A Pequena Dorrit (1857)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - REGRESSO À CASA MATERNA
Capítulo II - A PENITENCIÁRIA
Capítulo III - O BECO DO CORAÇÃO-QUE-SANGRA
Capítulo IV - DESGOSTOS DO CORAÇÃO
Capítulo V - UM ADIVINHO
Capítulo VI - A PERSONAGEM INQUIETANTE
Capítulo VII - UMA GRANDE NOTÍCIA
Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMÍLIA DORRIT
Capitulo IX - UMA SEQUÊNCIA DE DESGRAÇAS
Capitulo X - DE NOVO A PENITENCIÁRIA
EPÍLOGO

Capítulo XI - ESCLARECEM-SE OS MISTÉRIOS

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By ClassicosLP

Nos dias que se seguiram, o estado de Arthur agravou-se bastante. Foi acometido por uma violenta crise de desgosto e de terror pelo seu cativeiro. A sua repulsa era tão intensa, que mal conseguia respirar e julgava que asfixiava. Assim permaneceu durante dois dias e uma noite, caminhando de um lado para o outro, completamente insone. Finalmente, a calma voltou, uma calma lúgubre, e, então, a febre apossou-se sorrateiramente dele.

O sexto dia da semana estipulada por Blandois foi um dia quente e húmido. Clennam, de cabeça dorida e o coração depauperado, esperara que a noite findasse, escutando a chuva a tamborilar nas lajes do pátio. A prisão começava a despertar a pouco e pouco e conseguiu, depois de se arranjar, afundar-se na poltrona, numa espécie de sonolência que o delírio vinha interromper. Em determinada altura, perseguiu-o tenazmente a impressão de se encontrar num jardim florido, onde o vento espalhava aromas deliciosos. virou a cabeça e avistou sobre a mesa, um magnífico açafate de flores. Quem as poderia ter mandado? O quarto estava vazio e ignorava que horas deveriam ser. Pegou nas flores com as mãos descarnadas e levou-as ao rosto escaldante, para lhes aspirar o perfume salutar. Depois voltou a mergulhar na sonolência. De repente pareceu que, ligeiramente empurrada, a porta do quarto se abria e, um instante depois, surgia um pequeno vulto, envolto numa capa negra. Pareceu-lhe que a capa se desfazia e tombava no chão e nessa altura julgou estar a ver a Pequena Dorrit, envergando o seu velho e coçado vestido. Julgou vê-la tremer, unir as mãos, sorrir e desfazer-se em lágrimas.

Despertou e deu um grito. A Pequena Dorrit encontrava-se ajoelhada aos seus pés, de olhos marejados de lágrimas:

— Oh, meu melhor amigo! Querido senhor Clennam, espero que não vá chorar! A não ser de júbilo por me ver. Aqui estou eu de novo!

Como ele a abraçava, afirmou-lhe:

— Não me disseram que estava doente!

— Será possível que esteja aqui E com esse vestido?

— Pensei que o preferiria a outro qualquer! Só ontem cheguei a Londres com o meu irmão e imediatamente procurei saber notícias suas. Não pensou em mim na passada noite? Pois eu pensei em si com tanta inquietação!

— Desde que me aqui encontro, Pequena Dorrit, penso em si todos os dias, a cada hora, a cada minuto!

— É verdade! É verdade!

E ao ver-lhe o rosto radioso, que corava de alegria, sentiu-se envergonhado, ele, o prisioneiro, o falido doente e desonrado.

Ela tirou o seu velho chapéu e começou sem ruído, ajudada por Maggie, que trouxera consigo, a tornar o quarto tão fresco e tão limpo quanto possível. Mandou buscar fruta, bebidas frescas, frango assado, que dispôs sobre a mesa. Em seguida, tirou uma bolsa de costura e pôs-se a fazer um cortinado para a janela. E, então, a calma do quarto pareceu espalhar-se pela prisão inteira, Clennam sentado tranquilamente na poltrona e a Pequena Dorrit trabalhando ao lado dele. Vê-la ali sentada, modestamente inclinada sobre a costura, cumulando-o de todos os tesouros da sua inesgotável bondade, dava-lhe forças à alma e fazia aumentar o seu amor por ela. Porque amava-a agora, amava-a mais do que as palavras o poderiam exprimir!

A escuridão envolveu-os, mas a Pequena Dorrit só se mexeu para se ocupar do preso, para lhe dar de beber ou endireitar-lhe o travesseiro. Quando terminou o trabalho, hesitou alguns instantes, depois pegou na mão de Clennam, dizendo:

— Querido senhor Clennam, tenho que lhe dizer uma coisa antes de me ir embora. Tenho adiado de hora para hora, mas é forçoso dizer-lhe.

— Também eu, querida Pequena Dorrit, tenho uma coisa para lhe dizer.

Ela ergueu a mão trémula.

— Não voltarei para o estrangeiro. O meu irmão regressou a Londres para regularizar o testamento do meu pai. Ficarei rica, mas não preciso de dinheiro. Aos meus olhos, o dinheiro nada vale se não nos puder ser útil. Mas deixa-me emprestar-lhe todo aquele que possuo? Suplico-lhe, permita- me que lho dê! Deixe-me mostrar-lhe que não esqueci o quanto me ajudou quando esta prisão constituía o meu lar! Querido senhor Clennam, faça de mim a mulher mais feliz do Mundo dizendo que aceita; choro sem querer. Suplico-lhe, não vire as costas à sua Pequena Dorrit na sua desgraça!

Escondeu o rosto entre as mãos. Ele passou-lhe o braço pela cintura, para a endireitar:

— Não, Pequena Dorrit querida. Não, minha filha. Não quero ouvir falar de semelhante sacrifício. Jamais poderia suportar uma liberdade alcançada à custa de tão elevado preço.

— E, na sua desgraça, não me vai permitir que lhe seja fiel?

— Diga antes, Pequena Dorrit muito querida, que sou eu que lhe devo ser fiel. Se agora compreendo melhor e li mais claro no meu coração, se lhe tivesse dito que a amava, oh. Se o tivesse feito, se nessa altura o tivesse feito Talvez me fosse agora permitido aceitar a sua oferta. Mas na situação atual, é-me impossível dizer que sim.

Ela suplicou-lhe com a sua mãozinha.

— Já me sinto suficientemente desonrado, minha Pequena Dorrit, não quero atolar-me tanto e arrastá-la, a si, tão querida, tão generosa, tão boa, na minha queda. Deus a abençoe. Não falemos mais no assunto.

Abraçou-a como se fosse sua filha.

— Sinto-me muito mais velho, muito mais derrotado e muito mais indigno do que antigamente. temos que esquecer o que eu fui e ver apenas ao que agora estou reduzido. Adeus, minha filha.

Não tenho coragem para lhe pedir que me esqueça, mas compreenda que já passou a época em que tinha algo em comum com esta prisão.

— Oh! Não me diga - exclamou ela, desfazendo-se em soluços - que não posso voltar! Não me abandone assim!

Ressoou a sineta, anunciando que as portas se iam fechar. Arthur agarrou na capa negra e cobriu ternamente os ombros da Pequena Dorrit.

— Dir-lho-ia se tivesse coragem! Mas não seria capaz de banir para sempre esse querido rosto e abandonar toda a esperança de o rever. Somente não venha com muita freqüência. A prisão é um lugar impuro.

Acompanhou-a até à porta, porque a sineta estava prestes a calar-se e o portão fechou-se pesadamente atrás dela, com um ranger pungente. O último dia da semana concedida por Rigaud Blandois passou pelos muros da penitenciária, pelos telhados e campanários da City londrina. Durante o dia inteiro, nenhuma visita veio perturbar a velha casa Clennam. Mas no momento em que o Sol se punha, um homem atravessou o alpendre e dirigiu-se para a casa arruinada. Era Blandois, que comparecia ao encontro.

Ao seu toque imperativo, Flintwitch veio abrir e conduziu-o diretamente ao quarto da senhora Clennam: esta, como de costume, encontrava-se impassivelmente sentada no seu sofá preto, enquanto Affery passejava a um canto, a cabeça inclinada sobre a agulha.

Blandois, com a sua insolência habitual, afundou-se pesadamente numa poltrona.

— Então, minha senhora, tudo em ordem? A senhora Clennam e Jeremy entreolharam-se e também para Affery, sobre quem Jeremy descrevia uma espiral em direção ao banquinho em que a velha estava sentada.

— Vamos - disse, esfregando as mãos -, comecemos sem mais delongas: Affery, mulher, temos assuntos a tratar, de modo que põe-te a mexer.

De súbito, porém, para estupefação de todos,

Affery arrojou a costura ao chão, precipitou-se para a janela aberta e inclinou-se para o vão, gritando:

— Não, não me irei embora, Jeremy, não. Ficarei aqui! Quero ouvir tudo o que não sei e dizer tudo o que sei, Mesmo que tenha de morrer! Quero, quero e quero!

Jeremy, após alguns minutos de estupefação, aproximou-se dela com ar ameaçador:

— Pára, Jeremy - gritou Affery. - Mais um passo e acordo os vizinhos e atiro-me pela janela! Gritarei fogo! Assassino! Despertarei os mortos! Fica onde estás, senão eu grito!

A voz autoritária da senhora Clennam interveio:

— Pare, Jeremy! Deixe-a sossegada. Affery, depois destes anos todos, viras-te contra mim?

— Se é virar-me contra a senhora tentar saber a verdade, então, sim, viro-me contra si! Quero defender o Arthur, que perdeu tudo, que está doente e na prisão e que não se pode defender. E fá-lo-ei! fá-lo-ei, fá-lo-ei!

— E como sabes tu, minha pobre cabeça de vento, que fazendo isso estás realmente a beneficiar o Arthur?

— Cabeça de vento Mas foram vocês dois, seus malandros, que me puseram neste estado! Foste tu que me obrigaste a suportar uma vida de terror e de pesadelos. E estou farta, estou farta, estou farta!

A senhora Clennam olhou-a por uns instantes e finalmente disse:

— Se o senhor Blandois não tiver nenhuma objeção, podes ficar.

— Eu, minha senhora? De modo nenhum! O assunto é consigo!

Levantou-se e foi-se sentar sobre a mesa, balouçando as pernas e olhando sem cerimónia para a senhora Clennam, o bigode eriçado sob o nariz:

— Minha senhora, sou um cavalheiro.

— De quem me disseram ter sido preso por assassínio!

Ele enviou-lhe um beijo irreverente.

— Perfeitamente. Exato. E, ainda por cima, de uma dama! Que absurdo! Mas desenvencilhei-me com êxito: espero ter a honra de hoje sair desta com o mesmo sucesso! Ora eu sou um cavalheiro que quando diz: Quero concluir imediatamente um negócio, o conclui definitivamente. Percebe o que eu quero dizer, minha senhora?

— Sim - respondeu ela, com os olhos duros fixos nele.

— Disse-lhe que chegáramos, agora, ao último encontro. permita-me que lhe recorde os dois anteriores.

— Não é necessário.

— Com os demónios - explodiu ele. - E se isso me agradar? Além disso, fazendo-o, esclarecerei melhor as coisas. Sendo assim, o primeiro encontro foi imparcial: tive a honra de a conhecer, aproveitei-me para observar duas ou três coisinhas desta casa, a fim de me certificar de que a senhora era efetivamente a dama que eu procurava. Após o que prometi ao Jeremy voltar e, delicadamente, retirei-me.

A senhora Clennam mantinha-se impassível, de olhar sombrio.

— E um dia regresso sem me fazer anunciar. Nessa altura, informo-a de que tenho algo para lhe vender que poderia, caso a não comprasse, comprometê-la, minha senhora, a si, por quem sinto uma profunda estima. E, sem fornecer mais detalhes, pedi mil libras, acho eu. Foi isso, minha senhora?

Obrigada a responder, ela retorquiu, contrariada:

— Sim, o senhor exigiu essa quantia.

— Ora bem, agora, exijo-lhe duas mil! Eis o que acontece a quem deixa protelar os negócios. Mas voltemos a essa segunda entrevista. Não chegámos a um acordo. Eu, que tenho um temperamento jovial, desapareci, à laia de partidinha, como se me tivessem assassinado! Decerto a senhora teria oferecido metade da soma para me encontrar e desse modo dissipar as suspeitas que começavam a nascer. Infelizmente, o seu querido filho estragou a minha brincadeira. Como conseqüência, minha senhora vim aqui pela última vez. Ouve bem? Pê-la última vez! E, antes de tudo, precisamos de liquidar a minha conta do hotel. Vamos! O dinheiro!

— Veja a conta e pague-a, Flintwitch - ordenou a senhora Clennam.

Jeremy apanhou a conta que Blandois lhe atirara à cara, examinou, com olhar turvo, o montante, tirou do bolso um pequeno saco de pano e depôs a quantia na mão do outro. Blandois fez tilintar moedas, atirou- as ao ar, apanhou-as de novo e proferiu:

— Esta música, para o arrojado Rigaud Blandois, é como o gosto da carne crua para o tigre. Então, minha senhora, qual é a sua resposta?

— Já lhe disse, cavalheiro, não somos assim tão ricos como o senhor imagina e as suas exigências são desmedidas. Neste momento, não estou em condições de satisfazer o seu pedido, mesmo que o desejasse.

— Desejasse? Mas diga-me, minha senhora, se o deseja, que eu saberei o que fazer! Diga-o! Rápido!

Ela respondeu, no mesmo tom imparcial:

— Parece que está de posse de um papel que eu desejo ardentemente recuperar. Para mim, pode valer uma certa quantia em dinheiro, mas não poderei dizer quanto. Somos pobres e não quero arruinar-me por um papel cujo conteúdo desconheço. Fale com mais clareza, caso contrário pode ir para onde lhe aprouver.

Ele fixou-a demoradamente com um sorriso diabólico.

— A senhora é uma mulher corajosa! Pois então, vou-lhe contar, minha senhora, um certo episódio da história da família. A história de um estranho casamento, de uma estranha mãe, de uma vingança e de uma supressão. Hum, hum, isso diz-lhe alguma coisa? Quando viajamos, compreende a senhora, conhecemos imensa gente interessante que com freqüência nos conta histórias muito bonitas. Quer que intitule a minha narrativa de A história desta casa? As personagens serão o tio e o seu sobrinho, um idoso e rígido cavalheiro, com um temperamento inflexível, e um jovem tímido humilde, amedrontado. O senhor tio ordena ao sobrinho que se case: Meu sobrinho, apresento-te uma dama que, como eu, tem carácter; uma dama sem piedade, sem amor, implacável e fria como uma rocha, mas enraivecida como o fogo. Ah, ah, Com os diabos, que dama encantadora! Adoro-a!

O rosto da senhora Clennam alterara-se, anuviara-se, contraía-se.

— O sobrinho, famélico e aterrorizado, baixa a cabeça e responde: Meu tio, obedeço às suas ordens. Dá-se o casamento e o jovem casal vem morar para esta encantadora residência, onde são recebidos por Flintwitch. Não é assim, velho intriguista? Mas depressa a senhora faz uma descoberta muito singular e interessante. Cheia de cólera, de ciúme e de rancor, concebe um plano de vingança - está a compreender- me bem, minha senhora? - através do qual oprime o marido, forçando-o, dessa forma, a oprimir a sua rival. Que inteligência!

— Mas foi um dos meus sonhos! - gritou Affery, toda palpitante. - Uma noite de Inverno, em que tu discutias com ela, Jeremy, e disseste que ela não devia deixar que o Arthur suspeitasse do pai! E tu respondeste-lhe que ela não era. qualquer coisa, não sei o quê, e ela ficou zangada! E depois foste para a cozinha, eu dormitava ao pé da lareira e tu arrancaste-me o avental com que eu cobria a cabeça!

Rigaud Blandois escutou este desabafo com profundo interesse.

— Ah! Ah! Então o velho malandrim disse que não era o quê, minha senhora? Diga-nos!

A respiração da senhora Clennam tornou-se mais difícil, os seus lábios tremeram e abriram-se, apesar dos seus esforços para se manter calma.

— Vamos, minha senhora, fale! Não era o quê?

Ela tentou de novo dominar-se, depois explodiu, finalmente, com violência:

— Não sou a mãe do Arthur! Mas eu própria contarei isso tudo. Está a manchar-me com as suas palavras infames, deturpa a realidade e a minha história! Terei eu sofrido todos estes anos, neste quarto, para no fim ser obrigada a contemplar-me em semelhante espelho?

O fogo que estivera latente; sob aquele rosto impassível, jorrava agora por todos os poros. Gritou:

— Não sabe o que é ser-se educada no rigor e na severidade! A minha juventude ignorou a alegria e os prazeres criminosos. Desde a minha tenra infância, o sacrifício, a penitência e o medo encheram-me de um justo horror com respeito aos pecadores. Quanto ao esposo que me fora apresentado, meu pai asseverara-me que fora educado nos mesmos princípios do que eu, afastado dos deboches e do pecado. Ora quando descobri, não estávamos ainda casados há um ano, que o meu marido, na precisa altura em que meu pai dele me falava, havia ultrajado o céu e eu própria com uma ligação com uma criatura culposa, poderia eu duvidar que o Senhor me escolhera para descobrir e castigar aqueles pecadores?

Pousou a mão no relógio que se encontrava sobre a mesa.

— Foi este relógio, escondido com uma velha carta, numa gaveta secreta, que me deu a conhecer a verdade! Tê-lo-ia encontrado se não fosse designada pela Providência? Quando obriguei o meu marido a entregar-me a sua cúmplice, que se arremessou aos meus pés, escondendo o rosto, eu mais não era do que a serva e o instrumento de Deus! Quando ela se valeu da sua juventude, da vida dura e miserável que ele levara (assim qualificava a virtuosa educação dele), o seu ultrajante casamento secreto, depois o terror de ambos, quando fui designada como o instrumento da punição dos dois, e finalmente o amor - atreveu-se a pronunciar essa palavra aos meus pés - que sentia por ele, quando o deixou por minha causa, foi Deus que, por meu intermédio, a fez tremer e a obrigou à expiação!

Coisa espantosa, aquela mulher, que durante tantos anos perdera o uso dos dedos, martelava agora a mesa com socos vigorosos e levantava o braço sem dificuldade.

— Que penitência exigi eu? Tem um filho. Eu não. Ama essa criança, dê-ma. Julgará, e todos julgarão, que é meu filho. O pai jurará que nunca mais os verá, nem a um, nem a outro. Refugiar-se-á num lugar isolado e serei eu quem me encarregarei do seu sustento. Era tudo, ela devia sacrificar os seus afetos vergonhosos e culposos, nada mais.

A partir de então, era senhora de poder suportar o peso da sua falta, morrer de coração despedaçado e assim aguardar a redenção divina. Se enlouqueceu, a culpa é minha? Foi o remorso do seu pecado que a perseguiu, foram as chamas do inferno que via à sua volta! Foi Deus que assim a castigou, não eu. Entretanto, dediquei-me à educação do jovem Arthur, criando-o no medo e no temor, obrigando-o a levar uma vida de sacrifício pelos pecados que lhe pesavam sobre a cabeça, mesmo antes da sua vinda a este condenado Mundo. Foi crueldade? Não recaíam também, sobre mim, as conseqüências daquele erro de que eu não era culpada? Vivi mais afastada do pai de Arthur do que se tivesse meio Mundo a separar-nos. Quando morreu, enviou-me este relógio. Não te esqueças. Não, não me esqueço. Mas essa mera frase significa algo mais para mim do que para ele. Não me esqueço de que fui designada pela Providência para cumprir os seus desígnios.

Enquanto pegava no relógio com aquela nova liberdade de movimentos, da qual parecia não se dar conta, Rigaud gritou, fazendo estalar desdenhosamente os dedos:

— Vamos, minha senhora, o tempo passa! Sei tudo isso; vamos então ao que interessa, minha muito piedosa senhora, ao dinheiro roubado!

— Que miserável o senhor é! - respondeu ela, escondendo o rosto entre as mãos. - Que erro fatal cometeu Flintwitch que o fez entrar de posse dessa cláusula?

— Ah! Ah! Que estranha coincidência! Então estou de posse de um papelinho escrito pelo seu punho, assinado pela senhora e pelo meu velho intriguista: um aditamento ao testamento que o velho tio lhe ditou, no qual legava mil guinéus à jovem beldade, que a senhora condenou à morte lenta, mil guinéus à mais jovem das filhas que o seu protetor teria aos cinquenta anos, ou então, no caso de não as ter, à mais jovem das filhas de seu irmão. E qual era o nome do homem que sustentou e ajudou a jovem órfã? Diga-o, minha cara senhora! É Frederick Dorrit! E quanto a esse aditamento ao testamento que Gilbert Clennam lhe ordenou que escrevesse e assinasse antes da sua morte, e quem, em seguida, se apoderou dele, pelo dinheiro e para impedir que fosse executado? Foi a senhora, piedosa dama, ajudada pelo seu velho cúmplice!

— Não foi pelo dinheiro, miserável - gritou ela, fazendo um esforço para se levantar. - Se Gilbert Clennam, que ficara senil, imaginou dever recompensar o crime, não deveria eu impedi-lo? Esse Frederick Dorrit é a causa de tudo, foi ele quem arrastou a pobre jovem para a música e para o canto, atividades satânicas! Se não tivesse feito dela uma cantora, nunca o pai de Arthur a teria conhecido! Não procurei destruir esse papel, guardei-o aqui durante anos e a qualquer momento podia mandar executar a doação. Quando, finalmente, o mandei destruir - pelo menos assim julguei -, a criminosa morrera há muito e Frederick Dorrit, arruinado e senil, já recebera o seu justo castigo. A filha não existia; quanto à sobrinha, o que fiz por ela valeu mais do que o dinheiro, do qual não teria sabido tirar partido.

Após um momento de silêncio, acrescentou, olhando para o relógio:

— Ela está inocente. Ter-lho-ia legado, por minha morte.

— Poder-me-ia ainda dizer, venerável dama, a que homem confiou a pequena cantorazinha? Será um homem que conhece bem o nosso velho tratante e que com ele se avistou, não faz muito tempo?

— Sou eu que lhe vou dizer - exclamou subitamente Affery. - Vi-o no primeiro dos meus sonhos! É o irmão gémeo do Jeremy! Esteve aqui na noite em que o Arthur voltou para casa e o Jeremy entregou-lhe um cofre de ferro que ele levou, já a noite ia avançada. Socorro! Assassino! Salvem-me do Jeremy!

O senhor Flintwitch precipitara-se para ela, mas Blandois reteve-o e impediu-o de ir mais longe.

— O quê - exclamou. - Atacar uma dama que tem tanta queda para os sonhos? Ah! Ah! Ah! Como se parece com o seu irmão, meu Flintwitchezinho! E exatamente como eu o conheci, na taberna, em Anvers! Uma esponja famosa! Morava numa pequena mansarda, rente ao telhado onde intervalava o seu conhaque e o seu tabaco com doze sestazinhas e um ataque de delirium diários, até ao dia em que o ataque foi forte de mais e voou para o céu. Ah! Ah! Ah! Como consegui apossar-me dos papéis que se encontravam no cofre de ferro! Que importância tem! O que interessa é que se encontram em lugar seguro!

A senhora Clennam olhou, estupefacta, para Flintwitch que arrumado no seu canto, cofiava o queixo. Finalmente, tomou a palavra:

— Não precisa de me fitar com esses olhos arregalados! É a mulher mais orgulhosa do Mundo e quis fazer vergar toda a gente! Mas eu bem lhe disse que não sabia do que eu era capaz! Bem me ralam os seus olhos arregalados! Escutei a cláusula I escondera-a da senhora num lugar secreto. Há muito que a aconselhara a indicar-me esse lugar, a fim de que pudesse tirá-la e queimá-la. Mas a senhora, teimosa que nem uma mula, negou-se sempre. Quando o Arthur voltou, a senhora começou, finalmente, a sentir medo e tive oportunidade de a ir buscar à adega. Porém, tudo aquilo me deixara muito enervado, quis mostrar-lhe que eu era o mais forte. queimei, diante de si, um velho papel e confiei a cláusula ao meu irmão, que naquela noite partia de Inglaterra para Anvers. Mas aquele imbecil, aquela esponja de conhaque, não soube calar-se! Eu bem desconfiei, no dia em que vi aparecer o Blandois!

A senhora Clennam desviou lentamente o olhar e inclinou a cabeça.

— Reembolso-o desse cofre e desse segredo, cavalheiro. Mas, de momento, não tenho disponível a quantia que me pede. Quanto aceitaria hoje, quanto aceitaria mais tarde e que garantia terei eu do seu silêncio?

— Meu anjo - retorquiu Blandois -, disse-lhe quanto queria e que o tempo escasseava. Antes de cá vir entreguei a outra pessoa cópias desses papéis. Se não pagar antes de as portas da Penitenciária se fecharem, será demasiado tarde. Arthur Clennam tê-los-á lido.

Ela deu um grito e levantou-se, vacilou um instante, como se fosse cair, mas manteve-se firme.

— Que quer dizer, monstro, que quer dizer? Diante daquele vulto fantasmagórico, semelhante a uma morta que se tivesse levantado do túmulo, Rigaud recuou e falou em tom mais brando.

— Miss Dorrit - disse - está muito afeiçoada ao preso. Neste momento, cuida dele. Deixei, para ela, um pequeno embrulho, que deverá entregar ao detido no caso de ninguém o ir buscar antes da hora do fecho. Está à ver como o tempo voa?

Violentamente agitada, a senhora Clennam correu para o armário, que abriu com brutalidade, e pegou num xaile, com que se cobriu. Affery arrojou-se aos seus pés e agarrou-se-lhe ao vestido:

— Não, não, minha senhora, fique aqui! Onde quer ir? Não saia, vai cair morta na rua!

A patroa libertou-se dela, disse a Blandois que esperasse e saiu a correr. Por alguns instantes, ficaram emudecidos, depois Affery precipitou-se no seu encalço. Jeremy saiu lentamente do quarto, avançando de lado, como um caranguejo silencioso. Rigaud, vendo-se sozinho, estirou-se no banco estofado, diante da janela.

O sol já se pusera e o vulto espectral ia avançando pelas ruas, que o crepúsculo obscurecera. Ao atingir as artérias principais, atraiu todos os olhares. As pessoas viravam-se, estupefactas, à passagem daquele vulto magro e esgazeado, que avançava em passo rápido e titubeante, envolto no seu estranho vestido preto. Em dada altura, parou, para se informar do caminho, e depressa se viu rodeada por um círculo de rostos curiosos:

— Porque me cercam? - perguntou, a tremer. Uma voz trocista respondeu:

— Porque você é maluca!

—Tenho tanta lucidez de espírito como qualquer um de vós. Procuro a Penitenciária.

— Isso mostra que você é maluca, porque fica mesmo em frente do seu nariz!

No meio das gargalhadas, um jovem de rosto meigo aproximou-se da pobre mulher e pegou-lhe no braço.

— Venha, vou acompanhá-la.

Era o pequeno John. conduziu-a ao cubículo, que a ela pareceu um refúgio aprazível, depois do turbilhão do exterior.

— Queria ver a Miss Dorrit. Ela está cá?

John olhou-a com interesse.

— Sim, está cá. Mas quem é a senhora?

— Sou a senhora Clennam.

— A mãe do senhor Clennam? - perguntou o jovem.

— Sim. - respondeu ela, após alguma hesitação.

John conduziu-a a um quarto que pusera à disposição da Pequena Dorrit e saiu à sua procura. Pouco depois, a jovem encontrava-se diante dela.

— Senhora Clennam - exclamou com meiguice-, teria, por felicidade, recuperado a saúde ao ponto de. Calou-se, ao ver a dor estampada no rosto da idosa senhora.

— Não se trata nem de cura nem de forças. Não sei o que é - respondeu com nervosismo. - Entregaram-lhe um embrulho que devia dar ao Arthur, caso ninguém o reclamasse até os portões se fecharem?

— Sim.

— Venho reclamá-lo.

A Pequena Dorrit tirou-o do corpete e entregou-lho.

— Faz alguma idéia do seu conteúdo?

Assustada por a ver ali, tão irreal como um espectro, ela fez um gesto negativo.

— Então, leia!

A jovem partiu o lacre e aproximou-se da janela. Depois de ter soltado uma exclamação de surpresa e de terror, leu em silêncio, em seguida virou-se e viu a sua antiga patroa prosternada diante dela.

— Sabe agora o que eu fiz. Reembolsá-la-ei daquilo a que tem direito. Poderá perdoar-me? Perdoe-me!

— Deus é testemunha de que lhe perdoo. Mas suplico-lhe, levante-se! Deixe-me ajudá-la.

Ajudou-a a levantar-se, com um olhar solene.

— O grande favor que lhe peço, a grande súplica que dirijo ao seu coração cheio de piedade, é de nada revelar ao Arthur enquanto eu for viva. Se refletir e achar que será melhor dizer-lhe, faça-o. Caso contrário, poupe-me!

— Sinto-me tão confusa, que não sei o que dizer. Se tivesse a certeza de que para nada serviria revelar-lhe.

— Sei quanto lhe é afeiçoada e que, antes de tudo, pensará nele. Mas se achar que é possível poupe-me!

— Prometo-lhe.

— Deus a abençoe!

Sentindo uma emoção desconhecida invadir-lhe o coração de gelo, a voz embargou-se-lhe.

— Decerto me vai perguntar - continuou - por que razão lhe confiei o meu segredo em vez de o revelar ao Arthur. Eduquei-o com severidade e sei que nunca me amou. Era ainda muito pequeno e já me fitava com uns olhos cheios de terror, os olhos da mãe, e isso endureceu-me ainda mais. Mas respeitou-me sempre e cumpriu sempre as suas obrigações para comigo. Por nada deste mundo desejaria ser derrubada do lugar que aos seus olhos sempre ocupei, nem lhe ser apresentada como alguém desprezível. Se isso tiver que ser feito, nunca mais terei coragem para o encarar!

Soou a primeira sineta, anunciando que as visitas haviam acabado.

— Escute - disse a senhora Clennam em sobressalto. - Tenho outra coisa a pedir-lhe. O homem que lhe trouxe este embrulho aguarda, em minha casa, para que eu pague pelo seu silêncio e só pagando, posso impedir que o Arthur venha a inteirar-se disto. A quantia que me exige é demasiado elevada para mim, neste momento não a tenho e ele ameaça-me de, se não lhe pagar, vir ter consigo. Quer acompanhar-me e dizer-lhe que está a par de tudo. Quer ajudar-me nesta aflição?

A Pequena Dorrit aceitou de bom grado e ambas alcançaram a rua por unias escadas que evitavam que passassem pelo cubículo.

Era uma bela noite estival, o céu mostrava-se sereno e lindo, todo afogueado pelos cambiantes do crepúsculo e sulcado pelas grandes faixas dos últimos raios.

As duas mulheres percorreram as ruas silenciosas e desertas e aproximaram-se da casa, quando ouviram um estrépito medonho, que lembrava o ribombar de um trovão.

— Que barulho é este? Entremos, depressa! - gritou a senhora Clennam.

Atravessaram o alpendre e faziam menção de se aproximar, quando a Pequena Dorrit soltou um grito e reteve a companheira pelo braço. Durante um instante fugaz, viram a velha casa diante delas e o homem que fumava, debruçado no parapeito da janela. Ouviu-se novo fragor, a casa ergueu-se, subiu, cobriu-se de fendas e ruiu. Ensurdecidas, sufocadas, cegas, as duas mulheres protegiam o rosto, mantendo-se como que paralisadas. Por um instante, a coluna de poeira dissipou- se, deixando entrever as estrelas. Quando levantaram a cabeça, gritando por socorro, o enorme bloco das chaminés que ainda se mantinha de pé, como uma torre na tempestade, tremeu, fendeu-se e abateu-se sobre o monte de ruínas, como que para calcar mais profundamente o miserável que haviam esmagado.

A senhora Clennam rolou pelo solo. A partir desse instante, nunca mais conseguiu mexer um dedo ou pronunciar uma palavra. Sobreviveu nesse estado ainda três anos, antes de morrer, como uma estátua, mergulhada no seu silêncio.

Affery, que saíra para as esperar, chegou justamente a tempo de receber a sua velha patroa nos braços. O mistério dos ruídos que ouvira em casa estava esclarecido: aquele velho prédio anunciava-lhe a sua queda iminente.

Os cabouqueiros que trabalharam dia e noite retiraram, ao segundo dia, os horríveis despojos do corpo do estrangeiro. Mas em vão procuraram os restos de Flintwitch. Foram retirados os escombros e os alicerces postos a descoberto: nada encontraram.

Foi muito mais tarde que correu o boato de alguém ter visto passar pelas margens dos canais de Haia e pelas tabernas de Amsterdão um velhinho inglês, cuja gravata se retorcia sob uma das orelhas e que dizia chamar-se Mynheer Von Flyntevynge.

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