OBSERVO MEU PAI, enquanto ele transcreve atentamente os diversos números redigidos nos recibos, dos quais estão jogados por toda a mesa, ao seu caderno preto de anotações. A sua atenção está focada aos papéis, e eu aproveito a oportunidade para analisá-lo sem que ele perceba. O velho boné com a águia dourada bordada que meu pai usa com orgulho, é uma lembrança dada por meu avô á ele. Os óculos de graus estão caídos na ponta do nariz e seus olhos rolam de um lado para o outro, certificando-se que tudo seja transcrito corretamente ao caderno.
Não demora muito para que o Sr. Velmonte note que está sendo observado, seus olhos se estreitam em curiosidade e ele ajeita os óculos de graus em seu rosto. A atenção de meu pai desfocasse dos papéis e o modo como ele me olha em seguida, deixa claro o desejo de tratar sobre um assunto que provavelmente ele não sabe como irei reagir.
─ Então, eu estava pensando e já faz algum tempo que eu e Eliza estamos juntos. Pensei que você pudesse conhecê-la, em um jantar em casa, o que acha?
─ Ela é a sua namorada? ─ Eu busco por uma confirmação de algo que eu já suspeitava, mas que não sei se realmente desejo saber a verdade. Meu pai acena em afirmação com um gesto simples de cabeça e eu sinto um aperto no peito, sem saber ao certo explicar a razão exata para isso acontecer.
─ O que acha sobre o jantar? ─ Ele sorri, insistindo em sua pergunta e eu percebo que aos poucos meu pai começa avaliar a minha reação, que provavelmente não deve estar passando as melhores das impressões.
Eu sinto-me incomodada com a situação que está ocasionando a minha saída da minha zona de conforto. O fato de que meu pai deseja que eu conheça sua namorada, assusta-me, pois sei que o compromisso entre eles está sério e eu me vejo em uma circunstância que não sei ao certo como lidar
E enquanto minha mente borbulha em medidas contragosto da proposta de meu pai, eu cutuco as canetas dentro do pote de metal sobre a mesa, buscando tempo para colocar todos os meus pensamentos em ordem, á medida que o olhar de meu pai está focado em mim, aguardando por uma resposta. Eu deixo minhas inseguranças e meu capricho nutrido por uma jovem do passado que não existe mais para trás. Afinal meu pai merece ser feliz e se Eliza foi sua escolha, então tudo bem por mim.
Eu preparo minhas palavras a proferirem 'Sim, será um prazer' , porém o som inoportuno do telefone toca impossibilitando a minha resposta. O olhar de meu pai vai ao telefone e volta em seguida em minha direção. Ele ergue o dedo indicador, em um pedido que eu aguarde o final da ligação para continuarmos a nossa conversa, á medida que o aparelho é levado até a altura da sua orelha.
─ Alô? ─ O timbre da sua voz é sério e profissional, estando centrado no diálogo com a pessoa do outro lado da linha. ─ Claro, Dawson, será um prazer ajudá-lo com o carro.
Meu pai prolonga a conversa ao telefone, e eu me distraio, olhando através da janela do escritório o ambiente da mecânica e involuntariamente percebo que meus olhos buscam por uma pessoa específica. Por Harry. Eu o encontro e observo enquanto ele
busca por algo dentro dos armários, o que aparentemente é localizado com facilidade. Ele caminha de volta para um dos carros estacionado dentro da mecânica, cujo o qual ele está aparentemente trabalhando no motor do veículo.
Alguns dias haviam se passado desde o beijo entre eu e Harry, e a sensação de que ele está me evitando persegue-me desde então. Não que eu tenha o visto com muita frequência desde aquele dia, mas as poucas vezes em que nossos caminhos cruzaram-se, Harry estava distante, preso em seus próprios pensamentos e evitando qualquer tipo de contato comigo.
Volto a minha atenção para o rapaz que domina meus pensamentos, e eu o vejo concentrado na tarefa em que realiza. Desfoco rapidamente meu olhar, reparando que a conversa de meu pai ao telefone possa demorar mais que o esperado. Então, resolvo responder a sua pergunta sobre o jantar com a ajuda de um pedaço de papel e uma das canetas que pego emprestado do pote que contém várias delas sobre a mesa do escritório. E rapidamente eu escrevo as palavras que deixarão meu pai entusiasmado e contente.
Eu estico o pedaço de papel com a minha caligrafia até o campo de visão de meu pai. A movimentação chama por sua atenção e ele faz a leitura do bilhete com os olhos. Sua fisionomia alegra-se, e ele sorri dando uma piscadela a mim. Eu fico feliz com sua reação e agarro-me a ideia da importância da felicidade de meu pai, para que assim eu evite novos pensamentos de reclusa sobre sua namorada.
Caminho para fora do escritório, com o objetivo de indagar Harry sobre sua possível esquivação diante a minha pessoa, o que convenhamos é um tanto imaturo. Foi apenas um beijo e não há a necessidade de tornar isso um problema. Eu o vejo e aproximo-me, enquanto ele está concentrado em sua tarefa, debruçado sobre o motor do veículo do qual está concertando. Minha presença chama por sua atenção e Harry ergue o olhar até a mim, entretanto seu olhar desvia-se, focando sua concentração de volta ao carro.
─ Você já encontrou quem invadiu a edícula? ─ Eu o provoco, alfinetando sua atitude de alguns dias atrás de ter invadido a minha casa e acusando-me por algo que eu não cometi. Entretanto sua postura permanece a mesma, como se minhas palavras nunca tivessem o alcançado ─ Você deveria ligar para a polícia, talvez, eles tenham sorte em encontrar o invasor. ─ Eu sugiro, afrontando-o em uma tentativa de chamar por sua atenção.
Aguardo por uma resposta que não é proferida. Pelo contrário, Harry está tranquilo e minhas palavras não causam o efeito desejado. O que nesse momento evidenciam as minhas suspeitas. Eu estou sendo ignorada.
─É sério que você está me ignorando por causa de um beijo? ─ Pergunto perplexa, e sei que minhas expressões acompanhando com o mesmo sentimento.
─ Aquele beijo nunca deveria ter acontecido. ─ Seus olhos esverdeados encontram os meus olhos por breves segundos e eu não sinto neles a verdade e a segurança que suas palavras desejam transmitir.
─ E por que não?
─ Porque eu não queria. ─ Dessa vez seus olhos estão distantes dos meus olhos, focados em algum ponto do motor do carro.
─ Não foi isso que você demonstrou naquela noite. ─ Eu digo provocativa, o vendo apertar com firmeza a chave de fenda em sua mão e respirar fundo.
─ Eu estou falando sério, Mia. Não me provoque.
─ Tudo bem. Mas foi só um beijo, não precisa me ignorar por conta disso. ─ Eu sugiro, em uma tentativa de que isso seja esquecido, entretanto a feição de Harry deixa claro que eu não estou captando a mensagem que ele deseja transmitir.
─ Você não entende, eu tenho que ser assim porque...─ As palavras de Harry são pronunciadas calmamente, contudo são interrompidas pela voz de meu pai.
─ Está tudo bem por aqui? ─ O Sr.Velmonte caminha em nossa direção, com o olhar suspeito sobre nós.
Eu aceno que sim, em um breve gesto de cabeça á medida que Harry volta a sua atenção a concertar o motor do carro. Meu progenitor, olha-me desconfiado esperando que minhas expressões entregue alguma coisa, mesmo que seja evidente que ele suspeita que algo está acontecendo entre eu e Harry. Entretanto meu pai é gentil demais para chegar e apontar suposições e eu disfarço forçando um sorriso, na esperança que ele mude de assunto.
─ Precisa de ajuda com o motor, Harry? ─ O Sr. Velmonte questiona, dando leves tapas no teto do veículo á medida que ambos iniciam uma conversa.
Eu fico paralisada ali por alguns segundos enquanto as últimas palavras ditas por Harry martelam em minha mente; "Você não entende, eu tenho que ser assim porque..." Não sei exatamente o que pensar ou deduzir sobre isso, contudo a conclusão que eu chego é a de que a personalidade e as atitudes de Harry evidenciam cada vez mais o mistério que é decifra-ló, exatamente a velha sensação de como procurar por uma agulha em meio a um palheiro.
Meu olhar analisa as figuras dos dois homens a minha frente completamente alheios a minha presença no local. E mais uma vez despenco na dúvida de qual seja o motivo de Harry ser tão arredio comigo, com o bloqueio que o evita de qualquer tipo de aproximação em relação a minha pessoa. Com isso, eu chego a uma conclusão inconsistente e sem coesão, de que nada aparentemente faz sentido e de que Harry não está disposto a sair da sua zona de conforto para que a situação eventualmente possa ser mudada.
Os deixo para trás, sabendo que meu tempo naquele lugar esgotou-se e volto para casa. Ao adentrar, eu encosto-me sobre a porta, deixando minha cabeça pesar para trás, fecho os olhos e suspiro, buscando o máximo de ar que consigo á medida que eu tento conforma-me com a situação. Perco a noção do tempo em que eu fico desse modo, até que por fim abro os olhos e algo chama por minha atenção.
Eu observo a parede que sustenta as escadas, e reparo nos diversos porta-retratos pendurados, eles não possuem uma forma ou modelos específicos, são em sua maioria de diversos estilos, o que trás um ar acolhedor e familiar. Entretanto, percebo a ausência de uma fotografia, que até o momento havia passado desapercebido por mim.
Aproximo-me das escadas e olho atentamente cada porta-retrato, tendo a recordação nítida do qual está faltando. A única foto da minha mãe que permaneceu na casa após o divórcio havia sido substituída por uma foto minha com meu pai em um dia de pescaria que fizemos juntos quando eu ainda era criança. E eu não preciso deduzir muito para descobrir que o motivo da troca tem haver com a nova namorada de meu pai.
Eu sinto o aperto em meu coração, com a consciência de que esse simples gesto revela que meu pai está seguindo em frente e que não precisa de uma antiga recordação da sua ex-esposa. Eu fico feliz por ele, pela a sua felicidade, mas não consigo negar a ponta de tristeza que ainda insiste em resistir em meu coração.
Eu evito de continuar a pensar sobre isso, desviando meu olhar de direção e que automaticamente reparam em um embrulho em papel-pardo posto sobre a mesa de centro da sala. Pego o pacote notando que o mesmo não possui nenhuma informação sobre remetente e nem ao destinatário, dessa forma resolvo abrir o embrulho. Dentro do pacote há um porta-retrato de madeira, com o tom escuro que salienta o aspecto rústico do objeto.
Um sorriso ingênuo com resquícios de tolice invadem meu semblante ao ter a certeza que o objeto foi deixado por Harry, afinal ele havia afirmado que iria comprar um novo porta-retrato após ter quebrado o que ficava dentro do escritório do meu pai. Eu decido arrumar a nova peça de decoração no escritório, entretanto minha ação é interrompida pelo som da campainha que invade por toda a casa.
Eu deixo o que tenho em mãos de volta a mesa de centro, ao mesmo instante que a campainha é acionada mais três vezes seguidas em um curto período de tempo. Apresso meus passos até a porta da entrada, á medida que a campainha é acionada mais uma vez. Abro a porta rapidamente, preocupada, sem nem ao menos olhar através do olho mágico.
O que inicialmente foi o meu primeiro erro.
Meus olhos observam surpresos e intrigados a figura de Sean a minha frente. Ele está cabisbaixo e suas mãos estão apoiadas nas laterais da porta. O moreno percebe a minha presença e seu olhar ergue-se lento e confuso, com um sorriso acintoso no canto da boca. Seu olhar encontra-se ao meu, e eu vejo o quanto os olhos cor de mel estão tomados por uma vermelhidão que indica juntamente com sua postura e odor a presença forte do álcool.
─ Sean, está tudo bem?
─ Eu vim até aqui para falar com você, Mia. ─ As suas palavras são pronunciadas pausadamente e um pouco enroladas, á medida que o seu hálito de álcool é levado até as minhas narinas, o que de imediato repudia o meu olfato.
─ Você está bêbado. ─ Afirmo, cruzando os braços e Sean nega com a cabeça. ─ O que aconteceu?
─ Nós precisamos conversar. ─ Sean ergue seu olhar, buscando os meus olhos, ao passo que ele tenta reergue sua postura, cambaleando para os lados sem um ponto de apoio.
─ É melhor você voltar para casa. ─ Digo, agradável, na tentativa de que ele colabore comigo e reconsidere que agora não seja o melhor momento para ter uma conversa.
Porém, Sean nega com a cabeça algumas vezes, ficando em silêncio enquanto seus olhos analisam-me. Ele ainda tem dificuldade para ficar parado sem cambalear para os lados, e logo volta a apoiar-se sobre as laterais da porta. Eu por outro lado, receosa e intimidada pela sua presença, busco uma forma de livrar-me dessa situação, entretanto não sei ao certo o que devo fazer.
De imediato, minha mão mantém-se fixa na maçaneta da porta esperando pelo momento certo para fecha-lá. Vagarosamente trago à porta mais próxima de mim, já que boa parte do meu corpo encontra-se para dentro da casa. E é necessário um movimento perspicaz e ligeiro para que a porta se feche e Sean fique sozinho trancado para o lado de fora. Contudo, meu plano é notado precipitado e o moreno pressiona o seu braço contra a porta, jogando o peso do seu corpo, o que me impede de fecha-lá completamente.
─ Eu não vou embora daqui até que você converse comigo, Mia.─ Eu suspiro, notando a postura dominadora que Sean quer ter sobre mim com suas palavras prepotentes, o que as poucos começa de fato a me amedrontar.
─ Sean, por favor, vai embora para a sua casa. Outro dia quando estiver sóbrio nos conversamos. ─ Eu insisto, enquanto tento fechar a porta mais uma vez porém a força de Sean é maior, impossibilitando que a minha ação seja concluída.
─ Por que está fechando a porta? Não quer que eu entre? ─ Suas palavras são afiadas e pretensiosas, á medida que um sorriso zombeteiro surgi em seu semblante. Ele força novamente a porta com a intenção de abri-lá ainda mais, e eu não consigo o impedir.
─ Você não está bem. Vai embora e conversamos mais tarde. ─ Sou firme com as minhas palavras, tentando afastar a aproximação de Sean, que ri cinicamente em resposta permanecendo do mesmo modo.
─ Eu não vou a lugar algum. ─ Sean é grosseiro, endireitando sua postura e encarando-me severamente.
─ Você deveria escutá-la e dar o fora daqui. ─ A voz de Harry surge, juntamente com o alívio momentâneo que percorre por todo meu corpo.
Sean olha por cima de seu ombro, observando Harry parado na escadaria da varanda. Ele não é intimidado, dando ao meu vizinho uma risada zombeteira.
─ Quem é você para falar comigo dessa maneira? ─ Sean usa suas palavras com desprezo, dando as costas à mim e passando a encarar Harry frente à frente.
─ Caso você não tenha percebido, você está incomodando ela.─ Harry cruza os braços, olhando rapidamente em minha direção, certificando-se de que eu estou bem e em seguida voltando a encarar a postura despótica de Sean. ─ Sabe, o seu jeito prepotente está me incomodando também. E você não vai gostar de saber o que eu faço com as pessoas que me incomodam.
Harry tem um sorriso sarcástico e debochado nos lábios, enquanto sobe o último degrau da varanda ficando mais próximo de Sean, que o encara com um olhar presunçoso e um sorriso audacioso. Ao ver a cena que se monta a minha frente, eu pressinto pelo pior. Entretanto, encontro-me estática, presa ao solo amadeirado da varanda, com a sensação de que minhas pernas são como duas rochas sólidas que incapacitam qualquer atitude minha.
─ Você é patético! É um bosta de mecânico e ainda acha que pode me ameaçar? ─ Sean profere suas palavras com raiva, perdendo o controle e enfrentando Harry frente à frente. Ele o empurra, contudo Harry mantém-se firme, á medida que Sean cambaleia para trás, como uma reação da sua ação.
Minha mente é um turbilhão de sentimentos, dos quais impedem-me de qualquer raciocínio lógico que eu possa ter no momento. Eu olho em direção a Harry, vendo sua postura impaciente mas que aparentemente tem o controle da situação, entretanto o que ocorre em seguida não é exatamente o que eu esperava. Seus punhos se cerram, e antes que Sean consiga endireitar a sua postura, Harry transfere-lhe um soco de direita, fazendo com que o seu oponente caia desnorteado no chão.
─ Harry! ─ Eu grito em uma tentativa de que sua ação seja impedida, porém é tarde demais.
─ Isso é o melhor que consegue fazer? Seu merda! ─ Sean ri sarcástico, enquanto passa a mão pela própria boca limpando o sangue em seus lábios.
Harry está nervoso e descontrolado, caindo na armadilha maldosa de Sean. A passos rápidos Harry caminha até ele o pegando até o colarinho da camisa, e o erguendo a poucos centímetros do chão, transferindo outro soco ao rosto de Sean.
─ A única merda aqui é você! ─ Harry profere com raiva suas palavras, o erguendo novamente para dar-lhe mais um soco ao maxilar de Sean.
A risada de Sean ecoa, constatando que sua consciência está intacta, ele cospe parte do sangue de sua boca ao chão, reerguendo-se com dificuldade. Harry, por sua vez avança novamente em direção a Sean, mas sua ação é impedida pela postura imponente e severa de meu pai que bloqueia sua passagem.
─ O que está acontecendo aqui? ─ A voz firme e autoritária do Sr. Velmonte questiona, á medida que ele afasta Harry para longe de Sean. O olhar de meu pai analisa a todos nós e não é preciso o conhecer muito bem para ter a consciência de que estamos fodidos!