Vinte Minutos e V

By lalivro

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Jeongguk, um jovem pintor, conhece um modelo enigmático que se torna sua fonte infinita de inspiração. V, a m... More

Jeon Jeongguk
Charles Dickens
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Jane Austen
Hermann Hesse
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Fiódor Dostoiévski
Sylvia Plath
Clarice Lispector
Mia Couto
Haruki Murakami
J. D. Salinger
Sophia Andresen
Seagull
Liev Tolstói
Elena Ferrante
Emily Brontë
Caio F. Abreu
Kim Taehyung

Jorge Luis Borges

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By lalivro

Olá, meus queridos leitores. Obrigada por continuarem acompanhando Vinte minutos e V.

Estamos próximos do fim e eu espero que este capítulo alcance as suas expectativas. Por favor, não esqueçam de deixar muitos comentários! Isso me mantém motivada a continuar escrevendo e significa muito, muito mesmo, para mim.

Não vou me alongar, nos vemos nas notas finais, haha.

Boa leitura!


O nome dele me foge da boca.

Kim Taehyung. Kim Taehyung. Kim Taehyung.

Fico repetindo baixo o dia todo. Adquiri essa mania nova agora, sussurro mil vezes sob a respiração, caminhando pra lá e pra cá, ouvindo o eco dos meus sapatos nesse salão enorme.

— Meu amigo, você parece um esquizofrênico.

É o que o Namjoon me diz. O desgraçado do Namjoon. Não deve ter a porra de um trabalho porque está aqui desde cedo me atormentando.

— É só um nome, Seagull. Só isso, não muda nada. Assim como V é só um apelido que eu inventei.

— Não é só um apelido. É uma cor.

Ele solta uma daquelas risadas de escárnio pelo nariz. Detesto isso, está zombando de mim. Eu devo ser uma piada mesmo, a anedota irônica dum pintor miserável consumido pela própria musa.

— Que cor o quê? Não tem nada disso. O cara apareceu com o cabelo vermelho, e já não sobravam mais cores disponíveis naquele catálogo velho de tinta de parede que, na época, eu guardava na gaveta da escrivaninha. Então, V. Pura falta de criatividade. V, de vermelho. Foi só isso.

Só isso?

O filho da puta tem coragem de dizer um troço desses pra mim depois de virar a minha vida do avesso.

Namjoon me encara, agora sem o ar costumeiro de deboche. É pior, talvez. A boca volumosa se contrai numa linha, surge uma ruga solitária no meio de suas sobrancelhas. Me dá um desconforto no estômago quando identifico a emoção escondida nas feições. É pena.

— Você inventou o V, Seagull. Não eu.

Ele tem razão. No fundo eu sempre soube. Era o menino das noites, o legítimo. Era o menino que chorava de verdade, sem poses prontas, sem gestos ensaiados ou frases decoradas. O amanhecer, a metamorfose, tudo isso foi também invenção. Fruto de inspiração, solidão, ambição. A busca pela obra de arte que me faria imortal, uma produção delirante do meu próprio desejo.

Encaro Namjoon por um segundo, o homem que nomeou V. Sou assaltado por uma súbita curiosidade.

— E se você tivesse que me catalogar, Namjoon? Se eu fosse um dos seus modelos. Qual seria o meu nome?

— Branco — responde sem pestanejar. Fica óbvio que já tinha refletido sobre o assunto antes. — Não o off-white das noivas, nem o branco fosco da casca de um ovo, mas o mais puro e brilhante branco. Com essa tua inocência de menino e a idealização que você faz de tudo. Idealiza o V, as musas, a mim e a arte. É o mais simples dos brancos, aquele que torna qualquer coisa muito fácil de ser lida. Branco feito gaivota.

Esboço um sorriso. Sobre o branco, tudo fica muito evidente. Não dá pra esconder um traço defeituoso no papel, uma mancha de batom na camisa, o mofo na parede.

O desgraçado até que tem um ponto.

— Você devia ter me dito antes. Será que eu teria sido menos ingênuo?

— Duvido... Já faz quanto tempo desde que vocês se encontraram?

— Ontem fez uma semana.

— Você acha que ele não quer te ver mesmo?

Dou de ombros. Há sete dias eu me forço a não pensar nisso, a afastar o troço pra lá, evito pensamentos intrusivos.

— Ele sabe onde estou. Sabe como eu me sinto.

— E você sabe onde ele trabalha. Por que você não vai até lá?

— Já fiz o que precisava fazer.

— Isso é orgulho?

— Orgulho que nada, Namjoon. Isso é bom senso. Não quero ficar incomodando alguém que não tá a fim de me ver. Me dá um tempo.

— Eu aposto que ele quer te ver. Taehyung é um garoto que cresceu numa realidade muito distante da sua. Ele está com medo, e tem seus motivos. Se alguma coisa der errado nessa relação de vocês, quem se fode é ele.

— Como se eu estivesse pouco fodido...

— Você sabe exatamente o que eu quis dizer, Seagull.

Me calo. Chega desse assunto. O negócio é o seguinte: sei muito bem, claro que sei, mas não consigo encontrar um único argumento pra não arriscar. Prefiro correr o risco de ser abandonado de novo do que passar mais um dia longe dele.

— Tenho que ir lá em cima assinar alguns contratos de venda — desconverso. — Um colecionador polonês arrematou seis telas hoje.

É mentira, mas fazer o quê. Cansei da fuça dele.

— As vendas estão de vento em popa, hein? — sorri enquanto caminhamos em direção a porta. — Eu te disse que a exposição era uma boa ideia: "As vinte faces de V", soa muito bem.

— Aham. Me sinto completamente vazio, mas pelo menos os bolsos estão cheios.

— Como é dramático. Desde quando dinheiro é ruim?

Chegamos na saída. Começo a sentir uma ânsia pra me livrar dele.

— Dinheiro é ótimo, Namjoon. Maravilhoso. Quanto mais, melhor.

O sorriso dele se alarga. Não capta minha ironia, meu desprezo. Como gosta de dinheiro, esse homem.

— Se cuida, Seagull. Nos vemos.

Sem pressa — sussurro pra mim mesmo, assistindo Namjoon se afastar. — Espero que nem tão cedo.

Paro por um instante, contemplando o lado de fora, através das portas de vidro da galeria. Chove. Já faz dias que o tempo não muda. O céu amanhece claro, engana a gente com a falsa promessa do sol. No fim da tarde dana a chover.

Em dias assim a galeria enche mais. A chuva reduz as opções de passeio, não se pode fazer compras em Myeongdong ou ver as apresentações musicais em Hongdae, então aqueles que não se interessam pelos detestáveis Shopping Malls vêm parar aqui.

Eu caminho pelo cômodo tentando não chamar muita atenção, ainda que seja meio impossível com a droga da minha foto num totem de um metro e meio do lado da porta. Mas eu tento passar despercebido assim mesmo. Gosto de observar as pessoas. Imagino o que as traz aqui, que tipo de vida em preto e branco levam. Em sua maioria são casais, os casais adoram os museus e as galerias. Analiso. Fico tentando identificar aqueles que já estão há muito tempo juntos, os que se conhecem o suficiente pra não ficar vomitando suas opiniões sobre quadros, técnicas, artistas favoritos. Quando se conhecem de verdade, de verdade mesmo, não preenchem silêncios. Basta se olharem, e compreendem.

Só que a maior parte dos casais de hoje fala pelos cotovelos. Estão nos primeiros encontros, é fácil deduzir. Adoram as galerias de arte pros seus primeiros encontros, penso que deve ser porque tem muita coisa pra se opinar. Este é feio, bonito, ruim, bom, triste, feliz, et cétera. Hoje em dia todo mundo tem opinião sobre tudo, é um negócio horroroso.

Ouço a porta abrir outra vez, o som agudo do vento ecoa pelo salão da galeria como um longo assovio. Sou tomado pela súbita sensação de que estou sendo observado. Me viro.

E encontro o nome que escapa de forma inconsciente da minha boca.

Kim Taehyung.

Trocamos um olhar. Não tem espanto no rosto dele quando me vê. Não tem surpresa. Não tem engano.

Ele veio por mim.

Me sinto gelado e em chamas e sem ar e sem chão e inteiro, inteiro, inteiro.

Ele caminha. Atravessa o salão. Desvia das pessoas, mas seus olhos não desviam dos meus.

Vem cá. Depressa, anda. Anda logo que eu não consigo me mover. Meu corpo não aceita a revoada de pássaros em meu coração, então vem depressa.

Nada o detém. Ninguém nem se dá conta da súbita e ilustre presença. É ele, é V, minha musa desfila bem debaixo dos seus narizes. Ninguém direciona o rosto pra ele, estão encarando os quadros, estão com os livros embaixo do braço, porra, só falam sobre V, o analisam, encaram, interpretam, discutem, opinam sobre ele. E não o reconhecem.

Só que ele veio por mim e não tenho tempo pra me preocupar com esses imbecis em preto e branco, não. Ele veio por mim, que se foda todo o resto.

Sinto o olhar castanho atravessar minha pele, ele não se permite espiar pelo canto, não está disposto a escanear a sala. Não é a reação esperada. Supus que entraria em êxtase aqui, deslumbrado com a própria imagem, mas Taehyung nem se vira pros lados, parece ter medo daquilo que pode encontrar. Foca em mim como se eu fosse seu ponto de equilíbrio. Se ele me perde, tropeça. Suas feições se tornam mais claras agora, mais próximo, tudo aqui é claro pra cacete, a galeria branca, limpíssima, o pé direito alto, luzes pra todos os lados, sobre os quadros e rascunhos, nada foge dessa claridade opressora. Aqui, não existem esconderijos.

Ele está nítido agora. Olheiras esverdeadas emolduram orbes fundas, escurecidas. Lábios pálidos contidos. Eu noto seus detalhes — sempre fui assim, um reparador de pequenezas.

O casaco puído está molhado nos ombros, fios de cabelo úmidos se grudam na testa. A respiração soa arrítmica, talvez seja cansaço, talvez nervosismo. Será que veio correndo na chuva? Não, não... é nervosismo sim. As mãos enfiadas nos bolsos da calça escondem punhos fechados, nem preciso ver, ele faz isso quando está nervoso. O meu coração hesita. Pausa. Espera.

— É maior do que eu pensava.

Ele para diante de mim. Não posso tocá-lo aqui e isso dói.

— A exposição?

— Não, Jeongguk.

Seu olhar encontra o meu. O instante se expande — torna-se presente, passado, expectativa, decepção — esse instante é a suspensão da realidade comprimida num olhar. Uma linha tênue e invisível se estica, se estica, nós nos equilibramos sobre ela feito corda bamba. As pessoas ao redor conhecem V, mas não o reconhecem. Não o meu. Em silêncio, ele me encara. Suas íris de raposa guardam um ano de passado. Nosso amor se revela, concreto e indomável. Eu sustento sua intensidade, existe um vínculo mudo. Revivemos toda a história que compartilhamos. Dura nada, some. Ele morde o lábio inferior, solta o ar pelo nariz, fita os sapatos. Está usando um par de tênis brancos, já encardidos. Me lembro bem deles. Ficavam jogados no canto do armário enquanto ele rodopiava descalço, saltando pregos.

— É imenso, Taehyung. Eu sei.

Eu sei, ele sabe.

Ele finalmente repara os arredores. Só que é rápido, percebo que está incomodado. Gira o tronco e se vira pro quadro mais próximo, buscando um local seguro para fixar a visão. É o quadro da clareira.

— Que bonita, a sua exposição — ele elogia. — Tem tantas obras que não reconheço.

Sua exposição — corrijo.

— O quê?

— Nada. Você já tinha vindo a esta galeria?

— Sim, uma vez. A exibição fotográfica... Ante Badzim.

— Ah. Que coincidência.

— É.

Caímos em silêncio. Eu ensaio frases na cabeça, perguntas: Por que veio? Mudou de ideia? Dessa vez, você fica?

Só que os pontos de interrogação têm espinhos e eu engasgo.

— Sua irmã também parou bem na frente desse quadro. — A frase captura sua atenção de imediato. — Por isso vim falar com ela. Então ela disse que sou eu, a árvore. Disse que sou solitário.

Ele solta um sorriso.

— Suyu está certa, você é arredio. Também vive fugindo, mas do seu jeito.

— Deixei isso pra trás.

Taehyung me espia de canto, então volta a admirar o quadro. Chega bem perto da tela, suspira.

— Você colocou o meu entalhe.

Está lá, no meio do tronco, pequeno, quase imperceptível: VGULL.

— Claro. É a incrição da nossa lápide.

— Não. Nunca foi uma despedida, Jeongguk.

Meu estômago afunda.

— Então o que era?

— Uma evidência. De que existíamos, Seagull e V, ainda que ninguém soubesse... era a prova de que nós fomos felizes.

— E por acaso deixamos de existir?

— Eu pensava que sim.

Bufo, um pouco impaciente. Ele não reage, nem repara, desliza pelo piso frio da galeria e caminha displicente, passando os olhos pelas minhas obras penduradas em paredes brancas, debaixo de luzes brancas. Já escureceu e a claraboia não presta pra nada a essa hora, somos reféns da iluminação artificial.

— Fica mais bonito durante o dia — menciono, meio ofendido pela forma como ele continua a dar passos tranquilos, sem se demorar em nenhum quadro.

— Você tem usado cores mais sóbrias.

— Algumas cores perderam o sentido pra mim.

Ele se detém e me encara outra vez, mãos nos bolsos. Desde que chegou ele esconde as mãos. Mantemos uma distância segura. A galeria ainda está cheia, sou o artista, tenho consciência de que atraio olhares curiosos. Mas, ainda que não me toque, Taehyung me observa de um jeito que reconheço, como no dia em que me preparou um banho e lavou os meus cabelos. Vejo a mesma emoção disfarçada cintilar no castanho.

— Senti sua falta nesses últimos dias — sussurra, tão baixo que duvido de meus ouvidos. — Pensei muito no que você disse.

— Eu disse muitas coisas.

— Pois é. Nunca tinha te visto tão falante. É um alívio, sabe? Naquela época, você me atormentava com seus enigmas silenciosos.

— Não muda de assunto, Taehyung.

Ele encolhe os ombros, balança a cabeça. Sinto que faz certo esforço pra afastar V, sua fachada provocativa, sua capacidade de desviar dos tópicos difíceis.

— Você disse que não fazia sentido ficarmos separados e miseráveis. Isso não sai da minha cabeça. Seria possível? Um outro final?

— No momento, precisamos de um outro começo.

Ele sorri, único e inesquecível, todo o seu rosto se ilumina, e eu tenho um súbito vislumbre daquele garoto ao piano dedilhando uma melodia alegre. O garoto de sorriso enorme, espiando sobre o ombro pra ver as crianças dançando, os idosos batendo palmas. Kim Taehyung.

Meu corpo inteiro vibra, implora pra que eu o tome em meus braços. Hesito. Sei que isso pode afugentá-lo. Então continuo seguindo seus passos leves enquanto ele transita pela galeria.

— A grandiosidade disso me assusta — comenta ao passar em frente à réplica do outdoor. — Eu estava tentando te conquistar, me destacar das suas outras musas. E olha só o que você fez.

Fiz o que me pediu.

Faria de novo, pintaria mais mil quadros, ele já sabe. Parece encantado com a exposição. Continua deslizando pelo salão principal da galeria, sem pressa, até alcançar o meu canto favorito, bem no fundo. Prevejo onde vai parar. Mas não o impeço.

Ele trava. Noto quando enrijece a mandíbula. A veia que já conheço salta em sua têmpora. Meu coração ecoa, apertado e indomável. Paralisado ao meu lado, ele encara o próprio rosto.

Kim Taehyung. Kim Taehyung. Kim Taehyung.

— Sou eu.

— Sempre é você.

De repente ele se inquieta. Confere todos os lados, alterna o peso do corpo entre os pés. Está claramente preocupado, angustiado, eu o conheço. Perde a postura. Só que os casais continuam a vomitar suas opiniões superficiais sobre quadros. As pessoas em preto e branco apontam seus celulares na direção das telas. O fato é que ninguém dá a mínima.

Namjoon estava certo, eu inventei V. Como minha própria invenção, sou o único capaz de reconhecê-lo. Como as flores, as ondas do mar quebrando no cais e todas as cores da aurora, meus vinte minutos. Só eu o enxergo.

Eu e Kim Taehyung.

A bela máscara mudou, mas como sempre é a única.

Identifico as aspas na entonação dele. Estou prestes a perguntar pelo autor da frase quando escuto um tímido chamado às minhas costas.

— Com licença, Jeon Jeongguk? — A voz é feminina, rouca e dócil. — Sou uma grande admiradora, vim de muito longe para te conhecer.

É uma senhora baixinha de uns setenta anos. Os cabelos cem por cento brancos estão amarrados num coque minúsculo. O idioma coreano que usa de forma notavelmente polida carrega um forte sotaque. China, eu acho. Talvez Taiwan.

Em suas mãos rugosas, está o meu livro.

— Ah, a senhora poderia...

— Como se chama?

... voltar mais tarde? — é o que eu tinha a intenção de dizer, mas ele me atropela. Não pode ver um idoso que fica assim, todo bobão. Está fixado na velha agora, olhos amplos brilhando, o tronco curvado sobre a figura encolhida.

— Meifang.

— A senhora me lembra tanto a minha avó! Ela tinha um jeito muito doce, como a senhora.

Ele oferece aquele sorriso e não tenho outra escolha a não ser acompanhá-lo na gentileza.

— Muito prazer, senhora Meifang. Gostaria que eu autografasse o seu exemplar?

Ela fica visivelmente alegre, as bochechas coradas. Assim que me entrega o livro, Taehyung toma as mãos miúdas nas dele. Começa a tecer elogios e perguntas enquanto eu tento me concentrar pra escrever uma dedicatória decente. A velha só concorda com a cabeça, rindo. Acho que não acompanha um terço da tagarelice dele.

Quando eu enfim finalizo com a minha rubrica e tento devolver o exemplar, não recebo atenção. Meifang segura firme as mãos dele.

— Jovem, você assina também?

— C-como? — A expressão dele se transforma.

A senhora Meifang se curva de leve. Aponta o indicador pro retrato na parede: o busto de V em grafite, 30 por 40 centímetros. Imponente e belo como uma estátua realista.

A mão de Taehyung treme ao pegar o livro. Reparo os movimentos inseguros, está acanhado. O nariz dele se colore de rosa, não sei se está constrangido ou se sente vontade de chorar. Só que ele abre a capa corajosamente. Me procura com o olhar inibido. Tem medo ali.

— A caneta.

Entrego a ele. É desajeitada a forma como apoia o livro no antebraço esquerdo e tenta escrever. As sobrancelhas estão franzidas no meio da tenta, olhos castanhos perfurando o papel. Não ouso conter minha curiosidade dessa vez. Estico o pescoço pra ver a assinatura.

V.

— Ah... seu livro.

Meifang abraça seu exemplar contra o peito e se curva diante de nós. Por sorte estamos no canto mais isolado da galeria, onde ficam os rascunhos em grafite, e nem uma alma parece dar atenção à cena. Ela se ergue após um instante e me oferece uma expressão afetuosa.

— Isso não é coisa fácil de se encontrar. — ela alerta, em tom amável, e se afasta. Quando volto minha atenção pra Taehyung, percebo que ainda está trêmulo.

— É melhor eu ir.

Ele parece desconfortável na própria pele, dividido entre ser V, Taehyung, os dois e o mesmo. A linha tênue de nosso mundo secreto se partiu.

— Já? — Eu checo o relógio. — Faltam vinte minutos pra fechar.

— Me desculpa. Não estou me sentindo bem.

— Vamos nos encontrar de novo?

— Eu te ligo.

— Mesmo? Não é melhor me passar o seu número?

— Vou ligar, eu te prometo.

Hesito. Considero insistir pelo número, mas vejo que está ansioso e sei que forçá-lo pode acabar tendo o efeito contrário. Preciso deixá-lo livre, mas temo que ele mude de ideia assim que pisar do lado de fora. V era imprevisível. V não apareceu no hotel. V sumiu sem deixar vestígios.

Este é Kim Taehyung.

Tenho que confiar nele.

— Obrigado por ter vindo.

Ele sorri em despedida e se distancia de mim. Caminha, decidido, em direção à saída. No ar, o perfume de V deixa um rastro adocicado. Ainda usa a mesma fragrância de antes.

Quantas vezes já não assisti suas costas emolduradas por uma porta? Independente do quanto eu peça pra ficar, ele sempre vai.

Eu sou dentro, ele é fora. Ele é a praia, a trilha, a estrada serpenteando morros distantes, calçadas entupidas de gente e restaurantes e bares e cafés.

Eu sou o ateliê, a galeria, o hotel, a segurança hermética dum maldito cômodo privado. Sempre fui meu próprio cativeiro. Convido V para ser prisioneiro também e ele teima em me puxar pra fora — o mundo, preto e branco, lá é a vida, lá eles vivem, porra, os vivos estão por toda parte.

Nosso inverso é minha prisão. Uma cela sem grades, aberturas privilegiadas com vista pro mar. Passei a vida assistindo através de janelas.

Por que diabos estou isolado num cômodo enquanto o amor da minha vida escapa, de novo?

Aperto o passo e a porta automática abre e ainda chove um pouco, quase nada, garoa fina. Viro dum lado pro outro em busca daquela cabeleira castanha, do casaco desbotado. Estranho como se desbotou, ele. Sinto minhas meias ensopadas, detesto os sapatos sociais, prefiro as botas de antigamente.

Encontro. Está dando uma corridinha atrapalhada pra se esconder na cobertura estreita de um ponto de ônibus. Algumas pessoas se aglomeram apertadas, eu corro pra alcançá-lo. E chego. E pego sua mão.

Ele me olha alarmado, arregalado, puxa a mão pra fora da minha, ele tenta, na verdade, só que eu seguro firme.

— O que tá fazendo?

E confere ao seu redor, gira pescoço e cabeça, tem pavor de ser observado. As pessoas estão nos encarando e isso incomoda ele agora; antes, não incomodava.

— Me leva pra dar uma volta — eu peço.

— Te levar?

— Só uma volta.

— Já não sei se existe volta.

Eu me calo. Não possuo as palavras, não aguento mais palavras, ele me examina, não decifro nunca o que ele pensa, sinto apenas o pulsar de meu coração elétrico na palma da mão, a dele bem apertada na minha e fria e molhada.

— Vamos, — e me puxa — depressa.

Sou arrastado para o meio da avenida larga, os carros buzinam alto, faróis cegam minha vista, batimento cardíaco disparado — pelo amor de Deus, nós vamos morrer, seu cabeça de vento — o som agudo de um freio maltrata meus ouvidos e então estamos finalmente na calçada do outro lado e a risada dele toma tudo, tudo.

— Um minuto com você e eu quase perco a vida!

— Só corre esse risco quem vive, Jeongguk.

Quem vive.

Por um milésimo de segundo me vejo, sozinho, pernas cruzadas sobre um carpete, cercado pelo aroma de limpeza. Continuo sendo aquela criança reclusa com seus lápis-de-cor e tinta guache, mantido onde é seguro — lá fora é perigoso, Jeongguk, a vida é lá fora e viver é arriscado.

Fica.

Taehyung, eu assisti a vida através de janelas, quero dizer isso a ele, mas ele não para de correr ou de rir e também não solta a minha mão.

— Pra onde estamos indo? — é um quase-grito rouco, um chamado tímido no meio da chuva, duvido que ele vá ouvir.

Só que recebo resposta:

— Eu não faço a menor ideia!

E corremos. Ele não trava, não diminui o ritmo, não hesita, segue em frente e dobra esquinas aleatórias, pula com confiança o meio-fio, pisa firme em poças d'água. Estou prestes a ter um maldito infarto, juro por Deus, sinto meu pulmão comprimido numa camisa de força, não consigo mais respirar.

Então paro.

— Espera — sussurro, e engulo tanto ar de uma vez que me engasgo, começo a tossir.

— Tudo bem aí?

Ele está ofegante, apenas ofegante, como quando acaba de fazer amor.

— Não, cacete. Vou morrer.

— Você só fala de morte, lápides, perder a vida e essas baboseiras. Que coisa mais mórbida!

— Por que você correu tanto?

— Sei lá, me deu vontade!

Sinto um cheiro terrível de esgoto. A chuva fez com que a água voltasse dos bueiros. Estamos em uma rua estreita. Muito estreita, a calçada deve ter uns trinta centímetros e está destruída. Uma motocicleta passa a toda velocidade por nós, o ronco do motor quase estoura meus tímpanos.

Meu primeiro instinto é reclamar, claro, que lugarzinho de merda que você me trouxe, quase me matou pra chegarmos nessa sarjeta. Só que assim que meus olhos buscam por ele a coisa muda de figura, a coisa sempre muda de figura quando o vejo. Então não reclamo.

— O que estamos fazendo aqui, Taehyung?

— Nos escondendo, como sempre.

— Eu duvido que alguém vá reconhecer a gente na rua, não sou assim tão relevante.

Ele bate as mãos na calça jeans. Está ensopado agora, nós dois estamos. Já ouvi dizer que quando a gente corre na chuva, ficamos ainda mais molhados. Deve ter sido isso, parece que acabamos de sair do mar.

— Você se lembra daquele dia em que pegamos a estrada, Seagull? O dia do outdoor. Pensei que éramos pássaros. Você corria de caminhonete no asfalto, tão rápido, achei que a gente ia sumir no mundo. Acho que queria essa sensação outra vez, sei lá. Se formos rápido o suficiente, ficamos invisíveis. Você não sente isso?

Lembro tão claramente que poderia pintar um quadro aqui e agora, na escuridão desse beco fedorento. Consigo ver à minha frente: V, a cabeça deitada no antebraço, apoiado na janela do carro, cabelos rosa e trigo e coral esvoaçando ao vento, o céu azul, o verde da vegetação, é tão nítido que quase posso sentir aquele sabor artificial de liberdade.

— Ficamos invisíveis pro mundo, nunca um pro outro. Aquele dia, pela primeira vez na vida, senti que alguém podia me ver de verdade. Não o artista, não o garoto rico, não o cara ranzinza que reclama de tudo. Não em preto e branco. Finalmente alguém me enxergou em todas as minhas cores. E eu enxerguei V.

Ele sorri.

— V foi criado especialmente pra você, Jeongguk. Sob medida. Eu sempre quis tanto te impressionar.

— Você me impressiona, Kim Taehyung. Me impressiona pra cacete, na verdade, faz isso como ninguém. Inclusive, acho muito impressionante como não consigo nunca prever o que você vai fazer e isso me deixa puto, é sério, mas também me deixa cada vez mais maluco por você. Você me faz perder a cabeça.

Peguei ele de surpresa. É difícil fazer isso e, quando acontece, ele deixa transparecer. Os olhos dele cintilam.

— Por que veio atrás de mim?

— Vim porque você abre as janelas e as portas.

Taehyung sorri. Sabe exatamente o que eu quero dizer.

— As pessoas em preto e branco já não parecem tão ruins assim? — questiona. Eu identifico uma ponta de deboche.

— Talvez. Acho que tem algum troço bonito pra se ver aqui fora, apesar desse cheiro de esgoto.

Ele dá risada agora. Segura a minha mão.

— Estamos totalmente ensopados. Vamos comprar um negócio quente pra beber, anda. Preciso de um chá.

Entrelaça os dedos nos meus, faz de um jeito que parece a coisa mais corriqueira do mundo. Há certo encanto particular nas coisas corriqueiras. O aconchego de um chá quente, a mão entrelaçada na minha. Não gosto de erva cidreira ou camomila, esses tem um gosto terrível de grama, mas os de limão com gengibre, maçã ou canela me transportam de imediato pro peito dele, dá pra sentir a respiração leve na minha nuca, o peso do abraço sobre os ombros.

Eu sigo seu encalço, ele comanda, virando esquinas com uma segurança que eu já conheço, os passos firmes de V. Passam dois minutos, talvez cinco, estou meio anestesiado pela forma como ele segura a minha mão e me guia no escuro. Mas é jogo rápido, ele logo entra num boteco, um estabelecimento pequeno e mal-iluminado, com mesas dobráveis de metal e ferrugem.

— Aqui ninguém vai prestar atenção na gente — justifica. — Podemos conversar em paz.

Não gosto quando ele desvencilha os dedos dos meus, mas evito reagir. Taehyung escolhe uma mesa no canto, afastada, e eu o acompanho em silêncio. Quando me sento ao lado dele, a cadeira desgastada range em agonia.

— Sinto muito pelo lugar.

— Eu não me importo.

— A gente costumava ir a ótimos restaurantes.

— De verdade, que se dane o lugar, Taehyung. — Encaro fundo os olhos castanhos, olhos tão quentes de afeto. Ele cobre minha face com a mão. reconheço aquela mesma ternura. — Somos você e eu, na estrada, no ateliê, na praia, em hotéis caros ou numa ruela. Nada mais importa desde que estejamos juntos.

Nos abrigamos em nosso refúgio interno. O ateliê continua a existir dentro de nós. Todo este universo secreto está escondido em nosso olhar. O inverso do mundo é o avesso da gente.

Taehyung fecha as pálpebras molhadas. Me beija. Sinto gosto de café e fumaça, o sabor antigo do cigarro de flores. Os lábios se acariciam com saudade, ânsia e sede. Então ele inspira fundo, tão fundo, me aperta a nuca.

E se afasta. Me analisa.

— Ainda bem que você me encontrou.

— Eu não ia desistir. Sou orgulhoso, você sabe. Nem todo orgulho é nocivo. Quis me render dessa busca muitas vezes, mas sua presença nunca me abandonou.

— Por isso continuou a me pintar? Todos aqueles quadros lá dentro, os desenhos... muitos eu nunca havia visto.

— Pintar você, te rascunhar, reviver cada detalhe, torna a realidade mais suportável. Assim, lembro que você existe. Em infinitas versões. E eu as amo, todas. Até aquelas que ainda não conheci.

 Por um instante, estamos sozinhos, eu e ele. Como sempre, eu sou pássaro, ele é céu.


NOTA DA AUTORA

Espero que tenham gostado do capítulo! Um pouco de afago no coração depois de tanto sofrimento? Tomara que sim, hahaha.

O próximo é o último! Estou com o coração batendo na garganta enquanto escrevo isso. Me despedir destes personagens é muito doloroso. São companheiros do meu dia, sempre penso neles. Vou continuar pensando, eu acho. Mas sei que eles merecem um final. Espero não desapontar vocês <3

Vai rolar uma publicação independente de VMEV. Tô trabalhando com profissionais maravilhosos na edição, revisão, ilustração, design... já estamos em modo total de produção e eu acredito que a pré-venda irá se iniciar no final de maio ou início de junho.

Por favor, me acompanhe nas redes sociais para não perder nenhuma atualização sobre o livro de VMEV. Lembrando que sou @lalivro em todas as redes :)

Agradeço de coração a todos que continuam acompanhando essa história, que sentem carinho pelos personagens e torcem para que sejam felizes. Agradeço também aos leitores que indicam VMEV aos amigos, comentam sobre a fanfic nas redes sociais e divulgam esta história. O papel de vocês é fundamental para que eu possa tornar esta publicação possível, e também para que eu possa continuar escrevendo. Muito obrigada mesmo.

No mais, espero que vocês tenham uma semana excelente! Nos vemos no próximo e último capítulo. Estamos quase nos despedindo de Seagull e V.

Com amor,

Larissa.


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