O ideal de John Humphrey

By PaolaGiometti

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Já imaginaram se os humanos vivessem em abatedouros para satisfazer a fome dos animais civilizados? E se um p... More

O ideal de John Humphrey

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By PaolaGiometti


John Humphrey era um dos alunos exemplares da universidade. Cursava direito e gostava de ler tudo sobre ética e cidadania. No segundo ano já havia escrito boa parte da sua monografia, onde sugeria a necessidade de um estatuto em defesa dos seres vivos, incluindo as pessoas.

Humphrey era um porco. Um suíno nascido em uma família da mais alta linhagem do campo. Seu pai era um economista de sucesso, e a mãe, uma filósofa acadêmica. Ele teve a quem puxar.

Logo que John terminou a faculdade, mudou-se para a grande cidade, onde foi fazer doutorado em ética e cidadania. Lá escreveu a sua tese sobre a importância da tolerância por outrem. Foi nessa época que ganhou o prêmio Jovem Revelação e, por isso, o governador da cidade o escolheu para escrever as Leis da Tolerância e Trégua no Estatuto dos Animais. O governador era um leopardo, e nada mais convincente em questões de tolerância quando se coloca um porco e um carnívoro de respeito para descrever tais leis.

Elas falavam da trégua entre cães e gansos na briga pelo direito de defesa de propriedade; pregavam o respeito pelo instinto da águia em querer matar o macaco para comer a carne, e exigiam a não ação dessa ave durante as assembleias e reuniões populares — também frequentadas por símios. As leis davam também ao macaco o direito se defender com uma arma, se assim fosse preciso.

Nem tudo o que estava no estatuto Humphrey aprovou, mas às vezes o governador leopardo preferia se reunir antes do almoço, e era normal seu humor mudar com a fome.

Dois anos mais tarde, John já havia publicado um livro sobre o Direito da Distribuição de Territórios, ressaltando os bisões e sua natureza migratória, defendendo que deviam ter, como direito assegurado pela nação, duas casas.

Mas John ainda não se sentia feliz com a dificuldade que era colocar as suas ideias em prática. A desigualdade entre os animais era escandalosa. Houve um dia em que viu um rebanho de pessoas ser transportado num caminhão. Elas gritavam em desespero. Foi neste dia que Humphrey se lembrou de sua infância, quando estava certa vez num Pessoalógico. Lá viu um macho e uma fêmea de pessoas protegerem um filhote que era arrancado por um gorila tratador. Aqueles pensamentos em conjunto mexeram com as emoções do talentoso Humphrey.

Mas já diziam os animais mais antigos, como o elefante e a tartaruga: as pessoas ficam em gaiolas porque são perigosas. As pessoas são piores do que um grupo de leões famintos, lembrou sua professora do primário, uma cobra, ensinando normas de segurança. Todos sabiam que era por esse motivo que as pessoas foram destinadas à indústria alimentícia.

O caminhão está levando essas pessoas para o abatedouro, pensou Humphrey voltando sua atenção ao veículo. Isso havia estragado a noite do porco.

***

— Eles são seres vivos e sentem medo e dor como nós — falou John em sua visita a Rousseau, o mocho que foi o seu orientador no doutorado.

— As pessoas estão presas há gerações e não é por acaso, John — explicou o mocho. — Nossos antepassados sabiam o que estavam fazendo quando os prenderam. É melhor deixar como está.

— Mas já faz muito tempo — insistiu Humphrey. — Como quer que as pessoas reajam se nascem e vivem para nos alimentar? É preciso pensar nos Direitos dos Seres Vivos.

— Esqueceu-se do artigo 9°?

Não será punido o animal faminto que, pela lei do mais forte, mata a fim de se alimentar — ditou o porco que nunca havia concordado com aquele parágrafo.

— Sem eles, de onde tiraríamos a ração dos filhotes dos porcos, galinhas, cavalos? A merenda escolar é um banquete, John! Sem a carne das pessoas, os animais comeriam uns aos outros — o mocho empoleirou-se na cadeira e levou a asa ao ombro do porco. — Eu o vejo como um amigo. Não quero que termine mal em sua carreira. Pense na ração que alimenta o estômago faminto dos canídeos. E o que diriam os felinos se tirássemos dos restaurantes o baby beef?

O estômago de Humphrey revirou. A culinária não havia poupado nem mesmo os filhotes das pessoas, sendo sua carne mais macia e saborosa por nem mesmo terem vivido o suficiente para acumular as toxinas dos hormônios de crescimento injetados.

— E o leite? — inquiriu Humphrey já exaltado. — O senhor em seus anos noturnos de reflexão, solitário, não pensou em nenhum momento no fato de as fêmeas leiteiras nem poderem amamentar suas crias, pois o leite delas estará na sua mesa pela manhã?

Rousseau baixou a cabeça e deu tapinhas no ombro de Humphrey.

— John, meu amigo... Há coisas em que não devemos mexer. E mesmo que você crie um documento que defenda os direitos das pessoas, que animal irá concordar em deixar de comer a costela de pessoa com barbecue ou a linguiça apimentada no final de semana?

Humphrey balançou a cabeça não acreditando no que escutava.

— Não há mais o que falar com o senhor, me desculpe — John disse e saiu desapontado. Era a primeira vez que Rousseau não o aprovava em seus ideais.

— Não vá fazer nenhuma besteira, meu caro — o mocho falou voando para fora de sua sala e vendo o porco ir embora com passos duros. — Não há como enfrentar a indústria alimentícia! — por fim gritou.

Humphrey caminhou pelos jardins da universidade sentindo vontade de chorar. Como os animais são injustos por pensarem assim!

John, sempre que era convocado para palestrar sobre os Direitos dos Seres Vivos, citava suas ideias e impressões, a fim de sugerir uma retificação no tal documento. E, por acusar a indústria alimentícia de falta de sensibilidade e bom senso zero, na mesma medida que ganhou admiradores, fez muitos inimigos.

— Soube que está acusando a indústria alimentícia por violar os Direitos dos Seres Vivos — falou Rousseau a John em um encontro de acadêmicos.

— Sim. Artigo 3°. Ele fala sobre todos os seres vivos terem direito à vida, à liberdade e à segurança. E as pessoas são seres vivos, Rousseau.

O mocho o olhou com certo orgulho e medo. Então disse:

— Tenha absoluto cuidado, meu amigo. Eu teria medo da milícia felina.

— Eu já fui ameaçado — respondeu Humphrey encorajado. — Mas todo ideal precisa de um mártir.

O porco sabia o que estava fazendo e sabia onde queria chegar.

Um grupo de estudantes adeptos a suas ideias começou a procurá-lo para orientá-los em suas carreiras filosóficas e até mesmo como juristas. E não ganhou só estudantes como também fez seus aliados.

Seu grupo passou a se reunir em galpões abandonados e o número de estudantes interessados em seu ideal aumentou.

Humphrey sabia que o que estava planejando era considerado imoral à sua sociedade e poderia gerar a decapitação ou forca, servindo de comida às pessoas em recintos do Pessoalógico.

Um dia, com lenços amarrados à cabeça, o grupo estudantil foi se manifestar diante do maior abatedouro da cidade. Humphrey estava lá, liderando a passeata. Forçaram o segurança a deixar que entrassem, e assim abriram as jaulas eletrônicas onde as pessoas eram acomodadas.

Mas o que os estudantes não esperavam era a ação ingrata dos prisioneiros. As pessoas saltaram rapidamente sobre os estudantes. Marretas e machados do próprio abatedouro foram utilizados na matança, e aquele dia ficou conhecido como a Chacina dos Estudantes, praticada pelas pessoas que foram libertas. Humphrey, vendo seus ideais se queimarem como a geada queima a lavoura, foi golpeado na coluna por uma barra de ferro e depois na cabeça.

Quando acordou, estava em uma cabana de madeira, deitado numa cama de onde era possível ver uma janela aberta e sons de pássaros cantando. Ao lado dele, uma cabra idosa dobrava roupas de cama.

— O que aconteceu? Onde estou? — John desesperou-se tentando se levantar. Mas então percebeu que não podia mexer as patas traseiras.

— O senhor dormiu por dois dias inteiros — explicou a cabra simpática. — Rousseau o enviou para esta fazenda para protegê-lo. Ele pediu que entregasse isso ao senhor.

A cabra idosa entregou a ele uma carta:

John, depois do motim no abatedouro, a milícia felina está atrás de sua cabeça. Agora que está impedido de andar por conta de sua infeliz lesão, terá muito tempo para avaliar as consequências que causou. Os estudantes que não morreram na chacina foram detidos pela milícia felina e decapitados nos jardins da universidade. Espero que desta vez siga o meu conselho: o seu lugar é atrás dos livros e o lugar das pessoas é nas gaiolas! Elas são perigosas e não podemos ir contra a indústria. Fique bem e não me escreva. Em breve irei visitá-lo.

Lamento pelas notícias desanimadoras, Rousseau

Humphrey fechou os olhos, abatido. Um misto de culpa e impotência tomou conta dele. Então, após um longo suspiro, falou:

— A senhora tem papel e caneta?

John Humphrey passou o resto dos seus dias escrevendo e reformulando uma declaração que julgava ser mais adequada aos Direitos dos Seres Vivos, onde incluía as pessoas. Defendeu que elas deveriam ser tratadas com bondade e generosidade para que desenvolvessem, com o tempo, a qualidade humana.

Há quem diga que a Declaração Universal dos Direitos Humanos nasceu anos depois: quando um grupo de pessoas invadiu uma fazenda, matou um porco paraplégico e roubou seus ideais.  

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