As Faces da Luz

By TatiDuraes

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Tayara e sua mãe atravessam um portal que as leva para um lugar onde as criaturas dos contos de fadas são rea... More

Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3

Capítulo 4

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By TatiDuraes

Ela puxou a fruta, tirando-a do morangueiro. Olhou fixamente para a fruta por alguns segundos, depois sorriu e a entregou para mim. Vermelha e madura.

— Como? — perguntei perplexa.

— Os elfos são seres de luz, lembra de que lhe contei? Nós levamos luz aonde há sombras e trevas.

Eu fiquei olhando o morango, ainda sentada no chão, sem entender muita coisa, a única coisa que eu sabia era que não ia mais chegar perto deles.

— Vamos voltar para dentro. — Ela me ajudou a levantar.

Antes de partirmos, pude ver Aodh me observando. Ele estava com o ar preocupado, com um vinco formado em meio a sua testa e uma das mãos no punho de sua espada.

Passei o restante do dia em meu quarto com a minha mãe de companhia. Nem Absalom veio me ver. Acreditei que aquilo deveria ser um mau sinal, já que ele se mostrava tão curioso e agora, quando algo finalmente aconteceu, não apareceu para perguntar nada.

— Mãe, você acha que vão me mandar de volta para casa? — questionei, olhando pela janela. Em meu peito havia esperanças e medo. Porque eu queria voltar, mas ao mesmo tempo queria ficar.

— Não creio nisso, querida — respondeu, mas seus pensamentos não estavam comigo, ali naquele quarto. Parecia distante enquanto olhava as crianças brincando lá embaixo.

Ela me deixou logo que Jaclyn, uma elfa muito simpática, trouxe meu jantar. Diferentemente dos outros dias, minha mãe não me acompanhou e aquilo me chateou um pouco, estava acostumada a tê-la ao meu lado sempre e ficar sozinha não me era agradável, mas tratei logo de tirar os pensamentos ruins de minha cabeça, afinal, ela também estava em um ambiente estranho, tinha suas angústias, preocupações e devia estar sofrendo grande pressão com a história de herdeira de reino élfico. Contudo, estar com ela, naquele momento, fazia eu me sentir mais real, menos perdida e sozinha.

Além disso, eu não tinha parado para pensar ou perguntado como estava a preparação para receber os tais elfos que chegariam. Não tinha imaginado o que ela sentia sendo considerada a herdeira deles. Minha mãe também estava sob pressão.

Passei as mãos em meu peito e senti a cicatriz de Agatha posicionada em cima de meu coração. Não tinha entendido como ela ficara ali. A das costas também era visível. Pareciam cortes recentes, como se tivessem sido feitos há uma semana, mas não doíam.

Aquilo tudo era muito confuso e nada parecia fazer sentido para mim. Pensei em procurar Absalom no dia seguinte e pedir que fosse sincero comigo, falando o que se passava em sua mente. O que ele achava sobre aquilo tudo. Adormeci tentando lembrar das cenas que Agatha havia me mostrado.

— // —

— Gostaria de tentar algo novo nessa manhã — Absalom soltou, sentando-se no banco.

Assim que ele entrou no quarto, pedi que fosse sincero comigo. Estava angustiada por não entender o que se passava. Eu me ajeitei na cama, puxando a barra do vestido para baixo, que insistia em se enroscar em tudo quanto é lugar, fazendo-me parecer a pessoa mais desajeitada do universo.

— O quê? — perguntei, curiosa.

— Além do morango, já tentou fazer outro feitiço? — Cruzou os dedos das mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos.

Eu fiquei olhando para ele por algum tempo, tentando assimilar sua pergunta.

— Feitiço? Eu? — Sacudi a cabeça. — Não faço ideia de como fazer.

Ele olhou em volta e levantou-se, indo em direção a uma tocha que estava no canto do quarto. Como era de dia, ela estava apagada.

— Vou lhe mostrar — disse, e indicou que eu me aproximasse. Então se concentrou na ponta e ela se incendiou.

Dei um pulo para trás com o susto e ele sorriu.

— Como fez? — indaguei, pasma.

— Pense no fogo — pediu, movimentando a tocha para que o fogo dançasse. — Ele é um elemento da natureza, portanto é vivo. Concentre-se nele, imagine-o na tocha e ele lhe atenderá.

Absalom apagou a tocha que acendera e a passou para mim. Olhei para ela me sentindo uma idiota. Até pouco tempo atrás, se alguém me dissesse que elfos e magia existiam, mandaria interná-lo em um hospício. Mas ali estava eu, concentrando-me, imaginando o fogo na madeira e passando vergonha. Nem uma faísca se acendeu.

— Talvez eu não seja mesmo uma bruxa — exclamei, desapontada.

— Ou você tenha medo de ser — Absalom rebateu, colocando a tocha em seu lugar.

Dentro de mim, senti a dúvida bater. Por um momento, eu queria fazer parte daquele mundo e ser uma bruxa faria isso acontecer, por outro lado, ser apenas humana poderia me render a passagem de volta para casa. Retornar à minha vida, mas, muito provavelmente, sem minha mãe. Porém, cogitar meus dias sem ela, era como imaginar o dia sem o sol; escuro e solitário.

— // —

Durante toda a tarde, resisti a tentação de sair do quarto. Não que houvessem me proibido, mas ninguém aparecera para me buscar como nos dias anteriores. Nem minha mãe havia passado muitas horas comigo, como antes. Eu me sentia só, mas não podia ficar dependendo de minha mãe, precisava começar a andar com minhas próprias pernas.

Apesar da ansiedade que me consumia, eu tinha vergonha de ser vista caminhando por entre os corredores e tinha medo de encontrar com Aodh. Não o vi mais depois do evento do morango, nem pela janela. Mas conforme os minutos passavam, ficar presa dentro daquele cômodo estava me deixando em pânico, como se eu fosse um animal e precisasse de espaço para correr. Sentia-me em uma jaula.

Então, quando Jaclyn trouxe o jantar, acabou deixando a porta encostada ao sair e com o vento ela se abriu, mostrando-me o corredor. Fiquei fitando-o por muito tempo, sem coragem de levantar do banco. Porque eu queria sair, mas sabia que deveria apenas fechar a porta. Estava em um dilema.

Ninguém passou por ali. Eu também não ouvia nenhum barulho de conversa ou movimento. Decidi me arriscar e me aproximar. Pensei que, se visse alguém, a fecharia, caso contrário, daria alguns passos pela casa.

Todas as portas daquele corredor estavam fechadas e nenhum sinal de vida era visto. Tomando coragem ao respirar fundo, saí do quarto. Esfreguei as mãos nervosamente, querendo espantar a falta de jeito e o arrepio que percorria meu corpo. Caminhei em direção à saída, havia escadas no fundo do corredor e era a única forma de deixar a proteção da casa que eu conhecia. Andei vagarosamente, querendo evitar fazer barulhos, não queria ser vista, muito menos pega.

Passei por uma porta escura com desenhos entalhados. Pareciam pássaros pousados em árvores secas. A gravura era muito detalhada e a madeira havia sido tratada, ficando lisa. Deslizei os dedos entre as elevações e um rangido dentro do cômodo me assustou, fazendo-me dar um pulo para trás. No mesmo momento, ouvi a voz do rei Cedric.

— Tem certeza? — ele perguntou. Sua voz parecia calma, concentrada e sedosa, como se tivesse falando com alguém querido.

— Claro! — Ouvi minha mãe respondendo.

Os dois estavam conversando, porém, não fui capaz de ouvir o restante. Já que o silêncio tomou grande parte do tempo e depois apenas o arrastar de móveis, talvez cadeiras. Fiquei com receio de que estivessem para sair e acelerei os passos em direção às escadas. Desci os degraus com o coração batendo forte e, sem olhar para o lado, segui para a grande porta que dava acesso à aldeia.

Sem olhar muito bem para onde ia, virei para o lado esquerdo e continuei dando passadas apressadas e largas. Tinha medo de que alguém me parasse e perguntasse o que eu estava fazendo ali, mas não aconteceu, e eu só parei quando cheguei à parte de trás da casa grande. Então pude respirar fundo e me calmar. Percebi que estava suando e ri, sentindo-me uma criança atrevida espiando algo proibido, mas muito divertido.

Antes que pudesse aproveitar aquele meu momento de rebeldia, senti meu corpo gelar e se arrepiar. O ar me foi tomado e uma sensação de queda me arrebatou. Segurei-me no pilar de madeira da casa e levantei a cabeça, procurando respirar fundo. Foi quando notei que era observada por um vulto. Meu instinto dizia para sair dali, mas minhas pernas não obedeciam. Eu queria pedir por ajuda, contudo, meus olhos estavam fixos naquela sombra e meus lábios não se mexiam. Então, o vulto deu um passo à frente, vindo à luz e se mostrando totalmente. Seus cabelos ruivos balançavam preguiçosamente e alguns raios solares tocavam sua pele, tornando-a quase translúcida. Seus olhos pareciam suplicar por amparo, mas seu rosto não expressava nenhum sentimento. Meu coração palpitava com a surpresa.

Era Agatha.

Desprovida de qualquer senso de perigo, segui em sua direção. A curiosidade substituiu o medo em meu corpo no exato momento em que a vi.

Por sua vez, Agatha voltou a se esconder na escuridão da floresta, porém, conforme eu me aproximava, a via com mais clareza, mesmo que ali o sol não a atingisse. Senti um calafrio subir por minhas costas quando a barreira de proteção vibrou com a minha passagem. A adrenalina chegou em meu coração e o fez acelerar novamente.

Agatha se afastava cada vez mais da aldeia e eu a seguia. Ela parecia ter certeza de que eu estava atrás dela, pois não parou para olhar, para conferir, continuou até chegar em uma clareira florida. Foi quando percebi que algo estava errado, pois a escuridão não desapareceu. O sol não brilhou. Acima de nós, a lua tentava se fazer notar, clareando tudo com seu tom prateado. Olhei para trás e não vi nenhum sinal da aldeia ou de suas tochas que eu sabia que estariam acesas. Um leve desespero fez eu querer retroceder alguns passos, mas Agatha sussurrou e minha cabeça se virou em sua direção.

Percebi que ela flutuava e que suas cores diminuíam conforme os segundos passavam. Como se desbotasse.

Somos uma. — Sua voz chegou fraca em meus ouvidos.

Franzi a testa e dei alguns passos em sua direção e, como se tivéssemos combinado, ela percorreu o restante do caminho. Estendeu suas mãos para mim. Eram brancas com várias cicatrizes, dedos finos e compridos que, quando me tocaram, me fizeram sentir segura. De repente, era como se eu fizesse parte daquele lugar. A escuridão não me assustava mais, podia sentir a doce fragrância da magia percorrer o ar, misturado à ela estava o cheiro de cada ser vivo presente ali, como corujas e vaga-lumes.

Distraída, não notei enquanto Agatha se aprofundava em meu corpo. Apenas quando as ondas de adrenalina começaram tirando meu ar e fazendo-me ver tudo colorido, como se bolas de sabão tivessem flutuando diante de mim, percebi que ela se fundia a minha existência. Tive espasmos pelo corpo, perdi a força e caí, batendo as costas contra o chão duro e frio. Estranhamente, era como se eu observasse a cena de cima, estava ciente enquanto meu corpo continuava jogado impotente, ralando a pele contra as pedras e as raízes das árvores.

Agatha também estava a me olhar. Ela sorriu compreensiva para mim. Entendia minha falta de conhecimento e chegava a sentir pena.

Encontre o livro — ela sussurrou em minha mente. — Precisamos dele.

Franzi a testa, mas uma lembrança se iluminou em minha mente. O livro de capa de couro que Edwin havia tentado pegar no dia em que a traiu. Agatha fez que sim.

Não tenha medo — entoou e começou a desaparecer. — Estarei ao seu lado.

Então senti a atração da gravidade reagir sobre mim e fui jogada para baixo novamente, em direção a Tayara que, deitada, olhava sem reação o céu daquele mundo novo, assustador e excitante.

A lua nova estava escondida atrás das nuvens escuras de chuva. Não havia estrelas, não tinha um ponto brilhante para que eu colocasse minha atenção sob ele. Sendo assim, senti o ardor dos arranhões e as dores da pancada em meu corpo. O frescor da relva úmida chegava até meus pulmões e o frio começou a gelar meu rosto.

— Tem certeza de que você a viu entrando aqui? — Ouvi uma voz que parecia preocupada soar ao longe.

Tentei levantar a cabeça, mas o movimento parecia ser exaustivo de mais.

— Tenho sim — outra respondeu. Essa pareceu mais calma.

— Aqui! — alguém gritou ao meu lado.

Tentei abrir os olhos e gemi, sentindo minha boca seca.

— Deuses! — a voz preocupada exclamou surpresa. — Tayara, está me ouvindo?

Apenas sacudi a cabeça, para que ele soubesse que eu estava ali.

— Vamos levá-la para dentro. — Alguém passou os braços ao meu redor, levantando meu tronco do chão e eu gemi de dor. — Ariosto, vá na frente e avise Absalom que precisaremos dele.

Lembrei de quem era Ariosto. O lobo que nos fez atravessar o portal.

Os braços me levantaram do chão e me seguraram com força. Então senti aquele aroma de olíbano novamente e soube no colo de quem estava.

— Abud, vá à frente e se assegure de que não encontraremos nada que nos atrapalhe — pediu Aodh.

Senti o movimento do caminhar. Puxei o ar com força e tudo que senti foi o cheiro dele entrando pelo meu corpo. Gemi ainda desconfortável, pois o contato com seu corpo causava-me ardência na pele por causa dos ralados.

— Tayara — ele tentou de novo —, está bem? — perguntou baixinho, como se sua preocupação pudesse ser reprovada pelo outros, ou se sentisse vergonha por ela.

— Água — consegui soltar. Percebi que as forças me voltavam aos poucos e abri os olhos.

Deparei-me com o rosto mais perfeito que já havia visto na vida. Seus lábios eram finos, queixo forte e quadrado, olhos que me pareciam o céu em dia ensolarado e sobrancelhas largas. Ele notou que eu o encarava e apenas sorriu.

— Fique quieta que já estamos chegando — pediu, então emendou: — Por que veio para a floresta sozinha? É muito perigoso, ainda mais para uma humana.

— Agatha — sussurrei novamente, sabendo que isso poderia mudar completamente seu comportamento e fazer com que ele se tornasse rude comigo.

— Ela continua falando com você? — Ele franziu o cenho, mostrando seu descontentamento.

Fiz que sim.

O lobo voltou e Aodh se virou para ele.

— Absalom está nos esperando? — perguntou, e o lobo apenas acenou. — Obrigada, meu amigo.

Aquilo me soou muito estranho. Ainda que muitos humanos, em meu mundo, tratassem seus animais de estimação com carinho, como se fossem filhos, ali parecia haver uma compreensão mútua.

Apontei para o lobo.

— Por que o chama de amigo? — indaguei com dificuldade, e escutei uma risada ao nosso lado.

— Porque ele é um amigo — Aodh respondeu.

— Aodh, acho que ela não compreende — disse um jovem ao lado, ainda sorrindo. — Ele não é lobo o tempo todo, só quando quer.

Ergui as sobrancelhas com a informação, em sinal de esclarecimento.

— Creio que chamariam de lobisomem. Estou certo? — o rapaz perguntou, ficando um pouco mais adiante de nós.

Apenas sorri, concordando, e dei-me conta de que lobisomens realmente existiam, até em meu mundo. Olhei para Ariosto novamente, ele serviria de montaria no lugar de um cavalo tranquilamente, não sabia como um bicho daquele passava desapercebido em meio a uma cidade como São Paulo, por exemplo.

Pedi que Aodh me colocasse no chão. Eu estava sã e parecia que minhas forças haviam voltado. Dei os primeiros passos com dificuldade, mas recusei ajuda quando ele quis me apoiar. Eu estava bem, sem contar os arranhões, é claro. Ariosto começou a andar ao meu lado e me cheirar às vezes. Imaginei se ele estava se assegurando de minhas reais intenções.

O elfo jovem me deu a mão quando fomos passar pela barreira mágica da aldeia e eu só soube que havíamos chegado porque disseram. Para mim, a floresta continuava quilômetros à frente e o impulso de virar para a direita estava me consumindo quase o tempo todo.

— Não deixe mais a proteção da aldeia, principalmente sozinha — Aodh pediu, observando os outros elfos se afastarem da casa grande.

Todos já estavam em suas casas, provavelmente dormindo, e a sensação de ter tido o tempo roubado de mim não me deixava. Eu saíra dali e ainda tinha sol, mas em um piscar de olhos, estava noite.

— Desculpe. Não sabia muito bem o que estava fazendo.

Seus olhos me encararam e eu não soube mais o que dizer.

— A floresta já foi um lugar pacífico, mas, atualmente, tem muitas criaturas que te matariam sem pensar duas vezes.

Ele realmente parecia preocupado. Ainda que eu soubesse que não era exatamente por mim e sim por minha mãe, afinal, ela parecia importante para eles.

Absalom chegou e subimos para meu quarto. Minha mãe não tinha sido informada. Cedric dissera que ela ficaria mal por mim, mas eu sabia que ela cogitaria partir e isso ele não queria.

— Você teve uma visão ou sonho? — Absalom perguntou, dando-me um copo de argila com água para beber.

Tomei um longo gole e respondi:

— Não. — Segurei o copo nas mãos enquanto falava. — Foi mais como um encontro. Parecia que ela estava lá.

Cedric se sentou no banco, pálido como uma folha de sulfite. Aodh apenas cruzou os braços e Absalom me incentivou a continuar.

— Quando me tocou, foi como se minha noção de realidade tivesse mudado. Vi e senti coisas que pareciam alucinações, mas de alguma forma, eram reais. — Recordei dos cheiros e cores da floresta. — Ela disse que estaria comigo, para eu não sentir medo e que precisamos do livro.

— Livro? — Absalom indagou, procurando entender do que ela falava. Franziu a testa e olhou para o chão.

— O livro das sombras que sumiu quando ela foi morta — Aodh esclareceu.

O rei ergueu seus olhos arregalados para o elfo, mas o guerreiro deu de ombros.

— É o único livro que seria importante para uma bruxa — explicou.

— Faz sentido — Absalom concordou, ainda pensativo.

— Sabemos onde está? — Cedric perguntou. Suas mãos pareciam suar e tremer.

— Não — Aodh negou com a cabeça —, mas sabemos de onde sumiu.

Absalom virou para olhar para o guerreiro, não acreditando no que ele havia sugerido. Cedric parecia que entraria em pânico a qualquer momento e eu só podia imaginar que fosse por causa de minha mãe. Supus que ela tivesse falado algo no sentido de ir embora por causa dos problemas que eu vinha enfrentando. Então respirei fundo, tomando coragem para fazer aquilo que eu tinha vontade e que meu coração mandava.

— Podemos ir até lá? — questionei. Havia esticado minhas pernas e apoiado meus pés sujos de barro na mesinha de centro. — Talvez encontremos alguma pista.

Os três ficaram se encarando, como se pudessem se comunicar mentalmente, mas eu sabia que estavam apenas considerando as opções.

— Falaremos sobre isso amanhã. — Cedric se levantou e arrumou a camisa, puxando-a para baixo. — Estaremos com a cabeça leve.

Não consegui dormir muito naquela noite. Tudo o que tinha acontecido ficou rodopiando em minha mente. Fiquei repassando os detalhes, conforme eu lembrava e acreditava ser real. Conforme o sono chegava, coisas eram acrescentadas, até que comecei a sonhar e me vi em frente a uma gigantesca lavoura.

Edwin estava lá. Ele trabalhava no sol pleno, junto de outras pessoas. Eu estava vendo tudo pelos olhos da Agatha, que se sentia atraída pelo jovem misterioso. Ela descobrira que ele não era do reino, não tinha nascido ali e que viajava o mundo mapeando-o. O fato de que ele estivera fora dos muros da cidade e que devia ter conhecido muitos seres, a deixava ainda mais animada para conhecê-lo. Mas, de repente, um jovem ruivo surgiu em seu campo de visão. Agatha puxou uma capa, escondendo seu corpo e seus cabelos, e se esgueirando por entre as construções, ela deixou o local.

O sonho mudou, e eu senti como se meu corpo estivesse voando de verdade. Um forte vento soprou e me causou frio. Novamente, vi a traição de Edwin, mas daquela vez não prestei atenção à dor de Agatha e sim ao sofrimento que seu parceiro apresentava na face. Seus olhos estavam sem brilho e seu rosto tinha marcas roxas, os cabelos tinham perdido a cor e pareciam sem vida. Seus movimentos eram ágeis, mas ele se mostrava sem real vontade de completar sua tarefa. Não era ódio que Edwin sentia, mas mágoa, e acabar com a vida de Agatha era difícil.

Então ela sussurrou algo, enquanto o livro desaparecia:

—Tantum anima mearevelabit.

— // —

O rei élfico estava sorridente. Parecia confiante, respirando fundo e enchendo o peito ao olhar para minha mãe. No salão, havia elfos que eu ainda não tinha visto e não pareciam pertencer àquele local. Suas roupas eram luxuosas, suas peles e cabelos eram sedosos, como se nunca tivessem entrado em uma batalha ou trabalhado em suas vidas.

Eu estava me sentindo completamente perdida, sentada ao lado de Aodh que mantinha a coluna reta e parecia muito desconfortável. Até mais do que eu. Tentava não ser pega observando os elfos, mas um deles se mostrava muito atento a mim e virava sua cabeça em minha direção a todo momento.

Minha mãe estava sentada ao lado do rei, na cabeceira da mesa, e usava um vestido amarelo-claro, lindo. Em sua cabeça, repousava uma pequena coroa de flores e cipós. Ela piscou para mim tentando me manter tranquila.

— Senhores — Cedric decidiu falar —, eu sou muito grato a vocês por terem nos agraciado com sua presença. Mesmo diante dos perigos que estamos enfrentando, a luz élfica mostra sua força. — Ele pigarreou e levantou-se da cadeira, segurando minha mãe pela mão. — Essa é Sônia, a herdeira mortal dos Lamouniere.

Minha mãe olhou para todos em volta e sorriu, fazendo uma pequena reverência. Todos a imitaram e voltaram sua atenção a Cedric.

— Nós a encontramos no reino dos mortais com a ajuda de Ariosto.

— Então — um elfo o interrompeu — continua abrigando os lobos em seu lar.

Aquilo não fora uma pergunta e, pela face enfezada, o elfo parecia não aprovar a estadia dos lobos ali.

— Sim, meu amigo, os lobos têm sido de muita importância para nossa sobrevivência — Cedric respondeu, sem se importar com o descontentamento do elfo sentado a seu lado.

— Tenho saudades — começou um elfo que aparentava ser mais jovem. Seu nariz era fino e sua postura arrogante — do tempo que cada um sabia do seu lugar.

Alguns concordaram com ele, sacudindo suas cabeças para frente e murmurando. Cedric apenas sorriu para minha mãe, como se aquilo não lhe fosse surpresa e os ignorou, continuando com o assunto que acreditava ser válido.

— Fizemos contato com um grupo do antigo reino de Lamounier — disse, e olhou para Aodh.

— Eles vivem à margem do território dos centauros — o guerreiro completou.

— E como foi que conseguiram encontrá-los? — O jovem se virou para Aodh e me notou ao seu lado. — É uma terra longínqua e perigosa.

— Foram os lobos que conseguiram chegar até o grupo — Aodh respondeu.

De repente, os lobos não eram mais interessantes àquele jovem elfo. Seus olhos verdes permaneceram em mim. Mesmo quando Cedric continuou a exaltar todos os feitos e conquistas que Ariosto e seu bando trouxeram para a aldeia, ele não desviou o olhar.

Eu tentava me manter calma, afinal, estava em um ambiente estranho, rodeada de pessoas com uma cultura totalmente diferente da minha, mas meu rosto queimava de vergonha e indignação. Não era legal, muito menos educado, da parte dele me encarar daquela forma.

Desviei o olhar, mantendo-me concentrada no rei, na minha mãe, nos outros elfos que estavam à mesa conosco. Tentei preencher minha mente com a conversa que estavam tendo, mas tudo o que eu conseguia pensar era o quão irritante era aquele comportamento.

— Por acaso ficou com torcicolo e não pode mais virar seu pescoço? — perguntei.

Ele piscou e toda a mesa ficou em silêncio, fazendo com que eu me arrependesse no mesmo instante. Todo mundo me olhava.

— Não — ele respondeu e, dramaticamente, virou sua cabeça de um lado para o outro. — Estava apenas curioso quanto a sua presença nessa reunião e imaginando quando o rei Cedric te apresentaria. — Ele sorriu, apoiando a cabeça em sua mão esquerda. — Não é todo dia que nos sentamos junto de uma bruxa.

Um burburinho começou. Alguns olhavam para o lado indagando quem seria a bruxa, outros me encaravam com certo horror, franzindo suas testas e contorcendo seus lábios. Corpos se afastaram da mesa, como se manter distância fosse o indicado.

Cedric passou a mão no rosto e respirou fundo. Minha mãe ao seu lado me olhava preocupada, como quem vê o filho passar por uma provação, mas nada pode fazer além de apoiar incondicionalmente.

— Tayara é filha de Sônia — o rei falou por fim, e apontou para mim com o braço esticado. — Não conhecíamos sua origem até que a trouxemos para cá e sua magia começou a se manifestar. Mas eu lhes garanto que Tayara não representa perigo.

— Não até que sua lealdade seja cobrada pelos seus — o elfo mais velho falou. Seus cabelos eram prateados e suas mãos tremiam um pouco.

— Compreendo sua apreensão, Ancião. Contudo, não é de hoje que trabalhamos em conjunto de outras espécies, como lobos e bruxos, para que continuemos a existir. — Cedric levantou-se da mesa, empurrou sua cadeira para frente, arrumando-a no lugar e seguiu em minha direção. — Além do fato de Tayara acreditar, até poucos dias atrás, que era apenas uma humana, ela foi criada pela Sônia em um ambiente de amor e caráter. Sua lealdade está para com sua mãe.

Ele pousou suas mãos em meus ombros e senti aquilo como uma cobrança. Olhei em volta e todos encaravam minha mãe. Eu não sabia o que estava passando em sua mente, mas ela não demonstrou insegurança, apenas sorriu para Cedric que apertou de leve meus ombros e voltou até sua cadeira.

— Sônia me concedeu a honra de tornar-se minha rainha. — Sentou-se novamente e segurou carinhosamente a mão de minha mãe. — Acreditamos que, com a união, os povos se sentirão mais seguros e mais fortes.

Minha cabeça deu um giro de cento e oitenta graus. Vi minhas esperanças de voltar para casa sumirem. Minha vida nunca mais seria a mesma, jamais voltaria a ver minhas amigas ou a Maria. Precisaria me acostumar com aquele povo e seus costumes, fora, é claro, ser olhada com desconfiança, como estava acontecendo com os elfos à mesa, assim que todos descobrissem que eu era uma bruxa. Um nó desceu por minha garganta, causando-me grande desconforto, mas respirei fundo ao notar que minha mãe me olhava, preocupada. Forcei um sorriso, fingindo apoio a sua decisão, porém, quando ela fosse me procurar mais tarde, teria que ser sincera.

— Venha! — Aodh pediu ao meu lado, segurando minha mão.

Desconcertada pelo contato físico, sem saber muito bem como reagir diante daquela notícia e com o olhar acusador do elfo jovem, o segui. Não notei o movimento atrás de nós, sua mão quente segurando a minha, tomou conta da minha mente. De repente, era tudo o que eu sentia, era em tudo o que eu pensava. Seus dedos entrelaçavam os meus e eu podia sentir a maciez de sua pele, ao mesmo tempo, notava o suor brotar.

Achei que subiríamos as escadas, mas não. Ele me levou para fora da casa grande e deu a volta, indo para a parte de trás. Antes que pudéssemos nos afastar, escutamos alguém chamá-lo, o que fez com que ele parasse de andar. Contudo, não olhou para trás. Percebi seus músculos tencionarem-se.

— Aodh! — a pessoa insistiu e se aproximou.

O guerreiro tomou uma postura defensiva ao se virar. Continuou segurando em minha mão, porém forçou-me a ficar um passo atrás de si.

— Confia nessa bruxa? — indagou apontando para mim, ao ver nossas mãos juntas.

— Até agora, Ualri, ela não mostrou nada que despertasse a minha desconfiança — disse seriamente.

Aquilo não era verdade e meus olhos foram do jovem até Aodh rapidamente, mas não pude captar sua reação ao mentir. Havia o acontecimento do fogo que se alastrou pela aldeia no outro dia. Aodh jurava que me vira o aumentando.

Ualri me olhou mais uma vez e franziu a testa.

— Foi por causa de uma bruxa como essa, Aodh, que Haesbaert deixou de existir.

— Você está em Haesbaert, Ualri — o guerreiro respondeu rispidamente, cortando a frase do outro pelo meio. — Nós fazemos nosso reino, não dependemos de construções ou luxo.

O jovem elfo de nariz fino deu a conversa por encerrada, sorriu e fez uma pequena reverência com a cabeça ao nos deixar.

Aodh esperou que ele se afastasse e voltou a caminhar. Fomos até uma pequena casa e aguardamos alguém atender a porta, depois que batemos. Para minha surpresa, Absalom estava do outro lado.

A residência do elfo era repleta de livros, manuscritos, diários e chás. Havia um confortável sofá encostado na parede contrária à porta que entramos, uma escrivaninha do outro lado e algumas estantes. Pensei haver outros cômodos, como uma casa comum, afinal, onde mais ele poderia dormir?

— Fique com Absalom até que eu ou Aagje venha lhe buscar — Aodh pediu e saiu.

Tive apenas tempo de concordar com a cabeça, antes que ele fechasse a porta. Voltei minha atenção para o elfo mais velho que sorriu com pena.

— O rei de Sebben chegou. O conheceu? — ele indagou, servindo-me uma xícara de chá.

— Não sei — respondi, tomando um gole. — Havia vários sentados à mesa, mas só soube o nome de um; Ualri. — Tive dificuldade ao pronunciar o nome e Absalom riu.

— Ele é o príncipe de Sebben. Herdeiro do trono. — Puxou uma cadeira para si e arrumou a xícara em cima da escrivaninha. — Nós, Tayara, somos o povo élfico que mais sofreu por causa da guerra, exceto, é claro, os Lamounier, que logo chegarão. Contudo, perder nosso lar e todos os costumes que tínhamos adquirido com o passar das luas nos aproximou das nossas origens.

— Quer dizer que foi bom? — perguntei franzindo a testa, querendo compreender o que ele queria dizer.

Absalom levantou-se e pegou um livro, abrindo-o em uma página com uma ilustração de um elfo ao lado de um enorme cervo.

— Nós somos parte da natureza como qualquer animal, como qualquer ser vivo, mas por causa da nossa quase imortalidade, acumulamos, o que acreditávamos ser, sabedoria, e nos afastamos das florestas e de nossas raízes. — Ele virou algumas folhas.

O livro era bem velho, dava para notar pelas páginas amareladas e pelo cheiro de mofo. Fora que a capa de couro estava gasta. Então parou em um desenho e o virou para mim. Era uma cidade maravilhosa. Com construções majestosas, pontes ligando um lado a outro e um rio passando no meio. Do lado direito, um castelo gigantesco fazia sombra em mais da metade da ilustração.

— É lindo! — exclamei, extasiada com a beleza do desenho.

Ele sorriu e continuou:

— Acreditávamos ser superiores por milênios de conhecimento e ignoramos a força natural. Fomos atacados e quase dizimados por uma bruxa e seus vassalos. — Ele soltou um ruído parecido com uma risada amargurada e virou, mais uma vez, a página. O desenho seguinte mostrava uma rua da cidade com seus habitantes caminhando calmamente. — Eles parecem com os elfos que você vê aqui?

— Não — respondi, analisando as pessoas da gravura. Elas eram pomposas, com os narizes empinados e pareciam requintadas com suas roupas chiques. Certamente se distanciavam e muito dos elfos que viviam ali na aldeia.

— Repare nesse aqui. — Absalom me indicou um homem que aparecia na imagem. Ele estava parado e parecia observar o autor do desenho. Franzi a testa e cerrei os olhos, aproximando-me mais do livro.

A postura do elfo era ereta, bem como da maioria deles ali. Tentei ignorar as roupas que pareciam recém-saídas do alfaiate mais caro de São Paulo e fui até o rosto. Foi quando tomei um susto.

— Aodh! — exclamei.

— Sim — Absalom respondeu sorrindo. — Essa pintura foi feita pouco antes do ataque de Agatha. Esse foi o último livro escrito na, dita, época de ouro élfica. — Ele foi até a estante novamente enquanto eu finalizei meu chá. Pegou outro livro, colocando o anterior no lugar e o abriu. — Esse é ainda mais antigo — falou, passando os dedos pela capa. Percebi um certo carinho de sua parte pelo conteúdo daquelas páginas. — Ele o passou para mim e pediu que eu o folheasse. — Quando perdemos o reino, muitos de nós perecemos, mas os que sobreviveram, acordaram para o antigo, e aqui, em meio à floresta, voltamos a ser aquilo que nunca deveríamos ter deixado de ser: parte da natureza.

Nas páginas do livro que estava em minhas mãos havia muitos escritos, mas eu não conhecia as letras, por tanto não conseguia ler, mas as gravuras falavam por si e eram belíssimas. Nelas, os elfos caminhavam em meio a outros animais e seres. Fiquei de boca aberta quando me deparei com fadas e dragões ilustrados naquelas páginas.

— Elas voam? — questionei, apontando uma moça com asas do tamanho de seu corpo.

— Ora! É claro que voam! — Absalom gargalhou. — Pelo menos quando estão em sua forma natural. Assim — apontou para o desenho —, é muito complicado levantar voo.

— O que quer dizer com forma natural? — Franzi a testa sem entender.

— Os feéricos podem diminuir o tamanho de seus corpos, isso facilita o voo e sua capacidade de batalha.

Fui virando as páginas e as perguntas se formavam em minha mente e sumiam na mesma velocidade, pois eram tantas imagens incríveis que eu não conseguia organizar uma linha de raciocínio.

— Bem — ele pigarreou e eu levantei a cabeça para olhá-lo —, com isso eu quis lhe explicar que ao voltar às nossas origens deixamos todo preconceito com outras espécies de lado. Antes, achávamos que não precisávamos de ninguém além de nós mesmos, hoje, se não fosse a ajuda que recebemos durante os anos, estaríamos todos mortos. — Ele esfregou as mãos nas finas pernas, como se quisesse se esquentar. — Sebben não enfrentou a guerra diretamente e recusou nos receber em seu reino quando a fome nos assolava.

— Sebben é o nome do rei? — perguntei, querendo entender melhor.

— É o nome da família real. Assim como somos os Haesbaert, Sebben é o nome do reino e da família real deles.

— Lamounier era o nome da família real do reino que minha mãe é herdeira. É isso?

Ele concordou comigo.

— Então, mudando de assunto, gostaria que me contasse novamente, do que se lembra daquela noite na floresta.

Comecei a falar que a vi na parte de fora da proteção e que, sem pensar, havia ido em sua direção. Falei sobre a visão da floresta, em como tudo mudou de cor, tom e cheiro. Recordei-me de que não havia citado o fato de ter "saído do meu corpo" e relatei como tinha me sentido, vendo-me no chão e como havia sido puxada para dentro do meu corpo. Por fim, falei o que ela tinha me dito.

Absalom resmungou e puxou um caderno, anotou algumas coisas, voltou algumas páginas, balbuciou um pouco e arregalou os olhos.

— Temos que falar com Cedric.

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