Sombras e Ecos

By JMBeraldo

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Em uma cidade onde a noite dura meses e as memórias duram para sempre, um historiador se envolve na investiga... More

Capítulo 1

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By JMBeraldo


Nenhum dos legalistas mexeu um músculo quando Huirau Hoepo entrou no corredor que circundava as muralhas externas do Palácio Branco. Seus passos ecoavam na escuridão parcamente controlada por poucas lanternas a óleo de baleia, ignorados pelos soldados entrincheirados atrás de barricadas feitas da mobília quebrada. Nenhum par de olhos desviou-se da entrada ou das janelas estreitas onde arqueiros esperavam em silêncio. O intruso passou despercebido, um sorriso no rosto ao reconhecer cada movimento, cada murmurar. Aqui um soldado de cabelos grisalhos murmurava uma prece a algum deus esquecido. O jovem de bigodes ralos ao seu lado esfregava o polegar no indicador, como se a tensão de esperar pelo inevitável provocasse coceira. Alguém chorava baixo. Huirau identificou o garoto, provavelmente menos de quinze anos de idade, encolhido atrás do seu escudo e lança. Nenhum de seus companheiros olhava para ele, como se fazê-lo poria um fim no que lhes restava de força de vontade.

Outro novato soltou um gemido alto. Huirau contou até três. Exatamente no último instante contado veio o estrondo. Os soldados - aqueles com alguma coragem restante - viraram-se para trás, na direção das portas duplas para onde Huirau caminhava. Um grito de surpresa veio lá de dentro. O veterano de cabelos grisalhos se levantou, fez como quem ia atender ao chamado, mas hesitou. Nem mesmo ele seria valente o suficiente para enfrentar o Arconte.

Huirau chegou até a porta. Estava fechada não por segurança, mas por um capricho dele mesmo. Toda a vez que fazia esse caminho, Huirau fechava a porta. Era como se desse mais credibilidade a tudo. E ele gostava da sensação de tocar o metal frio feito de uma liga desconhecida, gostava de deslizar os dedos pelos padrões orgânicos esculpidos com uma técnica perdida, desenhando o que pareciam ser raízes ou galhos estendendo-se por toda a parte. Pequenos símbolos - palavras em uma língua esquecida - faziam o papel de folhas e frutos na árvore de metal.

Empurrou com ambas as mãos, ouvindo o ranger alto que interrompia o silêncio que se espalhara pelo palácio logo após os soldados legalistas perceberem a futilidade de sua resistência.

Abriu um sorriso largo. Chegou bem a tempo.

O último rei do então decadente Sacro-Império Valmedor tropeçou para trás no próprio manto púrpura. Caiu no tapete que cobria todo o gigantesco salão, certamente obra de súditos que acreditavam em sua divindade. Pena que o tapete não resistira ao tempo e ao clima. Uma pilha de escombros ocultava boa parte da sua superfície onde o teto havia sido arrebentado pelo Arconte. Flocos de neve desciam lentamente, acumulando sobre o artesanato complexo que jamais poderia ser replicado. Huirau suspirou com a perda, mas tentou não dar muita atenção. Não podia desperdiçar um momento sequer do que estava para acontecer.

Neve não era a única coisa que descia do buraco no teto.

O Arconte também o fazia, como uma cachoeira de piche, óleo em um copo d'água, penetrando lentamente o salão em filamentos de tamanhos diversos. Atingiam o chão, formando ondas que pareciam espalhar-se menos como líquido, mais como um ser invasivo buscando uma presa.

- Deixe-me em paz! - gritou o último rei, um braço magro erguido para proteger o horror em seu rosto. Ele parecia saber muito bem o que viria a seguir.

Ninguém era capaz de fazer o Arconte mudar de ideia uma vez ele tomasse uma decisão.

A luz das muitas lanternas espalhadas pelo salão, postas lá anteriormente pelos funcionários do Ministério à mando de Huirau, não era o suficiente para penetrar a escuridão viva que circundava o Arconte. Ele parecia flutuar logo acima no chão, coalescendo sem tocar o tapete que narrava os mil e quinhentos anos da linhagem dos reis Valmedor desde a fuga de Myambe até a conquista dos Onze Reinos. No interior da escuridão o que restava do ser milenar mal podia ser reconhecido como algo humano. Sombras serpenteavam como tecido puído, lembrando vagamente as túnicas de gola alta que voltaram à moda entre os membros do governo. O rosto era quase invisível senão pelos olhos de alguma forma capazes de serem mais escuros que a própria escuridão a sua volta.

- Chega, - disse o Arconte. Sua voz era mais profunda do que o corpo magro parecia ser capaz de produzir. Ele deslizou até estar diante do último rei. Pairou no ar em silêncio, um deus supremo julgado um impostor. - Você foi alertado inúmeras vezes.

O Arconte esticou o braço na direção do rei. Filamentos de escuridão estenderam-no até alcançar o velho caído, abraçando-o como os tentáculos de um polvo, forçando-o a se levantar. Logo os pés do rei não tocavam mais seu precioso tapete.

- Você não pode, - gritou o último regente, desesperado. Sua pele negra estava pálida com a antecipação do veredito. Tamanho era seu medo ele havia sujado o manto e o tapete. - O inimigo está à porta! Se me matar, jamais poderei salvar meu reino!

- Este reino nunca foi seu.

A escuridão que mantinha o rei erguido comprimiu-se, provocando um grito. Num surto final de coragem, abriu as mãos, as palmas voltadas para o Arconte. Tinha tatuado lá padrões orgânicos como os da porta do salão. Desenhou com os dedos padrões geométricos complexos que fizeram brilhar as tatuagens. Elas explodiram em um fogo sobrenatural, verde esmeralda.

A luz forçou a escuridão mais próxima a recuar do que restava do Arconte, como se forçada por um vento potente. Deixava para trás os ossos expostos. Um crânio alongado, branco como marfim, uma caixa toráxica partida em tempos esquecidos, carne e músculos há muito consumidos pelo poder que o dava a eternidade.

Uma pessoa comum teria morrido com muito menos, trespassado por um poder muito além do que podia compreender. Não o Arconte. A escuridão forçou-se de volta, tentáculos abraçando o esqueleto inumano, apagando a chama verde, esmagando os dedos heréticos. O rei gritou de dor e frustração.

O Arconte trouxe o rosto do último rei perto do seu.

- Chega, - ele repetiu.

A mão livre tornou-se uma lâmina impossível. Como um escorpião dando o bote, a lâmina de sombras atravessou o peito do último rei de Valmedor. Ele suspirou de dor e surpresa, gemeu e chorou. O corpo estrebuchou. Quando o Arconte puxou a lâmina para fora, ela tinha se tornado tentáculos envolvendo uma esfera pulsante de energia verde.

Huirau pôs-se de cócoras. Puxou de dentro do manto de inverno seu bloco de notas. Escreveu sobre o pulsar. Era a primeira vez que percebia isso. Não que fosse relevante. Provavelmente não era. Mas ele preferia anotar antes que acabasse esquecendo.

- Eu posso ver você.

Huirau ergueu os olhos do papel. Levantou-se lentamente. Os tentáculos de sombras tinham se dissipado, assim como a esfera de energia, mas o Arconte permanecia flutuando diante dele, o último rei ainda seguro pelo pescoço. Os olhos negros do guardião todo-poderoso dos Onze Reinos focalizavam na direção de Huirau. Sentiu um calafrio de excitação.

- Quem? - perguntou Huirau, levantando-se para chegar mais perto, fitando diretamente aquele par de olhos negros. - Quem você consegue ver?

O Arconte abriu a mão. O último rei de Valmedor desmontou no chão, sem vida. Num movimento súbito, o Arconte tornou-se amorfo, fluiu como óleo no ar, na direção de Huirau, o crânio inumano a cabeça de uma serpente de escuridão prestes a dar o bote.

- locchava Hoepo?

Huirau virou-se para trás no mesmo momento em que a reprodução da memória chegou ao fim. Era sempre assim: logo após matar o último rei o Arconte via alguém, então a memória terminava. Nada que o historiador tentasse fazer parecia capaz de alongar o tempo de reprodução, de expandir a área de foco. Meia década de tentativas, e nada.

Um membro da milícia civil, jovem o suficiente para ser recém-recrutado, aguardava na entrada, parcialmente oculto atrás das portas duplas, como se temeroso que a memória daquele lugar pudesse ferí-lo. Era ironicamente semelhante ao soldado legalista que séculos antes chorara de medo no corredor externo da sala do trono. Um ancestral, talvez?

- Estou ocupado.

- É...é urgente, locchava, - disse, curvando-se em respeito diante do historiador.

Huirau examinou suas anotações. A próxima leva de memórias registradas nesse lugar aconteceria em minutos. Abaixou-se onde o corpo do último rei havia caído gerações atrás. Pouco restava do tapete original, nada do esqueleto. Talvez alguém tenha levado o corpo, legalistas ou saqueadores de tumbas. Havia quem afirmasse que os ossos do último rei de Valmedor estavam espalhados em relicários de saudosistas por todos os Reinos do Sul.

- Certamente não é mais urgente do que meu trabalho. Você sabia que esse tipo de memória só se replica uma vez por dia, no horário exato em que aconteceu?

O garoto parecia nervoso. Abria a boca, mas não conseguia saber falar. Recusava-se a tirar os olhos do chão, o chapéu felpudo da milícia amassado nas mãos como um adolescente entrando pela primeira vez em um prostíbulo.

Huirau suspirou de irritação.

- Quem morreu?

- locchava Tangiwai.

O historiador se levantou.

- Uma locchava?

O guarda confirmou com a cabeça.

- E por que você não me avisou antes?

Huirau passou pelo guarda e a porta dupla de volta para o corredor. Nenhum dos soldados legalistas estava aqui. A memória registrada naquela lugar estava novamente adormecida entre as muitas camadas de história lembradas por suas pedras.

Emergiu do túnel pela fenda aberta na muralha enterrada sob toneladas de neve e gelo, os passos apressados do guarda seguindo-o logo atrás. Do alto daquela montanha branca Huirau podia ver as luzes da cidade estendendo-se até a costa gelada. Sumeru pulsava com o mesmo tom esmeralda da energia arrancada do último rei de Valmedor, lançando luz e calor que o sol era incapaz de produzir tão ao sul do mundo. A Longa Noite já havia começado havia semanas, trazendo com ela o frio que nem o monolito milenar parecia capaz de rechaçar. Em tempos assim as ruas da cidade não eram mais tão seguras, especialmente não após a baía congelar, prendendo nos Onze Reinos os estrangeiros que nada entendiam sobre aquele continente.

Um grupo de imigrantes sazonais alocados pelo Ministério dos Trabalhos avançou com ferramentas e carrinhos para selar mais uma vez a entrada atrás de Huirau. Dispersariam logo, deixando para trás apenas os milicianos do Ministério da Justiça, selecionados entre os próprios cidadãos de Duralam. Não que houvesse muito mais para ser saqueado no Palácio Branco, mas o Ministério do Conhecimento queria evitar que aventureiros estrangeiros fizessem um estrago no interior das ruínas ou deixassem lá alguma memória persistente. Huirau não via problemas com a decisão. Odiaria que outro fizesse uma descoberta que era sua por direito.

- O que você sabe sobre o caso?

Embarcaram na carruagem aguardando no sopé do morro. O miliciano deu o sinal para o cocheiro, que estalou o chicote. Os iaques puxaram a carruagem pela rua gelada na direção da cidade abaixo.

- Ela foi encontrada morta em um beco de Costa Flores, estrangulada.

- Testemunhas? - perguntou Huirau, recolocando as luvas de lã e o chapéu.

- Nenhuma.

Huirau torceu o lábio em um arremedo de sorriso.

- Veremos sobre isso.  

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