Com uma torrada no prato, subo as escadas em direção ao gabinete da galdéria.
— Toma lá seu imprestável monte de ranho — digo eu, atirando o prato à cara da mulher.
— Ai!! Cuidado!
— O que é que queres para o jantar? — pergunto com desdém.
— Da maneira como tens andado, mais vale comer noodles.
Fecho a porta com força, e o pobre cachorro estava à minha frente, com uma carinha tão querida que até apetece morder.
— Anda lá meu lindo, vamos arranjar-te alguma coisa para comer.
Ambos descemos as escadas, e com os meus poderes telepáticos, estabeleci uma ligação com o telemóvel de George.
— Diz, Elizabeth — atende ele com um ar distraído.
— Olá senhor. Estou a ligar-lhe porque estou com dúvidas sobre o que fazer para o jantar.
— Uau, Elizabeth, estás a falar do teu telemóvel? É que estou a ouvir-te tão bem! É como se estivesses à minha frente.
— Estou senhor.
— Bem, acho que podes fazer uma lasanha ou assim. As tuas lasanhas são as melhores.
— Muito bem senhor, vou já começar a tratar disso. Até logo.
Vou ao andar de baixo, coloco a nave no meu bolso, e antes de sair de casa, carrego no intercomunicador ao pé da porta e digo:
— Vou às compras. O George quer comer lasanha.
— Tanto faz — responde ela.
Ando um pouco pelo passeio fora de casa, e quando sei que ela está fora do meu alcance da vista, atiro a nave para a estrada e começo a conduzi-la, com o carro que normalmente levo para o supermercado: um Volkswagen Golf dourado.
Na loja, procuro tudo o que necessito para a lasanha: a massa, o molho de tomate, natas, queijo, carne, e mais umas coisinhas para a sobremesa.
A caminho da caixa, sinto uma mão a puxar-me.
— Larga-me ou arranco-te a garganta!! — grito eu, fazendo toda a gente olhar para nós
— Tia, sou eu.
— Ah, meu querido sobrinho! Como estás tu?
— Eu estou bem, mas o Terry nem por isso. Teve um acidente de mota e agora tem a perna partida.
— Ah — guincho eu — Como é que uma coisa dessas foi acontecer ao teu irmão? Ai, triste destino. Vamos ter com ele agora mesmo.
— Mas tia, tu tens que fazer o jantar para os teus patrões. A viagem para Elitrópolis demora pelo menos 3 horas.
— Oh querido. Vê-se mesmo que não estás habituado a viajar comigo. Vamos imediatamente ter com o teu irmão ao hospital.
Chegamos a Elitrópolis num abrir e fechar de olhos. Eu já estou com o meu disfarce, e o meu sobrinho parece estar a babar-se para mim quando me vê.
— Olha as maneiras, Jonathan. Não te esqueças que sou tua tia. Apesar de ser muito mais nova que tu.
— Ah, Governadora Dunn! — a mulher da recepção parece engasgar — Não esperávamos recebê-la aqui no hospital — levanta-se da cadeira e faz-me uma vénia.
— Deviam estar, eu posso aparecer a qualquer momento — faço um sorriso provocador — O meu sobrinho, onde está?
— O seu sobrinho, Governadora?
— Terry Mark — responde Jonathan ao meu lado.
— Ah sim. Ele está no quarto 413.
Assim que a mulher nos diz o número, seguimos imediatamente, sem sequer ouvirmos o que ela tinha para dizer. Ao chegarmos ao quarto andar, procuramos imediatamente o quarto onde estava o meu sobrinho mais novo.
— Governadora! Peço imensa desculpa, mas o seu sobrinho não está pronto para receber ninguém, no momento.
— Eu posso entrar quando eu quiser. Serei obrigada a dizer quem é que não me deixou entrar?
— Não, governadora, peço imensas desculpas.
— Bem me pareceu — respondo a virar costas.
— Uau — diz Jonathan, enquanto precorremos o corredor dos quartos.
— O que se passa, sobrinho?
— Não estás nada igual. Quero dizer, já não tens aquele estilo envergonhado. Agora és toda "eu faço o que eu quero" e "eu quero, posso e mando".
— Mas isso é porque eu quero, posso e mando. Antigamente eu também queria, mas não podia nem mandava. Toda a gente muda com o poder, Jonathan. É inevitável.
Chegamos por fim ao quarto de Terry. Quando olho para ele, vêm-me as lágrimas aos olhos.
— Porque é que ele está com os olhos fechados? — pergunto eu a uma enfermeira que lá estava.
— Ele está em coma induzindo. Quando caiu, o osso da perna saiu quase completamente — diz.
Imediatamente, reparo na sua perna, que está segura por um pêndulo no teto. Paço a minha mão por cima da perna. Ele não reage, como seria de esperar. Fecho os olhos, e umas fortes luzes azuis fazem-se sentir mesmo quando tenho as pálpebras fechadas.
Ao abrir os olhos, reparo que Terry também está a abrir os dele.
— Jonathan? — pergunta ele, por não me reconhecer.
— É a tia, meu querido.
— Doutor, doutor! — grita a enfermeira para de o corredor. O doutor aparece imediatamente.
— Enfermeira, reinicie as máquinas. Alguma coisa correu mal.
— Alguma coisa correu mal? O que raio é que está a dizer? O meu sobrinho está lesionado e acabou de acordar do coma.
— Governadora, é um prazer estar na sua presença — faz-me uma vénia juntamente com a outra enfermeira.
— O prazer é todo seu.
— O que se passa é o seguinte, Governadora: o seu sobrinho estava num coma induzido, que é a única maneira de ele não sofrer.
— Pode estar descansado, ele já não tem dores.
— É verdade — interrompe Terry — É como se a minha perna estivesse novamente no lugar.
— Enfermeira, leve o paciente para o raio-x.
— Eu posso ir — sem mais nem menos, Terry levanta-se da cama, como se a sua perna engessada fosse apenas um adereço. O doutor continua a olhar para mim.
O que é que se passa, vives numa caverna, querido? Eu tenho poderes.
Passado um pouco, o meu sobrinho largou a bata de hospital e está agora com as suas roupas normais.
— O seu sobrinho já tem a alta — responde o médico segurando o ombro de Terry — Governadora, devia considerar vir aqui ao hospital.
— Terei a certeza de que coloco em injeções algum do meu poder para doar ao hospital em situações para os mais necessitados.
— Isso seria fantástico, Governadora. Muito obrigado.
— Eu é que agradeço — apesar de não teres feito nada.
— Tia, obrigado por me teres vindo ajudar. Estás muito bonita.
— Oh querido, eu sei. Bom, vamos lá levar-te a casa. Dêem-me os dois as mãos.
Em menos de nada, estamos em casa do meu sobrinho mais novo, remodelada e completamente diferente.
— Uau, remodelaste o sítio?
— Sim, arranjei um emprego novo — diz ele abrindo as cortinas.
— Sim? Qual é?
— Trabalho na associação de apoio de Intrusos.
O meu coração para.
— O QUÊ?
— Eu sei que és contra isso.
— Eu sou TOTALMENTE contra isso. Nem acredito que um sobrinho meu realmente apoie isso.
— Mas tia, tu não percebes — começa a sussurrar — Eu também sou contra isso.
Faço uma cara do tipo "what the hell"
— A única razão porque estou lá e porque eles pagam incrivelmente bem. Tão bem. Recebo E$8.000 por semana.
— Uau, isso realmente é imenso.
— Eu sei! Consegui dinheiro para remodelar a casa em 2 meses.
— Bem, se dizes que és contra isso... Eu apoio-te.
— Obrigado tia. Para além disso, com 75 anos o que se quer e aproveitar o resto da nossa vida ao máximo.
— Muito bem então. Quando tiver vagar, venho aqui fazer-te uma visita mais proveitosa. Agora tenho de ir, senão a minha assistente descobre que eu estou aqui e vem-me buscar para eu tratar das coisas do governo.
— Está bem então. Fico à espera.
Damos um abraço que me aquece a alma.
— Ah, Jonathan, esqueci-me de ti — digo eu a por a mão na testa. Despeço-me dele, e abano a mão para o levar à sua casa.
Digo adeus mais uma vez ao meu sobrinho mais novo e volto ao supermercado.
Uma das melhores coisas desde que o Mestre me pôs este dispositivo, e poder parar o tempo enquanto estou em Elitrópolis. Por isso, ao voltar à loja, vejo toda a gente parada, ainda a olhar para a comida caída do meu cesto.
Ajeito-me e abano a mão, apagando a memória de toda a gente.