Corona III

By lumalopees

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As manchetes dos jornais eram bem claras ao comunicar ao mundo, em letras garrafais e giratórias, que a herde... More

O Palácio Celeste
Noite em Família
Fios de Prata
O Alto Beco
A Boa Doutora
Fama de Tinta
Antes do Veneno
Bela Fada
Cheiro do Mar
Sombras do Passado
Enquanto o Sol se Põe
Entre as Estrelas e o Abismo
Sinos de Prata e Sangue
A Dança do Tabuleiro
Ao Noivo e À Noiva
Cheiro de Chuva
Solo de Sonhos

Le Forte

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By lumalopees

Cinco meses. E uns dias.

Eu nem estou com cara ou humor para escrever um capítulo inteiro de desculpas, sabe? Não pela terceira vez. Quem estiver lendo, obrigada. Quem ainda estiver aqui desde Corona I e está esperando até hoje o prosseguimento da história, obrigada. Quem se lembra, obrigada. Obrigada mesmo. Não mereço vocês.

A vida é complicada e uma merda. Tive um final e início de ano infernal. Me mudei para o Rio de Janeiro (olá, alguém por aqui?) e comecei a trabalhar. E queria muito, muito menos, voltar a escrever. E eu fiz. Finalizei esse capítulo que estava 90% completo por quase meio ano. E finalmente, só no finalzinho, sinto que voltei a sentir o gosto e porque me apaixonei tanto por tudo isso: por esse universo, por esses personagens, por essa trama. Eu reli alguns capítulos do final de Corona II e início de Corona III uns dias para trás, juntando todo o o gás possível para me motivar e, caramba, que gás!

Que história boa, meus amigos e amigas e amigues - camaradas de todas as esferas e maneiras. Eu amo essa história. Eu amo de verdade. E tenho tantas coisas grandiosas preparadas para ela que, mais uma vez, me recuso a deixar isso passar. Tenho um compromisso: comigo, com vocês, com a Mal. E irei honrá-lo - ou Lagrum vem atrás de mim.

Enquanto vocês leem, vou aproveitar para responder alguns comentários, que tal? Eu ainda amo ouvir vocês. 

Sem mais delongas, sejam mais uma vez bem-vindos a Corona. Desta vez, eu espero, por definitivo. 

Mal feito, mais que feito.

Nox!

Eu espero que ninguém tenha dúvida sobre quem chegou primeiro ao lago.

Foi Draco, aliás.

Eu tinha desculpas e defesa, mas quem se importava? Derrapei na grama macia e fofa apenas alguns segundos depois dele, que corria tão rápido que só parou quando seus pés já tinham chegado na água. O garoto estava ofegante, com o cabelo bagunçado e os olhos mais brilhantes que eu já tinha visto. O tipo de brilho que vi apenas no fundo, em alguns momentos de Hogwarts. Geralmente conosco sozinhos, já que Malfoy sempre guardava seu melhor para quando ninguém estivesse vendo. Lá estava, então. A criança. O menino de treze anos que apostou uma corrida boba e estava muito, muito feliz de ter vencido. Seu rosto estava corado e a boca aberta, puxando o ar em grandes quantidades para os pulmões.

— Você parece cansado, Malfoy — chiei para fora, apoiando minhas mãos nos joelhos. Meus lábios torceram por um sorriso na derrota, prontos para dispararem apenas alguns golpes amigáveis. — Se eu não te conhecesse, acharia que colocou bastante esforço nisso, quase como se achasse que não fosse vencer.

— É muito bom que você ainda tenha algum pensamento coerente nesse seu cérebro com pouco oxigênio, então, para reconhecer a grande mentira que isso seria — me devolveu, rebatendo a provocação com a facilidade e elegância que eu esperaria dele em qualquer momento. Era tudo esporte, era tudo fachada, pois ele não tinha problema nenhum em mostrar seus ombros subindo e descendo pelo esforço da corrida e eu podia ouvir seu coração disparado. Então olhou para a água, uma ideia e um sorriso acendendo como o sol acima de nós. — Você sabe nadar, não é?

Foi uma manhã magnífica. Draco e eu passamos mais da metade dela no lago. Estava de dia, agora, e eu pude ver melhor como o lugar era quase encantado, vindo direto de um livro infantil. Era uma clareira espaçosa e natural, com o lago que parecia ainda mais prata-líquido na luz se estendendo de forma generosa. Apesar da cor, Draco não pareceu nem um pouco preocupado em mergulhar nele e, debaixo dele, o lugar era cristalino e fundo, com uma margem rasa que ia se perdendo. As árvores ao redor eram de folhas abundantes em suas sombras frescas, com flores graciosas e bonitas nos circulando. Não era isolado, porém, havia até mesmo um caminho de pedras e um conjunto de mesas e cadeiras como de piquenique do outro lado que nos sentamos.

— Minha família gosta de vir aqui, de vez em quando — Draco comentou, secando ao sol junto comigo, em cima da grama fofa. Tinha os braços apoiados atrás da cabeça e os olhos fechados, aproveitando a forma que o sol não deixava que nossas roupas molhadas fossem um problema. — Meu pai diz que vinham muito mais, quase sempre, antes de...

Ele pareceu morder o resto da frase no último instante, prendado-a pelos dentes antes que escapasse. Soltei o ar, devagar, e ergui meus olhos para cima. O céu estava tão bonito. Azul primavera com nuvens fofinhas e brancas, da forma que uma criança desenharia o dia perfeito. Meu corpo gelado se conformava ao sol, calor chegando até a ponta dos meus pés e sendo absorvido com vontade. Eu sentia falta da luz quente, sentia falta da sensação deliciosa no meu sangue e nos meus músculos rígidos. Minha estação preferida sempre foi o verão.

— O que você sabe dela?

— Não muito, na verdade — eu apreciava a voz gentil do meu namorado tanto quanto apreciava a forma em que ele não fez nenhum movimento. Continuou falando comigo, deitado ao meu lado, sem nenhuma tentativa de me embalar nos braços. Seria ruim para os dois lados. — Mesmo que todos tivessem coisas boas a dizer, ainda parecia doer demais falar. Sempre tinham essa cara estranha, como se não decidissem se choram ou se sorriem, e então falam de alguma coisa que ela gostava, que fazia ou que era. Menos com meu avô.

— Ele ao menos se decide? — Fiz um esforço para torcer minha língua, para pingar algum veneno, algum deboche nisso. Mas apenas o vazio me recebeu e, quando olhei para o lado, Draco também olhava para cima, os olhos perdidos no céu. Quando falou, foi com uma das vozes mais cruas que já ouvi. Não era cruel ou debochada, não era galante, não era nem mesmo suplicante e exposta, como em cima daquela árvore. Era apenas a voz de um menino. Jovem, confusa, triste. De alguém que cresceu em meio ao luto por alguém que se um dia conheceu, não se lembrava, e tinha de conviver e respeitar o fantasma dele em meio aos outros que amava.

— Ele não fala dela, Cora. Nunca. No máximo, fica com um olhar... não é nem triste, nem feliz. É vazio. Como se abrisse um buraco e toda a vida fosse sugada dele e só restasse uma casca. Me disseram para evitar perguntar sobre a tia Myran para ele, em especial. Vovó me contou que eles eram gêmeos e que meu avô nunca se recuperou de verdade da morte dela, mas está melhor agora.

Fiquei quieta, pois não queria ressaltar que o melhor de Abraxas ainda era uma sombra erguida apenas em nome das pessoas à sua volta. Se ele não sabia, era uma observação egoísta. E se sabia, era apenas cruel. Fechei os olhos e, algum momento depois, quando senti os dedos de Draco correndo pela minha cabeça, não protestei. Myran. O rosto dela veio fácil na minha mente, absorvido daquele vislumbre no jornal que Diggory me mostrou no Caldeirão Furado. A mulher linda, tão bonita, e tão diferente de mim com seu cabelo prateado e olhos claros. A matéria não falava muito, parecendo ter receio em mexer em seu fantasma tanto quanto sua família. Nasceu em 29 de março de 1927. Morreu ao tentar dar à luz a uma menina prematura, de sete meses, em 7 de julho de 1980 – que até onde sabiam, também não havia sobrevivido. Torci meus lábios em uma linha, tentando afastar o gosto amargo na parte de trás da garganta.

Comecei em uma rede de mentiras no momento em que abri os olhos.

Você tem uma tendência forte ao amargor, filhote. Havia reprovação na voz de Lagrum e tive que conter a vontade de mostrar as presas para ele. Aqui está você, em uma bela manhã de sol, com seu namorado palito-de-dente, deixando pensamentos sombrios tomarem sua cabecinha.

Se eu não te conhecesse, Lagrum, acharia que está me incentivando a baixar minha guarda.

É essa a questão, Corona. Seus olhos estão tão abertos o tempo inteiro que se tornam cansados e sua visão, coisa tola por princípio, se conforma ao achar as manchas de sangue que já estava procurando. Há muito mais para saber e aprender sobre seus pais do que suas mentiras e segredos – ainda mais se for apenas para você ficar se vitimizando sobre isso.

Você parece saber uma coisa ou outra... acusei, uma rápida sensação de náusea e vergonha puxando meu estômago. Eu não estava bancando a vítima, estava? Senti Lagrum exibir os dentes para mim, cada fileira de navalha branca e venenosa em um sorriso que significava tanto morte quanto humor.

E talvez eu saiba. Pergunte ao seu namorado se ele sabe, também.

Uma imagem piscou para mim, como o flash de uma foto. Um caminho que ainda não tinha tomado, partindo desse lago, não muito longe. Me sentei, olhando na direção das árvores, franzindo as sobrancelhas pela trilha de migalhas de pão imaginária que aquela cobra idiota havia me deixando e o que isso teria a ver com meus pais? Draco, que me olhava ainda deitado no chão, tinha uma sobrancelha bonita levantada quando desci meus olhos para ele, em uma exigência silenciosa de uma explicação, um pouco de hesitação deixando-o tenso de uma vez só. Relaxando os ombros, apoiei uma mão no braço dele. É claro que ele estaria preocupado em ultrapassar alguma linha sem saber, em me deixar desconfortável. O fato dele conviver com essa tensão acima de sua cabeça me fazia querer correr para longe de uma vez.

— Está tudo bem — resmunguei, esperando que ele entendesse que o movimento brusco não tinha nada a ver com ele, conosco. Ele estendeu, uma mão preguiçosa subindo pelo meu pulso, agarrando-o com gentileza, acariciando com a ponta dos dedos, seus ombros relaxando outra vez. Fazendo força para ignorar o fato de apenas estar ao meu redor ser um motivo de estresse, indiquei o lugar para onde eu olhava. — O que tem para lá?

Desta vez, suas sobrancelhas se encontraram e ele ergueu o tronco, emparelhando comigo ao olhar para a mesma direção. Era como qualquer outra, com apenas uma leve trilha esquecida e mal cuidada. Estava claro que andaram por lá, em algum momento. E já fazia muito tempo que não andavam mais. Malfoy encolheu os ombros, me olhando com desconfiança muito mal disfarçada antes de responder:

— Até onde eu sei, apenas o antigo Forte — e como continuei olhando para ele, esperando por mais, o garoto se ajeitou melhor na grama, apoiando as duas mãos na terra antes de indicar de novo a direção com o queixo. — Uma casa na árvore. Meu avô e tia Myran construíram, quando eram crianças. Fez parte da vida do meu pai, também. Mas não da minha.

Porque, na sua vez, Myran tinha morrido e ficou doloroso demais compartilhar um pedaço dela com a próxima geração. Apertei os lábios um do outro, com força, e ainda não os tinha desgrudando quando me levantei. Draco, precioso e inteligente menino, se levantou junto comigo, não precisando perguntar o que estava acontecendo e nem o que eu pretendia. Não acho que ele se importava com qualquer uma dessas respostas, verdade seja dita. Ele apenas estava ali, ao meu lado, e uma parte de mim se preocupou em quanto fundamentalmente natural isso estava se tornando uma certeza tão básica como ter Lagrum ao alcance da minha alma. O que eu faria se algum dia eu olhasse para o lado, tão certa das estrelas, e encontrasse apenas o nada?

O coração de Malfoy errou uma batida quando entrelacei meus dedos nos dele, mas eu precisava que esse tipo de pensamento fosse embora. Draco estava aqui e agora e sua pele era quente e macia, com calos nos dedos onde treinava com o arco. E eu poderia contar o ritmo de seu coração de tantas formas diferentes: pelo chão, pelos meus ouvidos se prestasse atenção o bastante. Mas a minha favorita era assim, quando tinha a pele dele na minha. Tomado de incentivo e coragem, o menino apertou a mão na minha e isso me fez sorrir. Se havia uma parte de mim que queimava e que tinha o fôlego roubado, eu preferia acreditar que era puramente pelas melhores razões.

Acho que a pergunta que não quer calar é: quantos lugares saídos de um sonho encantado faziam parte dos terrenos do Palais? Mesmo sem o lago, a campina que desembocava no final do caminho abandonado não perdia em nada. Ao invés do brilho do sol refletindo na água-estrelada, aqui tínhamos as flores. Tantas e em tantas cores e tamanhos que não fazia sentido para a natureza, mas talvez para quem algum dia as plantou. E ali estavam elas, tão selvagens como a magia de que bebiam, ainda belas e vibrantes mesmo devido aos anos de abandono. E coroando o mar vibrante à nossa volta, havia a casa. Ou, melhor dizendo...

— É claro que tinha que ser uma espécie de mansão, não é? — Eu estava sorrindo, a risada temperando cada palavra enquanto erguia os olhos até a construção, muitos e muitos metros acima de nós. Como duas crianças haviam construído isso, eu ainda não me atrevia a conjecturar.

— Malfoys tem padrões, Corona — o garoto me devolveu, uma voz afetada e nasalada. Seu nariz estava para cima, tenho certeza, mas eu estava muito ocupada olhando a casa. — Até mesmo para viver no mato.

E era bem essa a impressão: aquilo não parecia como um playground de criança, mas sim como uma casa. Era grande o bastante para isso, aparentando ter vários cômodos e dois... três andares? A risada saia cada vez mais, escapando pela incredulidade e fascínio. Como? O primeiro andar era pelo menos trinta metros acima do chão, como? Meu corpo foi para frente, a mesma energia gostosa que me fez apostar corrida pela floresta me guiando em direção àquela façanha maravilhosa, mas encontrei resistência. Virei o rosto, confusa, vendo Draco ainda bem parado no lugar.

— Temos que ir almoçar.

A frase, junto a todo seu contexto, faziam parte de um mundo ainda tão desconhecido que tive que piscar algumas vezes, minha cabeça se inclinando, genuinamente confusa pela declaração. Talvez ele estivesse com muita fome, depois de toda a corrida e natação? Imagino que um garoto bem-criado como Malfoy não saiba lidar com o sentimento da fome por mais tempo do que o mínimo do mínimo. Então percebi que talvez ele não estivesse apenas sendo mimado e um estraga-prazeres, mas sim um bom filho. Alguém não havia nos dito para voltar para o almoço? Uma coisa assim. Mas..., sério? Eu poderia, se fosse conveniente. Não era. Eu não estava acostumada com um mundo onde tinha que avaliar se tinha permissão para fazer algo: seja fazer a coisa em si, seja apenas não estar ou não onde devia. Apertei meus lábios um no outro, irritada com a súbita vontade de cruzar os braços e pisar forte no chão macio.

— Eu acho que esse negócio de ter família... — comecei, minha voz saindo devagar e um pouco azeda, com certeza muito contrariada. — Não é só sobre presentes e privilégios, não é?

— Com certeza não — e com a delicadeza que desfez o resto da minha careta petulante, Draco me puxou de volta através do passo que eu havia dado. — Podemos voltar durante a tarde. Além do mais, passou tanto tempo que ninguém vem aqui que parece meio errado simplesmente... entrar. Talvez devêssemos falar com meu avô.

Arqueei uma sobrancelha para isso, não querendo nunca que ele parasse com o carinho que seu polegar vazia na base do meu pulso, nossas mãos ainda unidas.

— Sim, claro, vamos trazer o único assunto proibido à mesa, bem para a pessoa que deve ser especialmente evitada sobre isso.

Malfoy estalou a língua para meu deboche, um sorriso torcido de quem aprendeu a abanar a mão desdenhosa na frente de problemas e desconforto, e encolheu os ombros.

— Só depois da sobremesa.

Estavam, de fato, nos esperando quando saímos da orla da floresta e fizemos nosso caminho de volta para a mesa do lado de fora, agora preparada para o almoço. Já estavam todos lá, inclusive, seja lá o que haviam feito nessa manhã de sábado, os permitindo sentar à mesa antes de nós. Narcisa nos olhou de cima para baixo quando chegamos, nada de maldoso em seu azul, apenas se preocupando em possíveis feridas. Sorriu de forma que seus olhos pareciam duas pedras preciosas quando não encontrou e fez sinal para nos aproximarmos depressa.

— Passaram a manhã no lago, pelo que vejo.

— Era preciso, mamãe — Draco contou depois de deixar a mão beijar o topo de sua cabeça. — Corona precisava se limpar da vergonha de perder na corrida.

— Não me obrigue a te fazer sentir o gosto de grama junto da comida, Pequeno Lorde.

A ameaça se perdeu no ar, quase ignorada enquanto eu passava pelo garoto e sua mãe, indo em direção à mesa. Mesmo fazendo quase duas semanas que eu estava no Palais e me sentindo mais familiar e confortável do que alguma vez me senti na vida, em Hogwarts ou entre os Weasley, ainda havia um pequeno momento que registrava com fascínio a bizarrice que se formava na minha frente. Ali estava Lucius Malfoy, por exemplo, o rosto e nome que representava uma das famílias mais antigas e poderosas do mundo Bruxo. Tentava conciliar a imagem do homem na minha frente com a que construí nos poucos e desagradáveis encontros que tivemos antes da minha mudança: o homem tão belo quanto elegante e cinco vezes mais desprezível na cabana de Hagrid, a figura gelada e bem-arrumada atrás de sua esposa na enfermaria e no escritório de Pomfrey, e a quase criatura tão cruel quanto qualquer sede de sangue na plataforma do Expresso de Hogwarts.

Todos esses seres tinham a mesma voz e o mesmo rosto, mas dificilmente poderia ser dito a mesma pessoa. Ou fada. Sentado à mesa de madeira nobre, tão bonitamente vestido como qualquer ocasião, com os cabelos presos em um rabo de cavalo que deixava longas e finas mechas caindo ao lado de seu rosto esculpido. Eu podia dizer que a diferença eram apenas seus olhos, tão brilhantes e reluzentes ali, na segurança de seu lar e entre os seus. Ele observava Narcisa interagir com o Draco, perdido em pensamentos que iam e vinham como as ondas do mar e eram tão suaves como a espuma branca perdida na areia. Mas, não, não era apenas seus olhos que formavam essa criatura ainda tão diferente – uma que, ao contrário das outras, eu gostaria de conhecer. Era cada pedaço de seu rosto que passava a ter calor. Finalmente, eu pude enxergar que havia um coração escondido ali.

Quando ele me percebeu encarando, seu olhar veio preguiçoso na minha direção. Ali, apenas a curiosidade branda de quem escolhe esperar que a água toque seus pés primeiro na beira do mar.

— Eu não sei sua cor favorita — foi o que saiu de mim, pois não sabia mesmo. E de todas as informações mais pessoais e intimistas que pude pensar, essa me pareceu bastante importante. Os lábios do homem se torceram, rosados e cheios como os de sua mãe, e ele deixou que um sorriso de ponta de presas aparecesse e fizesse par com as sobrancelhas que se encostaram, tão loiras e retas como as de seu pai.

— É azul — e eu sorri com a resposta, talvez pela imagem que veio tão fácil na minha mente e na dele, ou talvez na dele e então na minha, de um tom de azul-céu-de-primavera que era quase mais bonito do que qualquer coisa que a natureza pudesse criar. — E a sua?

— Laranja — meus ombros se encolheram enquanto eu me sentava, pela primeira vez, em um lugar logo na frente de meu primo. Soltei o ar com o rosto surpreso, quase descrente do que ele fez, com sua boca aberta e sobrancelhas subindo em direção à linha do cabelo, e revirei os olhos. — Não... laranja, laranja. É o tom que faz no céu quando amanhece, sabe?

— É realmente uma cor muito bonita, Coryn.

O cenário do almoço foi mais do mesmo. Qualquer pessoa teria dificuldade em imaginar, dado aos seus olhos sem alma e rosto de pedra, que os Malfoy em sua vida privada seriam tão comunicativos. Uns mais e outros menos, é claro, mas não havia uma única refeição silenciosa ou engessada. Estavam todos sempre muito relaxados na presença uns dos outros, confortáveis. Em uma família composta de pares, todos sempre escolhiam sentar ao alcance de um braço um do outro – seja ao lado, seja na frente. Hoje, por exemplo, me sentei ao lado de Draco e lutei pela sobrevivência do meu pudim de caramelo como qualquer pessoa faria. E achei que havia poupado meu tio de olhares muito longos ou inquisidores ao longo da refeição, imaginando sua reação ao meu desejo de tomar o Fort vivo outra vez. Mas Abraxas, apesar de não ser legilimênte, estava muito longe de alguém despercebido.

— Me dê o prazer da sua companhia, sobrinha? — Ele perguntou, um sorriso suave que continha alguma lembrança de calor, e inclinei a cabeça, tentando-o ver mais de perto. O homem não me parecia lá tão bem: faltava cor em sua boca e a sombra em seus olhos havia feito presença também abaixo deles. Mas não era hora nem lugar de fazer perguntas, ainda, então concordei e saí da mesa ao seu lado, prestando atenção em meus passos para não ultrapassar o ritmo de sua bengala. Apertei meus lábios com força, uma sensação horrível crescendo no meu estômago à medida que eu ficava sozinha com ele pela primeira vez. Porque, sem mais interferências, pude reconhecer aquele cheiro. Era o mesmo da Abadessa Joan, naquele quarto de hospital.

— Eles sabem? — Não tinha a intenção de sussurrar, mas minha voz saiu como um sopro mesmo assim. Já estávamos em uma distância considerável, mesmo para ouvidos sobrenaturais, e Abraxas não demonstrou nenhuma surpresa ou confusão com a pergunta. Apenas lançou os olhos de luz na minha direção, os lábios ousados até mesmo torcidos em algo que lembrava graça. Não parou de andar antes de dar sua resposta.

— Athara sabe, é claro, não temos qualquer segredo, mesmo se eu tentasse ou quisesse — e havia amor ali, amor de verdade. Não a sombra ou o eco dele, mas o sentimento cru e latente que quase fez cor aparecer no meu rosto pelo simples fato dele pronunciar seu nome. — Eu agradeceria se mantivesse isso entre nós. Meu filho e minha nora, e ainda meu neto..., dê a eles um pouco mais de tempo.

— Vai pegá-los desprevenidos? — Não pude deixar a raiva longe da minha voz. Era uma ideia estúpida, como os adultos geralmente têm. — Dessa forma, eles vão ter ainda menos tempo para se acostumar com a ideia, para se despedir. Talvez até mesmo encontrar uma forma de te ajudar...

— Não há ajuda para mim, preciosa Coryn — e apesar das palavras suaves, não havia espaço para argumentações balbuciadas ali. — Estou trapaceando a morte por tempo demais, usando um tempo roubado por seu pai para mim. A cada dia que ainda fico aqui é um milagre e um crime: contra os deuses, a Magia e a natureza. E mesmo assim, ainda devo ter algum tempo. O único porém é que, enquanto isso, terei dias bons e dias ruins. Hoje é um dia ruim.

Hoje, a bengala dele não era apenas um acessório bonito.

Fiquei em silêncio, meus olhos ainda se acostumando em como o Palais era gigantesco: seus jardins possuíam trilhas e caminhos e curvas que escondiam bem o labirinto bonito que aquilo era e imaginei os incontáveis dias que cada geração de futuros senhores devem ter perdido, na infância, para decorar cada um deles. Claro que Abraxas era um, mesmo que não mais morando em seu lar ancestral, ainda se lembrava bem de onde ficava cada pedra, me guiando com tranquilidade (e com os passos ainda firmes, mesmo que não muito rápidos) através de cercados de flores e caminhos de ladrilho até um banco. Um simples banco de pedra branca, bonito e polido e bem cuidado como tudo na propriedade, e se sentou. E mais uma vez achei gentileza em não apontar como seus ombros relaxaram mais e sua respiração foi mais profunda, como alguém descansando de um longo esforço.

— Algo especial aqui? — Não resisti à pergunta, pois ele havia passado por outros locais tão agradáveis para se sentar quanto no nosso caminho para cá. Abraxas inclinou a cabeça, contemplando – se foi minha pergunta ou as batidas de seu coração, já não sei, mas tomou seu tempo antes de responder.

— Aqui é o meio do caminho de um destino que você ainda deve conhecer, mas não hoje — e apontou para o resto da trilha, pelo cascalho que se seguia e fazia uma curva para se perder na floresta. — Para lá, depois de uma rápida viagem pelo bosque, está o mausoléu da família. Todos os Malfoy de sangue ou de casamento que estiveram nessa casa descansam lá, menos dois. Alguma palpite?

— O Diretório Puro Sangue não chegue nesses detalhes, não — sem falar que era um livro antigo, com qualquer anotação "atual" tendo dependido de Pansy. Os olhos de meu tio brilhavam de forma divertida, estrelas girando em si mesmas, enquanto ele apoiava as duas mãos em sua bengala, firmemente fincada no chão à sua frente.

— Uma sepultura bonita carrega o nome de minha irmã, mesmo que não tenha qualquer singelo grão das cinzas que ela deixou — o mesmo gelo que mordeu seus olhos de novo agarrou meu estômago, dedos afiados me forçando a ajustar a coluna, a apertar os lábios. — Uma parte egoísta de mim gostaria de continuar esse caminho, te arrastar para mais este confronto, mas... — e então suspirou, recalculando palavras e respirando fundo. Abraxas fechou os olhos e inclinou a cabeça para cima, ficando quase cinco segundos inteiros assim, em silêncio, aproveitando a luz do sol no rosto antes de olhar para mim outra vez. O vazio na sua imensidão crua e prata era a mesma de uma galáxia inteira já morta, engolida por um buraco negro. — Mas se metade do que dizem sobre você é inegável, então é filha de seu pai. Você irá quando quiser..., ou melhor dizendo, quando sentir que precisa.

Eu tinha perguntas. Meus lábios se separaram apenas para as palavras se atropelarem e morrerem na minha língua, murchas e tolas. Não evitei que meus olhos se arrastassem na direção que ele apontou, mas durou apenas um segundo ou dois ou três. Imaginei como seria o tal mausoléu, se seria como um Palais em miniatura: tão branco e puro, erguido em orgulho e magia para guardar a memória dos seus senhores e senhoras. Essa era uma curiosidade que ficaria para depois, assim como algumas outras que me atravessaram. Ele havia dito dois.

— Draco e eu encontramos o Forte — foi o que saiu da minha boca, pois afinal era a razão de estar ali. Sem nenhuma reação negativa no rosto curioso do adulto, continuei. — Ele deu a entender que seria de bom perguntar para você se está tudo bem se formos lá.

— Um rapazinho bem educado, não acha? — A voz torcida que ele disse isso imediatamente colocou um sorriso tão deformado quanto nos meus lábios, quando seu tom chegou de forma perigosa perto do deboche.

— Um pequeno lorde, eu diria — foi minha resposta, a cabeça inclinada em uma zombaria contida, recebida por um brilho rápido de estrela cadente que cruzou seu rosto inteiro. Eu não achava que Abraxas era um oclumênte, ele não tinha o vazio antinatural que exalava de Draco e sua mãe, mas claramente era alguma coisa, ou sabia de alguma coisa, pois o clarão de seus olhos não revelava nada além do que estava na minha frente: o rosto bonito e composto, cheio de energia selvagem e vacilante.

— Como está?

Eu sabia que não era uma pergunta sobre mim, ou sobre seu neto. Encolhi os ombros, balançando as pernas sob o sol..

— Abandonado e bonito, esquecido em uma lembrança de contos de fadas.

Desta vez, foi demais. Quando a ponta de seus lábios quebrou, como se tentasse respirar com uma costela quebrada, eu já havia atingido o limite de gentileza.

— Isso está ficando um pouco chato, Abraxas, e eu não estou aqui por mais de um mês — Talvez minha voz tenha ficado dura e afiada rápido demais, talvez suas sobrancelhas tenham se franzido um pouco, mas nenhum som ou movimento foi feito para me impedir de fazer as palavras saírem. — Com todo respeito ao seu luto e dor, a órfã sou eu. E se você não queria que as lembranças da sua irmã definhassem, talvez não devesse ter obrigado sua família inteira a se afastar dela para conseguirem te arrastar para fora do buraco onde você caiu.

— Uma coisa que posso confirmar sobre você, Corona, é que tem um péssimo temperamento — seus olhos brilharam como raios caindo no mar, iluminando quilômetros de escuridão antes de desaparecer. — A outra é que não é mentirosa, mesmo quando é cruel. Que tal isso? Façamos um acordo. Eu lhe dou as chaves do Forte e você cuidará bem dele com a ajuda de Draco, aposto, e eu lhe contarei todo dia algo sobre seus pais, sobre minha irmã em especial. Desta forma, trabalhamos os dois para que minha ofensa seja perdoada.

Eu não sabia que havia uma chave, sequer que o lugar estava trancado, mas parecia bom demais para entrar em pormenores agora. E Malfoy não era nada além de negociadores, de fazedores de acordos. E eles sempre ganham – de acordo com Pansy, com Daphne, com eles mesmos. E Abraxas Malfoy era mais velho e mais perigoso que seu neto e que seu filho, astuto e inteligente mesmo em sua casca atual. Mas vejam só, aparentemente eu também era. Eu não fazia ideia do que havia herdado de minha falecida mãe, mas esperava que tivesse algo relacionado a essa invencibilidade.

E mesmo se não, eu ainda tinha o outro lado.

Eu ainda tinha o sangue do meu pai.

— É um acordo. 

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