões que me causam tais perigos e outros semelhantes, que eu não consigo desfrutar os prazeres e diversões comuns a vida.
- Que tens, meu amigo?
Levantei a cabeça, mas o olhei com um ar tão abalado, tão infeliz, que as lágrimas apareceram.
O meu amigo levantou, agarrou a minha mão.
- Fica calmo, você não pode ficar agitado. A doença o deixa fraco. Mas você não pode perder a força de vontade de viver esses momentos.
Talvez o próprio comportamento de meu amigo me induzisse a este pensamento; é possível que eu tivesse ficado muito feliz, empolgado, mas era estranhamente compreensível para mim o sentido de algumas palavras. Tudo em mim se animou, com um pressentimento. Num instante, em tais acessos bruscos, em tais passagens de ânimo turbulento, a uma animação luminosa, elevada, a um entusiasmo puro.
- Descobri sobre muitos outros tópicos que o natural desejo de uma vida infinita e de felicidade me traziam à mente com felicidade esses momentos.
- É dessa forma que você tem que pensar.
Que o sistema de vida por mim elaborado não era razoável nem correto, pois pressupunha a perpetuidade da juventude, da saúde e do vigor. Portanto, não era saber que um jovem como eu haveria de preferir estar sempre na flor da idade, abençoado com prosperidade e saúde, mas sim como haveria de passar uma vida perpétua com todas as deficiências que soem advir da doença.
Deitei-me na grama, que era muito curta e macia, fechei os olhos por alguns minutos, senti o ar entrar em meus pulmões expandindo todo o meu tórax. Abri os olhos e fiquei olhando para cima, o sol começava a esquentar, e a luz magoava-me a vista. Ouvi um ruído confuso ao meu redor, mas na posição que eu estava não via nada além do céu.
Eram as crianças que brincavam incansavelmente de um lado para o outro. Olhei para o meu amigo e ele retribui com um sorriso. Nós nos conhecemos desde criança, estudamos juntos, ligamo-nos com tamanha amizade, que até mesmo as maneiras estranhas de meu amigo fazia com que eu se unisse a ele com maior intensidade.
Estava-me sentindo muito feliz, extraordinariamente feliz, como não será possível sê-lo mais! Até que em fim, ao menos eu estava vivendo aquele momento.
Hoje, quando me levantei, estava tão bem disposto. Como eu estava contente! Tinha-me posto já a rua. O que me encheu de alegria. E toda a manhã e toda a tarde, estive sempre tão contente! Mas agora... voltam outra vez a atormentar-me ideias tristes, indefinidas. O que vai ser de mim, qual será a minha sorte? O pior é uma pessoa não saber nada, absolutamente nada do que lhe reserva o destino, não poder dispor do futuro e nem de longe poder adivinhar o que está para acontecer.
E, no entanto, é preciso que eu tenha força. O homem é às vezes uma coisa estranha, muita estranha até. Sim, apesar do que possa acontecer, às vezes, pego-me pensativo e despreocupado do sofrimento que me corrói. No entanto ei me sem dúvida muito desagradável estar agora a pensar em todas essas coisas.
Sentia-me tão feliz! Ansioso por gastar energias. Aconteceu que ao relancear a vista à minha volta, tornei a encontrar tudo como antes... Que motivo teria havido, portanto, regredir dessa forma? A doença, eu enfermo em uma cama e sem expectativas de cura, tornei a encontrar tudo como antes. 
Mas não poderia se deixar escravizar pelo medo e pela angustia. Fechei os olhos novamente e abri com vontade. Simplesmente porque o sol tinha sorrido por entre as nuvens e o céu se mostrava de uma cor mais clara. Percebi que na verdade, às vezes, o homem se perde em seus próprios sentimentos.
Digo-lhe com toda a alma e de coração puro. Mas, seja como for, em última análise, sou um rapaz otimista, ainda que muito afastado das minhas crenças. No que toca a minha vida, devo dizer-lhe, que não me fica bem, na minha idade, por a ruína. No entanto, se é meu dever dizer-lhe a verdade completa, então digo-lhe que estar com o meu amigo é estar em plena alegria. Desfrutava ali de mais liberdade e independência com ele ao meu lado.
Para nós dois era uma satisfação contemplar tudo o que estava a nossa volta. De maneira que formávamos uma dupla, sentávamos os dois em torno da cesta, tomávamos um suco de manga. Sim, era uma ótima vida. E dizer que a vivemos em comum quase durante quinze anos!
Levada pela nossa boa disposição, pela nossa alegria, ou para dizer melhor, devido a certeza que nos rodeava, uma felicidade imensa... Que somos capazes de fazer, às vezes, para sacudir o aborrecimento de nossas vidas nada melhor do que um amigo íntimo.
Reconheço tudo que ele fez por mim, como ele me defendeu do ódio e da perseguição da minha própria mágoa, e sei apreciá-lo no seu verdadeiro valor. Uma vez mais lhe digo: não quero que ele se aborreça comigo e que tenha a certeza do meu respeito e afeto inalteráveis.
- Mas, meu amigo, quero confiar-lhe uma coisa!
- Diga-me o que tanto te afligi?
- Você é um amigo muito bom, um verdadeiro anjo - falei com firmeza.
- Estou apenas fazendo o meu papel de amigo. Estou aqui para ajudá-lo a suportar esse fardo.
- Para dizer a verdade, você é como um irmão.
- Seja como for, estarei sempre ao seu lado.
Eu estou afeito e pouco me assusto, no entanto não me espanto de que, até mesmo os melhores amigos autênticos, possam viver nesta vida como irmãos. O meu amigo é extremamente tímido, não parece, mas às vezes, foge de todos, encolhe-se  a um canto quando se encontra com alguém. Eu também sou um pouco tímido, mas não posso comparar-me com ele.
Hoje passei o dia inteiro a pensar na vida. Conheço muito bem esta primavera, estas ventanias primaveris. Não consigo explicar o que se passa hoje comigo. Acabo sempre por dar comigo a tremer, a chorar e soltar suspiros.
- Peço-lhe, meu amigo, que não se preocupe com o meu estado, meu único e bom amigo.
- Não se aflija com isso - falava em um tom mais sério.
Terei que ter um pouco de paciência, e verei como a vida ainda há de sorrir. Para isso é preciso, antes de mais nada, que eu goze de perfeita saúde e que eu se esforce o máximo para conseguir esta tal proeza. Verdadeiramente nem eu próprio sei como tive tempo para lutar, sem faltar o meu entusiasmo.
Acreditava que havia de ser sempre feliz como então, mesmo que eu vivesse toda a vida nesse estado. Infelizmente logo tive que conviver-me dessa vida sofrida e conturbada e abandonar todos os recantos que me eram de direito. Teria apenas dois anos quando descobri que estava com câncer. O que eu chorei quando tive de abandonar tudo quanto amava! Nossa, quanto me custou a deixar tudo para trás! Ainda me lembro de como me abracei convulsivamente aos meus pais, com lágrimas nos olhos, suplicando-lhes que tudo fosse um engano.
Quanto me custou acostumar-se a essa nova vida! E voltava logo ao meu devaneio, até que as saudades me faziam chorar de mansinho e me punha a engolir às lagrimas... E, com isto, a lição me ficava a cabeça. E aí ficava eu a pensar na minha vida durante todo o dia, sonhando com uma solução para o meu problema, ou melhor, para a minha doença. Solução existia, mas era quase impossível.
Depois de muitos reflexões e observações, e de me ter feito ver com toda a clareza a minha situação desesperada e a minha falta de preparo, estou disposto a esquecer o passado, que não é muito distante, mas viver os dias que me foram dados para lutar bravamente contra a minha doença.
E foi então que, de repente, como para certificar-se de que eu já não era um garotinho, percebi que deveria preveni desde já que eu não podia tolerar que ninguém, nem eu mesmo, colocasse a minha força de vontade de viver a prova.
Finalmente, percebi. Não sei o que se deu comigo então; cravei os olhos no meu amigo, e dei-lhe um abraço. A sua silenciosa intenção de me ajudar, que talvez demonstrasse a consciência da minha culpa, pareceu no entanto aliviá-lo um pouco, pois continuou em seguida a falar-me num tom mais suave:
- Fique tranquilo meu amigo. Tudo sairá muito bem. Você irá melhorar com esse tratamento.
- Não tenho muitas esperanças com isso meu amigo, mas eu sei, ou melhor, nós sabemos o que pode reverter essa situação.
- Conte comigo no que você precisar.
- Eu já sei o que fazer. Se a minha cura é um transplante de medula óssea, eu vou procurá-la aonde ela estiver.
- Como assim?
- Eu vou correr atrás da minha saúde. Eu vou encontrar um doador. Eu vou pedir cada pessoa que passar na minha frente que, ajude-me nessa batalha.
E quando a melancolia nos assalta e o coração nos parece pesado, quando nos sentimos magoados e tristes, as recordações servem-nos de conforto, tal como o fresco orvalho que, depois de um dia quente, refrigera a pobre flora, comunicando-lhes uma nova vida.
Foi assim que me senti nesse dia tão agradável ao lado do meu melhor amigo. Voltamos tranquilos. Eu estava confiante e mais alegre. Nada me atormentava. Queria viver e gozar cada minuto da minha vida. Era um direito meu.

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