Eu abri os olhos para enxergar um cenário completamente desfocado, o que me fez piscar algumas vezes para tentar limpar a visão. Eu não sentia meus braços e minhas pernas estavam pesadas. Minha cabeça pareceu pulsar quando algumas memórias voltaram a mim. O sexto nível. Eu estava presa? Aquilo não parecia uma cela. Eu estava... amarrada a uma árvore?
Não qualquer árvore. A minha árvore. Eu estava de volta à Floresta da Fronteira. Tudo estava ali, a brisa da estação seca, a penumbra, os cogumelos da lua. A energia dele. O lobo surgiu na minha frente da mesma forma como Calla costumava se materializar. Eu segurei a respiração.
- Vê a minha nova performance? - O tom de sadismo marcou sua fala exatamente como eu me lembrava. - Se eu soubesse que era assim tão fácil a locomoção pela desmaterialização teria ido atrás dela muito antes!
O lobo espectral abriu a mandíbula para exibir o rosto de Calla entre as presas, ela clamou por socorro antes de desaparecer na garganta da criatura. Aquela visão me perturbou profundamente.
- Eu vou te dar a chance que dei para a sua companheira. Corra!
Como eu poderia correr? Eu estava amarrada! Não mais. As correntes que me prendiam nunca existiram. Eu corri pela minha vida. A floresta mudava de forma como na tempestade, eu não consegui achar a saída dali. Eu sentia o lobo vindo à minha captura, os caminhos que tomei para me distanciar dele me deixaram ainda mais perdida na mata. O quão terrível foi pensar que aquele lugar seria enfim a minha sepultura como desejava a minha mãe.
- As árvores!
Sair da floresta parecia impossível, decidi então escalar uma das árvores e a subida pareceu mais longa do que de deveria. O lobo me alcançaria no topo? Eu nunca soube pois nunca cheguei lá. Em algum momento da escalada eu me encontrei na entrada da minha antiga casa.
- Mãe! Pai! - Eu disse alto ao entrar pela porta. Tudo estava disposto da forma como eu deixei antes de partir. Eu senti o cheiro do último assado preparado pelo meu pai. Que voz era aquela? Rori estava conversando com ele perto da fogueira lá fora.
Olhei pela janela para vê-los uma última vez. Prender o choro seria impossível. Ver o meu pai de novo me fez perder a sanidade. Eu encostei o rosto no vidro e chorei alto, a culpa e a saudade me dilaceraram a alma.
- Ele era tão forte, tão feliz, tão amado! - Me virei para me encontrar com a minha mãe.
- Eu preciso de ajuda! Mãe! O lobo está vindo! - Supliquei aos prantos.
- O teu pai te alertou sobre a chegada da entidade caçadora e você não o ouviu. Por que eu deveria te ouvir agora? - Ela virou as costas e desapareceu dentro da casa. Eu me ajoelhei para tentar manter as forças.
- MÃE! - Eu gritei! - Mãe! Não me abandona! Mãe eu preciso de ajuda! Eu preciso... me sentir segura... – O choro e a dor visceral me impediram de continuar.
Três vozes ressoaram:
- Pelas leis da Grande Nação de Acalla: por todas as evidências que indicam a autoria dos ataques contundentes contra aqueles que nos regem;
- Pelas vidas a serem preservadas: daqueles que escaparam da fúria dos Exilados, pelo favor das entidades que os pouparam de um fim violento nas mãos dos nossos inimigos;
- Pela magia concedida pela entidade da mente: ser soberano a quem apresentamos as verdades aqui expostas como justificativa para tal ato hediondo; o qual desfazemos agora para sua retomada de consciência;
Eles disseram em uníssono:
- Para a garantia de um julgamento justo à procura de culpa em teus atos, nós te libertamos do teu Inferno Astral.
Ser liberta da minha própria mente foi como emergir após um longo período sob águas turbulentas. Senti minha espinha se curvando de forma abrupta enquanto meu peito doía com a súbita sensação de voltar a respirar. Eu tentei em vão contrair os braços quando senti as correntes que me prendiam sobre o leito de granito. Ao meu redor estavam os três mentalistas que me libertaram do Inferno Astral acompanhados de Salazar.
- Isso é tudo. A Grande Nação de Acalla agradece os esforços de todos aqueles que a servem. - Os mentalistas reverenciaram o ministro e deixaram o recinto. Salazar fechou a porta e sentou-se sobre a pedra que me sustentava.
- Era melhor ter morrido pelas minhas mãos, não? O Inferno Astral é algo bem cruel, meio que como todas as magias mentalistas, na verdade.
- Por que você me tirou de lá? – Questionei com a voz falha e sem olhar para ele.
- Porque você ainda não foi julgada. Agora, é possível que você seja sentenciada a ficar presa em seu inferno pessoal até o fim das tuas eras. É isso que você quer?
Aquilo não podia estar acontecendo.
- Eu vou ser direto. Posso tentar aliviar para você se colaborar comigo aqui. Primeiro, quem te mandou e onde está a sua parceira?
- Quem me mandou?
- Sim, quem está por trás dos ataques às tropas? Eu sei que duas pessoas tão jovens não iriam planejar e executar o extermínio de soldados treinados sozinhas.
- Duas mulheres jovens conseguiram te acertar em cheio. Pelo visto uma de nós até conseguiu escapar do grande ministro da guerra. Acha mesmo que não somos capazes de algo?
- Não, aquilo foi uma boa estratégia. Se você fosse mais experiente na arte do combate, eu poderia ter caído fácil com aquela performance combinada que foi muito bem executada. O que te faltou foi experiência, não capacidade. Vai me responder ou devo te devolver aos mentalistas?
- Nós estávamos atrás de você! Você é o que? O próprio lobo ou o mandante dele?
Incrédulo, Salazar gargalhou daquele que pareceu ser um questionamento absurdo, até ele entender que se tratava de uma pergunta séria. O ministro inclinou levemente a cabeça e manteve os olhos em mim, sua surpresa pareceu legítima.
- Eu sou o lobo?
- Eu sinto a sua energia, eu vou te caçar enquanto eu viver! Você deveria ter me matado no Vilarejo da Fronteira como fez com meu pai!
- Você estava atrás do lobo espectral mesmo sabendo o quão perigoso ele é?
- Eu não estava. Sabe aquele incidente em Verídia? Era a mim que vocês estavam tentando silenciar. É, fui eu quem descobriu o seu plano para tomar o trono de Acalla. Quando fiquei sabendo que alguém do alto escalão estaria em Zaor eu tentei denunciar o que sabia, eu só não esperava me deparar com o próprio traidor!
Faltaram palavras à Salazar, ele estava tentando absorver tudo o que havia acabado de ouvir. O ministro se levantou e encarou uma das paredes tomando o seu tempo antes de se dirigir a mim novamente:
- Você me atacou por que achou que eu fosse o lobo?
- Você me atacou primeiro! A assinatura na sua energia é exatamente a mesma da criatura que matou meu pai. Ele servia a nação, ele te servia! – As lágrimas e a raiva assumiram o seu lugar – Ele acreditava em você... e você o traiu!
Salazar me olhou com firmeza. Ele enfiou a mão pela abertura da armadura onde o seu elmo deveria estar encaixado, de lá saiu algo que ele carregou consigo até o fim da sua vida. Pendurado em seu pescoço estava a presa faltante do lobo espectral, um pequeno troféu do seu primeiro encontro com a criatura em Acalla.
- Você rastreou a energia do lobo até mim por causa disso. Desde que arranquei isso dele eu carrego por aí na esperança que ele venha buscar e eu possa vingar meus soldados. Vê? Você me atacou à toa!
Salazar se moveu a passos lentos, sua voz era grave e firme.
- Você destruiu metade de uma vila achando que eu era o lobo...
Eu estava confusa e temi que ele fizesse comigo algo muito pior do que a sentença ao Inferno Astral.
- Você colocou em risco a vida de gente inocente e atrapalhou uma investigação oficial!
Eu apenas fechei os olhos esperando não sentir dor.
- E eu te ataquei por achar suspeita a presença de duas supostas civis no local de um ataque massivo. - Salazar soltou as correntes. - Eu não estou traindo o meu reino, Agda, e eu certamente não traí o seu pai. Mas o fato de você achar que eu o fiz me faz questionar: existe algo mais que eu deva saber?
Eu estava com medo, estava fraca e um pouco desesperada também. Eu olhei Salazar no fundo dos olhos e eles não me deixaram dúvidas, aquele era o momento de levar a minha informação sobre os planos exilados a alguém que faria um bom uso dela.
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