A luz roubada de Tracunhaém

By FelipeGaze

54 7 9

Macuxi acreditava que a única maneira de recuperar a luz roubada de Tracunhaém era cravar no peito do ladrão... More

A luz roubada de Tracunhaém

54 7 9
By FelipeGaze

Macuxi sabia que Teju Jagua era poderoso, mas não imaginava que ele poderia, um dia, fugir para bem longe carregando toda a luz que esquentava e alimentava as terras de Tracunhaém.

Teju Jagua, a grande serpente bondosa que Macuxi conheceu ainda criança, num rompante inexplicável, talvez por inveja ou ciúmes, traía seu próprio povo fugindo para um lugar desconhecido e deixando de herança um mundo gelado e sombrio. As colheitas e a prosperidade das tribos, nutridas e protegidas no passado pela bondade e pelos poderes de Teju Jagua, sucumbiam à decadência e à morte nas noites de frio sem fim.

E foi o transtorno dessas noites e a traição do antigo amigo que há muito fizeram Macuxi perder a noção do tempo que passou errando pelas matas serradas e as depressões e vales das montanhas e das terras que se perdiam sob a manta negra e imaculada que se transformou o céu com o roubo de Teju Jagua. Macuxi percorreu e abriu muitas trilhas numa escuridão quase absoluta não fosse o fraco brilho de algumas estrelas e os urros lampejantes de Tupã

Em vão.

Teju Jagua não foi encontrado e Macuxi não pôde encarar os olhos desonrosos do traidor e tomar de suas mãos escamosas a luz que arrancou das aldeias de Tracunhaém, ainda que o índio soubesse que a única certeza num confronto com a besta de poderes mágicos seria o encontro com sua própria morte.

Macuxi descansava num chão de seixos arredondados. Uma nostalgia amarga e rancorosa lhe trazia à mente as tardes que praticava, ainda jovem, os lançamentos de pedras com seu bodoque de pau de goiabeira com o também jovem amigo Teju Jagua. A destreza que sobrava a Macuxi no arremesso da flecha pelo arco e o cipó, faltava-lhe com o bodoque. As pedras que quase nunca acertavam o alvo eram a razão das longas e estrondosas gargalhadas de Teju Jagua, perito no lançamento com o bodoque até mesmo dos mais deformados cascalhos.

O índio se sentia culpado por saber que ainda nutria saudades daqueles bons tempos com Teju Jagua, quando tudo era mais simples em Tracunhaém e as noites tinham hora para sair. E voltar. E sair novamente. A dor da culpa em seu peito o fez, ainda que não fizesse muita diferença, fechar seus olhos. Macuxi encostou a cabeça num seixo mais liso e tentou adormecer.

Ele não sabia por quanto tempo adormeceu. Isso já não importava. Muita coisa já não importava. Despertou quando sentiu na face uma rajada de vento violenta e viu, ainda meio sonolento, um grande falcão de plumas negras batendo suas asas majestosas se transformar num forte índio.

Era Xandoré, que nas mãos trazia uma flecha.

─ Veio zombar da nossa desgraça, novamente? ─ ainda que a escuridão o permitisse, Macuxi não olharia nos olhos de Xandoré.

─ Sei onde está Teju Jagua. ─ disse Xandoré, sucinto.

Macuxi ficou em silêncio, agora mirando o falcão negro que se transformou em homem.

─ E você pode acabar com tudo isso, em breve. Nenhum outro em Tracunhaém domina o arco e a flecha como você.

Xandoré entregou a Macuxi a arma que tinha em mãos.

E continuou:

─ A garra do gavião-rei na ponta da flecha pode penetrar a couraça de Teju Jagua. Ela está banhada com o curare feito do catarro do curumu e infuso com as lágrimas sagradas de Tupã que cortam as terras de Kamukuwaká.

O índio ouvia Xandoré enquanto apreciava, atento, a flecha talhada no bambu.

─ Para matá-lo ─ prosseguia Xandoré ─ mire no peito, no lado do coração. É a única forma dos dias voltarem a ser o que eram. Anhangá o guiará pela floresta com seus olhos de fogo até onde Teju Jagua esconde e goza os prazeres do seu roubo. Com esse cocar, ─ Xandoré retira da cabeça um cocar ornado de plumas negras e entrega o artefato a Macuxi ─ poderá passar despercebido pelos homens e mulheres que Teju Jagua mantém sob seu encanto para protegê-lo em seu refúgio.

Macuxi não confiava em Anhangá e Xandoré. Eram criaturas maliciosas, julgava o índio. Espíritos traiçoeiros que se alimentavam da guerra, do egoísmo e do mal entre as tribos. Nenhum deles tentou evitar o roubo de Teju Jagua ou fez qualquer coisa, até o momento, para caçar o ladrão. As noites intermináveis, a solidão, o erro em vagar por florestas e matas selvagens na procura em vão pela luz roubada faziam Macuxi se agarrar a qualquer centelha de esperança para recuperar os dias claros de Tracunhaém.

Anhangá não era mais a índia que há pouco havia chegado, com seu andar firme e olhar neutro, aonde estavam Macuxi e Xandoré. Era um veado de vasta pelugem branca e olhos vermelhos e reluzentes que ardiam em fogo.

Macuxi seguia o caminho que os olhos de Anhangá iluminavam. Seguia para o norte, para muito além dos limites de Tracunhaém e, mais ainda, para além dos próprios limites conhecidos pelo índio.

***

Na escuridão temerária que a pesada floresta estava mergulhada, alguma criatura, num espaço aberto, ao longe, cuspia bolas de fogo nas trevas que era o céu. Labaredas vermelhas que lampejavam além das copas das árvores e se perdiam no ar. Uma luz quente e ardente.

Anhangá indicou a Macuxi que era lá que estaria Teju Jagua, rodeado por seus escravos letárgicos, brincando com a luz que deveria alimentar a vida em Tracunhaém. Anhangá deixou Macuxi e deu meia volta, retornando floresta adentro com seus olhos abrasivos.

O índio estava com o cocar de Xandoré e por um momento conseguiu caminhar sem ser percebido entre os homens que vagavam sem rumo ao redor de onde acreditava estar Teju Jagua. Entre eles também haviam criaturas desconhecidas para Macuxi. Pequenos homens de pele clara, orelhas pontudas e mãos furadas. Ligeiros, caminhavam sempre com passos frenéticos e açoitavam, parecia por diversão, os índios hipnotizados.

Macuxi parou quando conseguiu enxergar entre o breu preenchido por uma fumaça densa que lá estava Teju Jagua, como sentenciou Xandoré.

E não teve mais dúvidas.

Teju Jagua parecia guardar a luz que alimentava a criatura que cuspia fogo, um monstro enorme com escamas acobreadas que ruminava os matos e as colheitas levadas pelos índios. A voracidade e a ganância de um demônio que bufava fogo às custas da luz de Tracunhaém e à traição daquele que um dia foi seu maior protetor.

O índio focou na mira, o coração de Teju Jagua. Apoiou no arco a flecha mortal que guardava os poderes das lágrimas de Tupã e o catarro do curumu. Esticou o cipó e esperou.

─ Faça!

─ Faça!

Eram Xandoré e Anhangá que corriam e lhe acossavam os ouvidos sem cessar.

Os dois seres espiavam de longe o índio e vieram ao seu encontro quando este parecia hesitar.

E Macuxi hesitou.

Quando uma porção menos densa de fumaça passou diante dos seus olhos percebeu que Teju Jagua era, na verdade, um prisioneiro. Uma corda, que parecia ser a corda mágica roubada do Kurupi, envolvia e aprisionava o corpo do velho amigo.

Xandoré insistia, tentava convencer Macuxi a lançar a seta no coração do monstro. Anhangá fazia o mesmo.

Macuxi não lançou a arma. Acabou sendo descoberto pelas pequenas criaturas de mãos furadas que o capturaram, levando também seu arco e flecha.

Anhangá, na forma de veado branco, correu e escapou.

Xandoré voltou a ser um falcão negro e voou para longe.

***

Macuxi, aprisionado próximo a Teju Jagua, entendeu.

E entendendo, chorou.

Teju Jagua não era um traidor. Submeteu-se ao monstro invasor para proteger as aldeias. Entregou a própria luz de Tracunhaém para poupá-la da destruição e da morte.

Mas o invasor aniquilava aos poucos seus irmãos. A criatura assombrosa, tão grande quanto a mais alta das árvores, deixava escapar fogo pelas narinas, tinha uma couraça grossa e escamosa e na cabeça exibia uma peça metálica escura. Destruía as colheitas e contaminava com ganância perversa as terras. Almas roubadas e exauridas de toda uma essência de vida.

Teju Jagua, morrendo, tinha reunido suas minguadas energias e se conectado às mentes de Xandoré e Anhangá. Foi sob seu domínio que Xandoré encontrou Macuxi e lhe entregou a lança mágica e Anhangá guiou o índio pela escuridão da floresta. A grande serpente acreditava que a única forma de salvar Tracunhaém e lhe devolver a luz estava na sua própria morte. E sabia que Macuxi era o único capaz de lançar a flecha mágica diante de uma escuridão quase absoluta.

E quando Macuxi hesitou em matá-lo, Teju Jagua o julgou um tolo covarde. Mas não podia ignorar, enquanto definhava e avistava o fim, que sentia um gosto que há muito não experimentava, o da felicidade, ainda que talvez fosse em seu último resquício. Estava feliz em rever o amigo, em saber que ele nunca desistiu de Tracunhaém e também dele próprio. Se seu coração o permitisse, amaldiçoaria Macuxi por não lançar a flecha quando teve a oportunidade. Mas isso Teju Jagua não poderia. Simplesmente, não poderia.

Às sombras, aprisionado e vendo a vida do amigo ser consumida pela ambição daqueles que o escravizavam, Macuxi se lamuriava por entre esses novos e incontáveis dias de trevas não estar com a flecha enfeitiçada e arremessá-la na besta que vomitava fogo e tragava as colheitas. Nas horas sombrias que ali passou, ele pôde entender, observando o monstro, que sua couraça rígida tinha uma fraqueza, uma pequena mancha dourada no ventre que parecia mais vulnerável que o restante do corpo. Não tivesse a flecha de Tupã sido apanhada por um dos pequenos homens de mãos furadas, Macuxi a enterraria e daria um fim naquele que despejava agonia em seu povo.

Não seria difícil para o índio dobrar um galho qualquer e com uma fibra de cipó velha criar um arco. Restava, no entanto, a Macuxi, esperar nas noites, preenchidas com os gemidos ruidosos e cada vez mais baixos de Teju Jagua, seu fim, e espreitar, na escuridão, todo o seu mundo cair em ruínas.

Foi quando o índio, desconsolado sob um chão frio de terra batida e cascalhos pontudos e ásperos, e ouvindo aquilo de deveriam ser os últimos e pesados suspiros de Teju Jagua, identificou, na penumbra da névoa que refletia a luz dos bafos de fogo do invasor, o voo rasante de uma ave de penas negras e asas largas.

Xandoré voava baixo. Rompeu a névoa, passou rente às cabeças dos seres de mãos furadas e chamuscou as penas com o hálito ardente que irrompia o céu para roubar a flecha enfeitiçada. Macuxi já tinha um arco improvisado e aguardava o falcão negro entregar-lhe a arma. O tempo se esgotava. Teju Jagua não mais gemia, escassas que eram suas forças.

Mas a flecha não chegou a Macuxi. Um pequeno ser, escondido em um arbusto mais largo, tomou e quebrou a arma que era a última das esperanças do índio e de Tracunhaém. Xandoré ainda foi pego, agredido e tomado como prisioneiro pelos lacaios do invasor.

Os olhos molhados de Macuxi miraram Teju Jagua. Molhados com lágrimas que escorriam e se misturavam ao suor do seu rosto. Ele contemplava a serpente que mantinha as pálpebras fechadas e o grande corpo jogado ao chão. Próximo ao índio, um arco grosseiro de galho ressecado e pedras disformes.

Macuxi nunca foi bom em lançar pedras com o bodoque. Era ainda menos hábil se lançasse uma pedra com o arco de atirar flechas.

A respiração de Teju Jagua, se ainda existia, não era mais ouvida. Macuxi pensava que talvez fosse tarde para salvar o amigo e devolver a luz a Tracunhaém. O índio nem mesmo tinha certeza se algo poderia destruir o monstro, se a mancha dourada era mesmo a parte frágil do seu corpo.

Macuxi não mais pensava. Era tomado de ódio e desilusão.

É possível que o índio conseguisse um seixo um pouco menos defeituoso do que aquele que tomou nas mãos. É possível que Macuxi não ouvisse os estalos da madeira que se lascava quando ele puxou o cipó e mirou a pedra na mancha dourada do bicho. E nem notasse o ruído seco e ferino da pedra cortando o ar quando ele a soltou da mão.

Muitas coisas, agora, eram possíveis.

***

Tracunhaém experimentou novamente um período de prosperidade com aquele brilho que tornou aquecer suas terras e alimentar as lavouras.

Mas Teju Jagua não mais apareceu. Nem para as colheitas, nem para lavrar as terras antes que Tupã, por mais um ciclo, despejasse seus lampejos.

Macuxi também nunca mais foi visto, contavam os mais antigos.

Alguns diziam, apenas, avistar um veado branco carregando às costas uma ave negra e desorientado por uma luz tão forte que ofuscava até mesmo seus olhos vermelhos e abrasivos que, um dia, se distinguiam numa escuridão, que julgavam, eterna.

Continue Reading

You'll Also Like

21.8K 1.3K 58
Imagines com atrizes,os Imagines dependem da minha imaginação ( aceito pedidos mas depende da minha imaginação)
232K 24K 29
Brianna é a personificação da inocência. Com apenas sete anos de idade, acredita que as pessoas boas quando morrem viram borboletas e vão para o céu...
35.6K 231 5
Algumas dessas histórias são experiências de algumas pessoas que quiseram compartilhar comigo pra postar aqui, outras são só da minha cabeça mesmo😅
11.7K 1.2K 24
Minha vida é um abatedouro. E eu? Sou o prato principal. Chanel Campbell está encrencada. A bela garota presenciou algo que não deveria, e agora pr...