A CAPELA

By jheffersonautor

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QUERIDOS LEITORES! A CAPELA - ficará em degustação a partir de 18 de Setembro. Depois desta data, somente na... More

Esclarecimentos
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
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CAPÍTULO UM

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By jheffersonautor

— E se vendarmos os olhos?
— O quê? — Anna quase não escutou o que Marcelo tinha perguntado. Apenas “...os olhos”. Seus pensamentos e sentidos estavam praticamente ligados àquela porta velha e caindo aos pedaços daquela esquecida capela. Horas antes naquela manhã, ela acreditava que não sobreviveria a outro dia. Os nervos à flor da pele. O medo de dormir a fez ficar acordada por quase dois dias. Acha que foram mais dias. Os dias parecem se misturar e o tempo parece não significar mais nada. A fome e a sede batendo lá no fundo como uma pedra caindo em um poço seco. Pensa frequentemente em massas. Ela adora macarronada. Lasanha. Sua língua está tentando molhar seus lábios secos e rachados. Ela fecha os olhos e está imaginando comendo. Foda-se as dietas da porra da academia. Beberia litros de refrigerante. No entanto, ali estava. Apesar de tudo isso ainda resistia. E a vontade que sentia agora era de como gostaria de abrir aquela porta e ir para casa. Nessas últimas horas, pensou em como seria fácil abri-la e sair correndo sem olhar para trás até o Jeep do Lucas abandonado no acostamento de terra à beira da estrada. No entanto, toda vez que estava prestes a fazer aquilo, as lembranças de seus amigos sendo arrastados por algo que ela não conseguiu ver a fazia se acovardar. Lucas viu!, ela pensa assustada. E ficou pior do que já estava e não falou com mais ninguém antes de ser pego.
— Viu o que aconteceu com Lídia? Com Brad? E o Lucas? Enlouqueceram. Sei lá, acho que isso tem a ver com o medo, entende? — Marcelo olha de lado, olhos aflitos, e diz, com medo de ser ouvido: — E se-gre-dos. Vamos fechar os olhos, vamos cair fora daqui. O que acha?
Anna pensa: Fugir? E do quê?
Ela observa o amigo por um momento. Os olhos dele estão brilhando de empolgação com a ideia. E mostra um sorriso estúpido e ela sabe que isso é a nuvem silenciosa do medo que está cada vez mais carregada nele. O medo pode transformar alguns homens covardes em feras, mas no caso de Marcelo, Anna acha que foi deixá-lo mais frouxo ainda.
— Você quer vendar os olhos e ainda sair daqui, onde estamos protegidos, e correr às cegas nesse canavial?
— Uau! — Marcelo está franzindo a testa, surpreendido. Ele estala os dedos. — Você pega rápido! Já que não temos nenhuma venda, só teríamos que usar nossas camisas. Rasgar pelo menos um pedaço para vendar os nossos olhos. Não podemos confiar em nós mesmos apenas fechando os olhos. A tentação da curiosidade em ver pode ser demais.
Ela considera a ideia. E aquela ideia, além de idiota, era assustadora. Anna se imagina correndo feito uma doida, com uma tira rasgada de sua própria camisa vendando os olhos, através daquele canavial. E a sensação de ser tocada por algo que não sabe e nem consegue ver é ainda mais aterrorizadora. Até uma folha tocando na sua pele transmitindo essa terrível sensação seria desastroso. E se houvesse alguma chance? Será que conseguiriam? Não deveriam tentar? Mas, colocar em risco a ‘segurança’ daquela capela abandona? E o risco de um acidente enquanto corriam às cegas? De repente, sente-se terrivelmente despreparada. Sabe que se levar adiante aquela ideia de vendar os olhos, estará fazendo aquilo pelo desespero e o medo. É o que a faz se sentir insegura e acuar. Entretanto, tem um lado dela que acolhe a ideia e quer fazer isso. E o medo dela, naquele momento, se torna algo tão perigoso quanto o que os espreita lá fora. Ela pensa em Lídia, Brad e Lucas.
Seus olhos não estavam diretamente em Marcelo, mas encarava a velha janela tapada por uma tábua de madeira que mais parecia uma folha fina de papel se deteriorando.
— De onde tirou essa ideia?
— Foi de um filme. — Ele fecha os olhos e balança a cabeça. — Não, não... foi de um livro. É, foi isso. O Lucas me emprestou... você sabe o quanto ele era meio viadinho com essa coisa de leitura. — Marcelo dá um risinho, não pausa por muito tempo e atropela suas lembranças com uma frase determinada: — Era sobre uma mãe e seus filhos. Depois de quatro anos trancados em casa decidem tentar a sorte e fazem exatamente isso: vendam os olhos e saem de barco por um rio para tentar a sorte.
— E o que havia lá fora para passarem trancados e com os olhos vendados?
Marcelo pensa. Dá de ombros.
— Não sabiam, mas bastava uma olhadela e a pessoa era levada a atos mortais de violência.
— Está bem. — Anna ergue uma mão num gesto de um guarda de trânsito. Um sinal de que a paciência dela já chegou ao limite. Ela lambe os lábios secos. Está com sede e falar deixa a garganta mais seca. Ela engole em seco. — E você quer que façamos isso baseado num livro ou em algum filme?
— Sim. — ele cora e dá um sorriso constrangido.
Anna fecha a cara. Seu olhar é de reprovação.
— E você já pensou que há a possibilidade de um acidente como uma queda ou uma simples torção?
— Não, mas...
— Já pensou na possibilidade de estarmos correndo na direção errada e acabar mais fundo nesse canavial ou direto para a coisa que pegou nossos amigos?
— Anna, eu... — Marcelo abaixa os olhos.
A raiva irrompe nela.
— E se essa coisa estiver esperando por uma burrice dessas? Já pensou nisso tudo? Não? Eu pensei! Ah, fala sério, acorda pra vida! E para de viver no mundo da lua! Não estamos na porcaria de um filme americano ou em algum livro de ficção, Marcelo!
Ele ergue os olhos.
Por um segundo, Anna percebe nos olhos dele a vontade de atacá-la.
— Então o que faremos? — não fora uma mera pergunta, mas um desafio. Anna percebe na voz dele um aborrecimento. E os olhos ofendidos dele dizendo: Faça melhor!
Agora ela está olhando a porta apodrecida. É muito antiga e parece que a qualquer instante vai se desfazer em pó. Ela nota uma fenda de pouco mais de dez centímetros de comprimento por três centímetros de largura em posição vertical na porta velha. A curiosidade é como uma coceira que Anna precisa coçar. Quer olhar através daquela fenda. Ela encara a fenda e a sensação de estar sendo observada a faz se acuar.
Marcelo não vê e nem percebe, mas os olhos dela estão carregados de desconfiança e a nuvem silenciosa do medo que ameaçava seu amigo, agora está se aproximando dela. Ela sente uma agitação e não consegue entender o que é. É indescritível. Uma cena de sua infância invadiu sua mente; o terço que sua mãe sempre carregava consigo. A lembrança foi como uma pedra caindo num lago.
Ela se sente perturbada com aquela lembrança. A sensação é de vespas em seu estômago.
Anna suspira e sem a menor convicção na voz, diz:
— Esperar...
Ela baixa os olhos para as unhas das mãos. Passa a língua nos lábios. E leva o polegar esquerdo à boca. Roendo as cutículas.

††

— Estranho... — Anna está pensativa e a expressão em seu rosto, branco rosadinho detonava preocupação e um sutil, mas crescente medo. No entanto, esse medo não era nada comparado ao que seus amigos passaram. Amigos que não estavam mais presentes. Amigos que se perderam e não voltariam porque lá fora estava Ele. E Ele desejava ela e seu único amigo, Marcelo. E era apenas uma questão de tempo para Ele os apanhar.
— O que é estranho?
— Não percebeu?
— Não sei do que está falando.
— Escute — Anna levanta um dedo pedindo atenção. — Está tudo quieto. Não há barulho de folhas. Sem ventos. Não há som de pássaros. Nenhum inseto para nos atazanar. Nada.
Marcelo fica quieto e tenta escutar qualquer som. E identifica um: a sua respiração aumentando junto com o medo crescente e silencioso.
— Muito, mas muito estranho... — voltou a dizer e dessa vez pareceu cuidadosa. Ela estava toda suja e machucada. Cortes recentes, que ainda ardiam, superficiais em diversos ângulos, filetes avermelhados e enrugados na pele dela. A camisa branca era agora uma lembrança de uma camisa branca. Estava rasgada. A calça jeans também estava imunda. Ela se lembrou de um tropeço enquanto corria d´Ele. E o rasgo na camisa? Foi puxada? Enroscou em alguma coisa? Só sabia naquele momento era que as lembranças pareciam um lago. Só que ela estava dentro desse lago. Seu ar acabando. Desesperada para descobrir em qual direção nadar. Não conseguia saber se estava descendo para o fundo ou subindo para a superfície. Tudo era sujo diante de seus olhos.

Ela estava sentada no chão sujo daquela capela abandonada no meio do canavial. Uma construção religiosa em ruínas, mas ainda ‘abrigável’. A cruz, ali plantada acima da entrada principal — e única. Amém! — agora era a forma de um T. Apesar de estar se esfarelando, a capela era a poderosa resistência protetora daqueles desafortunados.

— Droga! — resmunga Marcelo sentado no que fora um altar de preces, onde agora era um pedaço de pedra com restos da cera de velas já há muito queimadas.

— Estamos nessa porra e...
— Olha a boca! — repreende Anna Ferreira aborrecida e quase perplexa de pavor. — Seu mal agradecido! Deus o acolhe em sua humilde casa e é assim que retribui? É assim que agradece por Tê-lo salvado sua pobre vida viciada?

— Ei! — Marcelo ergue as mãos rendidas. — Não precisa falar assim! Só estava pensando em um baseado. E isso não é tão ruim assim! Você mesma já deu algumas puxadas! Sabia que uma pesquisa mostrou que a maconha pode aliviar a cólica menstrual?

Anna o encara, balança a cabeça e torce o nariz.
— E não acredito ainda que perdi o Marley.
— Quê? Quem?
— É meu isqueiro! Tem o Bob Marley desenhado.
Anna revira os olhos.
— Não sei por que ainda pergunto.
Marcelo dá uma pausa para continuar com uma expressão preocupada:
— Está ficando cada vez mais difícil. Estamos aqui há três dias, Anna! Estou com muita fome. Não sei até quando vou resistir ficar aqui trancafiado!
Ele coloca a mão na frente da boca, indiferente se Anna olhava ou não, e dá algumas baforadas para sentir o hálito de dias sem escovar os dentes. Fez careta. Ou talvez morra apodrecendo, pensa ele.
— Vamos resistir! — disse ela levantando e se dirigindo para a porta apodrecida da capela. Seus cabelos loiros estavam embaraçados, sujos e havia pedaços de folhas de cana. Ela tirou. — E faça uma oração para pagar essas palavras sujas que pronunciara aqui na casa do Senhor Deus. Deveria rezar um Pai-nosso e uma Ave-Maria.
— Oh que maravilha! — Marcelo ergue as mãos com uma careta de desagrado. — Agora ela se converteu a Santa Anna!
E foi justamente em homenagem a essa santa que minha mãe me deu esse nome, pensa Anna.
Marcelo dá um risinho descontente e chateado, mas havia ironia na recém descoberta religiosidade de Anna. Pra ele era até surreal. Anna uma religiosa? Anna Ferreira? Essa Anna? Há-há-há! Conta outra, vai?
— Pô! O que não daria por uma pontinha? Só um baseadinho para relaxar!
— Então vai lá fora e ofereça alguma parte de você em troca de um baseado para Aquilo que comeu a Lídia, Lucas e o Brad!
Marcelo fez outra careta às costas dela. Anna espiava para fora através daquela fenda na porta. A vista não era das melhores, mas era de alguma forma reconfortante olhar através daquela fenda e descobrir depois de três dias — durante todo esse tempo não ousaram nem em pensar chegar perto daquela porta — que havia um mundo lá fora. Um mundo de cana de açúcar.
Anna recorda que tudo começara quando Lídia acordara de um cochilo de apenas dez minutos aos gritos por causa de um pesadelo. Aquele pesadelo deixara todos assustados e receosos com o estado em que Lídia ficara. Ela parecia ter enlouquecido. Enquanto espiava lá fora, Anna se perguntou se seria possível uma pessoa enlouquecer depois de um pesadelo realmente ruim. Ela — agora por experiência própria — acreditava que sim. Mas enlouquecer até que ponto? Até que nível, talvez, seria a palavra correta. Ela mesma não estaria louca? E quem não ficaria? Ser caçada por algo que não se pode ver não é tão comum assim. Lídia ficara perturbada e depois disso? Foi o inicio, mas não o problema de verdade. Algo aconteceu depois. E ela não consegue se lembrar. Tudo estava confuso. Ela mesma não tinha certeza se essa recordação de Lídia era real ou apenas a mistura de dois ou mais fatos ocorridos. Poderia nem ter acontecido.
O silêncio que caiu dentro daquela capela logo a seguir foi macio como algodão. Eles ficaram calados por um bocado de tempo. Anna pensando naquilo que havia lá fora, espreitando-os. A lembrança do terço de sua mãe como um prego enferrujado na carne. Porém, algum tempo depois do pensamento dela passar para algo melhor do que aquilo, Marcelo falou, com a voz distante, num devaneio como achava Anna.
— Tive um amigo que certa vez, depois de anos e anos de amizade, declarou-se completamente apaixonado por mim. — Marcelo calou-se um instante para que suas palavras fossem absorvidas com mais calma por Anna, que as recebeu com surpresa. — O nome dele era Jorge. Fomos criados como irmãos. Ele dormia em casa quase a semana inteira, praticamente o mês inteiro. Brincávamos de todas as brincadeiras que conhecíamos. Se não houvesse mais com que brincar e enjoávamos daquela ou de todas as brincadeiras, inventávamos alguma nova. Enfim, os anos foram atingidos conforme as metas e estratégias de um jogo de xadrez. Porque nossa vida é formada de acordo como e quando tomamos as decisões que achamos mais importante para nós. É como mover peças num tabuleiro. A peça mexida errada irá prejudicar as demais.
Agora virou intelectual, pensa Anna. Só que não! Apenas intelectualmente maconhado.
— Quando alcançamos a idade adulta tudo começou a mudar. — continua Marcelo. — Passamos a ser rivais em certas coisas que nos obrigavam a ser assim. Mulheres. Futebol. Disputas masculinas. Entendeu?
Anna apenas assentiu. Ainda meia que desconfiada com aquela revelação da vida de Marcelo.
— Mas, com as mulheres Jorge era diferente. — continuou Marcelo. — Ele era um homem bonito e muito atraente. Isso o deixava sempre com muita vantagem. As mulheres, às vezes, pareciam enlouquecer por ele. Era impressionante. No entanto, Jorge detestava as mulheres. Detestava? Não, sentia repulsa por mulheres. Ele nunca ficava com nenhuma delas. Pelo contrário, as menosprezava. Tratava-as com grande estupidez e em algumas vezes com violência física. Houve uma ocasião em que uma garota roubou um beijo dele. Jorge bateu nela. Se eu não tivesse lutado com ele, a garota poderia ter se machucado feio. Foi aí que comecei a ficar atento, a observá-lo com cautela. Comecei a entender que não era a questão dele ter sido beijado por aquela garota, Anna. Gostaria de estar errado, mas não estava. Ele me desejava. Aquele beijo para Jorge fora como uma traição e ele queria mostrar ali, agredindo a garota, que não fora sua culpa, mas que de alguma maneira... oras, você entende?
A expressão de Marcelo foi tomada de aborrecimento e infelicidade.
— Sim — disse Anna, um pouco hesitante, e ainda não entendendo a razão de Marcelo estar dizendo aquilo para ela.
— Então, as coisas ficaram mais... — Marcelo parou, vagalumeando os pensamentos para encontrar uma palavra que fosse adequada. — Perigosas? Não. Talvez não seja a palavra exata, mas é que expressa melhor o que estava acontecendo entre nós. Um relacionamento perigoso. Apesar de não estarmos nos envolvendo do modo como se envolvem as pessoas do mesmo sexo ou mesmo do sexo oposto. Mas para Jorge já era o suficiente. Era isso que tornava a situação perigosa porque estava sempre me perguntando como seria se aquilo acontecesse mesmo. Quando Jorge chegaria e se declararia? Quando? Quando Jorge tentaria me abraçar daquela maneira diferente? Quando Jorge iria tentar me beijar? Eu estava com medo e ao mesmo tempo curioso. Às vezes, me flagrava pensando em Jorge. Em seus gestos mais simples. A maneira como falava. Seu sorriso. Em seu corpo. Sonhei uma vez que estava nu e enroscado naquele corpo forte e bonito. Aquele sonho me desesperou e senti um nojo violento de minha própria pessoa. Anna, eu não sabia o que pensar e o que fazer para me livrar daquela situação!
Marcelo parou, dando um suspiro de infelicidade. Anna apenas ficou calada e esperando.
— Quando uma mulher abraçava-me ou mesmo falava comigo, Jorge ficava atacado de ciúmes. — continuou. — Só que deixava transparecer o ciúme para todos ao nosso redor. O nosso “caso” — nesse ponto fez o sinal de aspas com os dedos das mãos — estava passando as barreiras do perigo. Estava beirando os caminhos da obsessão. Minha família começou a ficar desconfiada, mas permaneceram calados e nunca disseram nada. Eles pensavam ou até mesmo poderiam estar discutindo o que seria o nosso “caso amoroso”, mas nunca ouvi nada, nunca chegaram a falar comigo sobre isso. Eu sabia. Eu sabia, porra! Ninguém nunca chegou a mim! Ninguém! Eu queria que chegassem! Que perguntassem! Que me ofendessem e até desejei que me espancassem! Mas nunca falaram nada! Nunca!
Marcelo pausou mais uma vez, tomando fôlego. Ele estava lutando para não chorar, mas os soluços estavam ficando cada vez mais intensos. Passou as mãos no cabelo e deu dois longos suspiros, chateado e com raiva por estar revivendo tudo aquilo, por estar falando algo que deveria estar, talvez, superado ou esquecido. Marcelo estava sofrendo. E Anna sentiu muita pena dele e também sentiu-se envergonhada por ser incapaz de dizer palavras de conforto, de consolar com gestos de amistoso carinho sem ter que pensar que a pessoa poderia entender diferente. Ela também tinha medo. Mas medo do que, de quê? Droga, ela mesma não conseguia entender a si própria! Como iria explicar para si mesma que estava sentindo e passando em seu coração se não sabia? Ela era uma estranha para si mesma. Fora assim desde a infância; insegura.
— Então, aconteceu, Anna. — Marcelo parou de novo esperando alguma reação dela, mas não houve nenhuma. Apenas ficou quieta. — Aconteceu o que temia. Aconteceu o que ansiava. Ele chegou abraçando-me por trás. Ficamos assim por algum tempo. Era excitante e ao mesmo tempo sentia repulsa. Eu queria soltar-me de seus braços e esmurrá-lo até a morte, mas ao mesmo tempo desejava que me apertasse com mais força para que eu pudesse sentir mais o seu calor, sua força. Foi aí que Jorge me virou e me beijou. Não lutei contra seu beijo. Beijei também. Sua língua. Seus lábios amaciando os meus. Seu corpo forte. Fizemos amor, Anna.
O silêncio despencou como as garras de uma ave de rapina. Aquele silêncio pareceu perdurar por horas.
— Foi a melhor trepada da minha vida. — o silêncio novamente. Aquilo estava ficando desagradável para Anna. Ela estava ficando nervosa e envergonhada. Naquele instante, ela queria gritar.
— Isso me torna um gay? — pergunta e não houve resposta. — Não terei deixado de ser homem por ter transado com outro homem? Claro que não, porra! Foi uma experiência agradável e ao mesmo tempo desagradável para mim. Qual pessoa nunca sentiu, mesmo que lá no fundo, uma curiosidade de saber como é?
Eu nunca senti, pensa Anna. Pensa em Lídia. Marcelo foi afim dela algum tempo atrás. Obviamente bem depois desse “caso” dele.
— Não um desejo, mas uma vontade. — continua Marcelo. — Apenas uma curiosidade. Até em pensamentos poderia ter acontecido. Não deixei minha masculinidade. Apenas aconteceu.
Marcelo calou-se.
Silêncio. Isso deixa Anna incomodada. O silêncio daquele lugar de alguma forma começou a afetá-la.
— Por que me contou tudo isso, Marcelo? — pergunta Anna suavemente, quase carinhosamente já entendendo que o que dissera era uma confissão. Ele precisava soltar de alguma maneira os sentimentos enjaulados dentro daqueles três dias na capela sem saber o que realmente aconteceu naquele canavial com seus colegas e o que acontecia agora com eles.
Marcelo ficou ali cabisbaixo num silêncio que sufocava sua amiga. Então, de repente, ele prorrompeu em lágrimas. Aquelas lágrimas causaram um impacto desconcertante e um sentimento cheio de dó em Anna. Ela havia feito menção de chegar mais perto e abraçá-lo, dar-lhe algum consolo, mas não faria isso. Não podia fazer isso porque acabaria em caminhos que não podem ser seguidos. Caminhos que levariam ao fim de ambos. Ela estava sendo tentada. Marcelo era fraco. Ela estava sendo infectada pela fraqueza dele. E se aquilo acontecesse ali dentro, a fortaleza ruiria.
A imagem do terço de sua mãe, mais uma vez, veio em sua mente. 
— Porque... — soluça ele e Anna acha que não conseguiria falar mais nada, apenas chorar. Porém, ele falou.
— Porque preciso falar! Porque não aguento mais essa situação! — Marcelo começa a gritar. — Porque quero ficar vivo e não ser devorado como os outros! Estou cansado dessa merda toda! CANSADO!
— E ficar e agir desse jeito vai resolver? — pergunta ela calmamente, com respeito ao estado emocional dele. — É a solução?
Mantenha-se calma, pensa ela. Ai, meu Deus! Não se desespere agora! Seja firme!
— Não sei! Não sei! — balançava a cabeça de um lado para o outro e algumas lágrimas chegaram a escapar de suas faces, voando e algumas gotas caíram em Anna, que ficara indiferente a isso. — Não... não sei!
— Pare com isso, Marcelo — Anna fala com a mesma suavidade, mas manteve uma postura severa com as palavras. — Não irá resolver o nosso problema ficando assim! Não nos salvará Dele! Aquilo está em algum lugar por perto, à espreita. E é isso que Aquilo quer, Marcelo. Fazer-nos perder um ao outro. Temos que resistir! Vamos vencê-lo! Àquilo não irá fazer conosco o que fez com Lídia, Brad e Lucas!
E sua mente rebobinou para passar mais uma vez o momento em que Lídia foi arrastada pelos cabelos para dentro daquele canavial sabe se lá por quem ou que coisa. Os berros dela. O desespero e a agonia dela em perfeita sintonia com a de Brad correndo atrás. Ele dando saltos para conseguir agarrar a perna de sua namorada. Mas suas mãos escorregaram e o que conseguiu salvar foi apenas o tênis dela.
Anna ainda viu nesse vídeo em sua mente que também gritava com as mãos agarradas ao cabelo. E Lucas tinha desmaiado. Tudo ainda está confuso em sua mente.
Lucas viu. Ele foi o único que viu.
— O que acha que Lucas viu? — pergunta Marcelo tão de repente que Anna se assusta. Naquele momento, sentiu-se invadida. Como se seus pensamentos fossem algo físico e público que qualquer um podia ver e tocar.
Anna olha para Marcelo. Pensa a respeito. Ela não sabe. Dá de ombros.
Ele baixa os olhos para o chão sujo.
O silêncio chega e se tornará, em algumas ocasiões, companheiro deles.
— Você acha que vamos morrer?
— E você quer morrer?
— Não. Não desse jeito.
— Nem eu. Vamos viver! Mas temos que acreditar um no outro! Temos que acreditar em nós mesmos! Temos que acreditar em Deus, Marcelo! É com a fé Nele que nos faz acreditar em nós mesmo! Que me faz acreditar em você! Que fará você acreditar em mim! Agora chega de lágrimas e vamos mostrar para a coisa lá fora que se meteu com as pessoas erradas! E dar-lhe uma grande lição!
— O que tenho que fazer? — a pergunta veio como uma súplica.
— Reze — responde ela num tom de voz cheia de determinação. — “Seja forte e corajoso. Não se apavore, nem desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar”.
Josué, capítulo um, versículo nove, pensa ela.
Anna fica surpresa com suas lembranças. Ainda estavam frescas com os textos da bíblia que sua mãe sempre a fazia estudar e decorar. Todo dia tinha que ler um versículo em voz alta para ela.
— Reze comigo.
Marcelo, então, a acompanhou enquanto ela recitava Provérbios:
— “Confie no Senhor de todo o teu coração e não se apoie em seu próprio entendimento. Reconheça o Senhor em todos os Seus caminhos, e Ele endireitará as suas veredas”.
E assim passaram aquele dia ensolarado e quente rezando.

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