Laicus

By JMBeraldo

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É 1810. Dois anos atrás a família real portuguesa fugiu de Napoleão e instalou-se no Rio de Janeiro, virado a... More

Prólogo
Capítulo 1

Capítulo 2

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By JMBeraldo

O mestiço, que Bernardo descobriu chamar-se Cristiano, era filho ilegítimo de um senhor de terras da região. O pai o havia colocado à serviço do príncipe regente com algum cargo público, auxiliando o juíz responsável por alocar residências aos recém-chegados ao Rio de Janeiro. Pelo que Cristiano explicara, o pai queria que ele tornasse-se deputado e, para isso, acreditava ser ideal que o jovem frequentasse a corte e conhecesse Dom João pessoalmente.

Cristiano levou-o até uma casa de um único andar não muito longe do Paço Real. Ficava em uma rua transversal à Rua Direita, a principal do centro do Rio de Janeiro, num ponto cheio de sobrados, sob a sombra de um morro encimado por um edifício branco muito grande.

- É o Hospital Militar, - explicou Cristiano acompanhando a vista do forasteiro. - Era o Colégio Jesuíta até, você sabe, o Marquês de Pombal expulsá-los do reino.

Naquele ponto podia ver também uma fortaleza militar voltada à entrada da baía. Vinham de lá alguns dos tiros que ouvira mais cedo.

- Dizem que deixaram toneladas de ouros e joias para trás.

- O quê?

- Os jesuítas, - disse Cristiano, apontando para o antigo colégio. - O vice-rei na época disse não ter encontrado nada das riquezas da Companhia Jesuíta no colégio. Certamente esconderam-o em túneis debaixo da cidade.

- Ou talvez o vice-rei tenha pêgo tudo para si e mentido à respeito.

Cristiano não teve resposta. Ainda assim pareceu mais interessado em sua versão emocionante da história.

O lugar parecia um lugar tranquilo. Era de certo menos movimentado do que as ruas mais próximas ao porto. Parou para examinar a casa sem muita empolgação.

- Pertencia a um comerciante local, dono de um mercado de tecidos na Rua do Piolho.

Bernardo concordou com a cabeça sem dar muita atenção ao que dizia o mestiço. Falou algo mais sobre o tipo de coisas que o antigo proprietário vendia antes de começar a fazer fofoca sobre sua clientela e sua esposa, filha de índios. Bernardo tentou ignorá-lo enquanto examinava a casa.

Havia uma única janela, pouco distante da estreita porta de entrada. A janela, agora aberta, tinha os vestígios de barras de madeira serradas próximo ao parapeito. Não havia vidro, que parecia raro na colônia. Assim como com o edifício onde Dom João recebia seus súditos, havia indícios de que as paredes da casa foram recentemente cobertas por uma espessa camada de cau.

Bernardo subiu os três degraus de pedra até a porta, parando ao perceber algo escrito na porta. Raspou o dedo nos traços de giz branco recentes sobre a pintura verde ressecada da porta.

- O que significa? - perguntou Bernardo, apontando para as letras PR pintadas na porta.

- Propriedade Real, - respondeu prontamente. - É pintada nas portas das casas requisitadas pelo Príncipe para abrigar membros da corte.

Bernardo franziu a testa, então balançou a cabeça e entrou. Queria urgentemente ter um teto sobre sua cabeça, protegendo-o do sol tropical.

A sala era pouco maior que um quarto grande. Não havia móveis se não esteiras rústicas espalhadas pelo chão, fazendo o papel de assentos. Uma única cadeira, de madeira pesada, estava na ponta extrema de uma tábua de madeira deitada sobre dois cavaletes. Bernardo concluiu com pesar que devia tratar-se da mesa de jantar.

- Seus pertences estão no quarto, há direita.

Da sala saíam mais duas portas. Bernardo olhou para Cristiano, que permanecia de pé diante da saída. Receoso, acabou por aproximar-se da porta do quarto. Seu baú fazia companhia a uma rede de tecido colorido, pendurada entre as paredes do quarto. Não havia cama ou guarda-roupas. Bernardo olhou por sobre o ombro para Cristiano, que sorria largamente, como se orgulhoso de um trabalho bem feito. Já Bernardo não podia deixar de imaginar que passara seis semanas dormindo numa rede para chegar ao Rio de Janeiro apenas para dormir em outra. Começou a pensar o quão confortável podiam ser as esteiras da sala.

Balançando a cabeça, Bernardo saiu do quarto e passou pela outra porta, para a cozinha. Havia um forno de barro, diversas caixas e cestos de vime, e uma mesa castigada. Uma negra estava lá, preparando o que viria a ser a primeira refeição de Bernardo em terra firme. Fosse o que fosse, cheirava forte.

- Essa é Maria. Ela cuidará da casa e de suas refeições enquanto o senhor estiver no Rio de Janeiro.

A escrava não desviou sua atenção da panela. Nem mesmo parou o que estava fazendo. Virou-se para a mesa tosca no centro da cozinha, de onde pegou um punhado de legumes, então voltou-se para o fogão e despejou o que trazia na panela.

Bernardo não se sentiu ofendido pela reação. Pessoalmente preferia o silêncio. Apesar da longa viagem, não tivera liberdade para poder pensar. Num espaço tão pequeno repleto de marinheiros e os poucos viajantes como ele era praticamente impossível ficar a sós com seus pensamentos.

O que o ofendia era o nome da escrava. Quem havia dado o nome da rainha a uma negra? Era um absurdo sem propósito.

- Creio que isso é tudo. Há algo mais que posso fazer?

- Não, - disse Bernardo, olhando de ombros caídos para o lugar onde passaria boa parte de seus próximos meses. - Não creio que aja mais nada que você possa fazer.

O tom ácido deve ter escapado Cristiano, que sorriu e curvou-se. Recolocando o chapéu sobre a cabeça, saiu pela porta sem dizer palavra alguma.

Bernardo não sabia bem o que esperar quando embarcou para o Rio de Janeiro. Tinha passado os últimos anos vivendo onde podia, ora em um quarto nos fundos de uma igreja, ora no chão duro do mato, ouvindo o som de mosquetes e canhões. Mas não podia deixar de imaginar que talvez a vinda ao Rio finalmente atendendo ao pedido da rainha trouxesse com ele um retorno a dias melhores. Lembrou saudoso o cheiro dos quitutes feitos no Palácio de Queluz, muitos deles devorados aos pés da mãe enquanto esta atendia à rainha.

Abriu a camisa e buscou com o dedo a costura do bolso secreto. Enfiou nele um dedo, forçando a linha a se abrir. Parou ao perceber movimento na janela do quarto. Um garoto negro estava sentado no parapeito, olhando-o curioso. Bernardo fechou a camisa às pressas.

- Quem é você?

- Antônio. Muito prazer, - disse o garoto, estendendo a mão para cumprimentar o português.

Bernardo olhou-o de alto à baixo. Vestia calças puídas e uma camisa feita de retalhos. Sorria com a inocência de uma criança que não percebe sua posição social.

- Não quer saber seu nome, mas sim o que faz aqui.

O sorriso se desfez e ele abaixou a mão, percebendo que seu cumprimento não seria retribuído.

- Meu sinhô disse para ver se vosmecê qué meu serviço.

- Ele era o dono dessa casa?

- Não. Ele é dono de uma casa lá pra baixo da Rua Direita.

Bernando franziu a testa.

- Seu senhor costuma emprestar seus escravos para estranhos?

O garoto riu alto, como uma criança que ouviu a coisa mais divertida do mundo.

- Ele não mimpresta! Ele mi aluga.

Bernardo apenas encarou o garoto, incerto do que ele queria dizer com aquilo. O garoto deve ter percebido. Sorriu e logo explicou-se.

- Vosmecê mi paga pra fazê um serviço, eu dô uma parte pru meu sinhô.

Aquela parecia a ideia mais absurda que Bernardo jamais ouvira.

- Então você fica com o dinheiro? - disse, deixando clara sua indignação.

- Uma parte, - ele disse, dando de ombros. - Num tem muito o qui fazê aqui na cidade grande, longe das fazenda.

O comentário provocou um sorriso involuntário no rosto do português. Claro que o garoto jamais havia visto uma cidade de verdade. O Rio de Janeiro era apenas uma colônia pequena numa terra de selvagens, nada mais. A única qualidade do Brasil era ser o refúgio temporário da família real.

- Então eu supostamente preciso pagá-lo.

- Sim, - ele respondeu com uma voz cantada, uma expressão de felicidade no rosto. - Muita gente aluga escravo aqui.

Bernardo balançou a cabeça.

- Não creio que há algo em que você me possa ser útil.

Deu as costas saiu do quarto. Foi direto para a cozinha mandar a escrava preparar seu banho. Atrás dele, ouviu o som da janela do quarto se fechando.

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