A Pequena Dorrit (1857)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - REGRESSO À CASA MATERNA
Capítulo II - A PENITENCIÁRIA
Capítulo III - O BECO DO CORAÇÃO-QUE-SANGRA
Capítulo IV - DESGOSTOS DO CORAÇÃO
Capítulo V - UM ADIVINHO
Capítulo VI - A PERSONAGEM INQUIETANTE
Capítulo VII - UMA GRANDE NOTÍCIA
Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMÍLIA DORRIT
Capitulo IX - UMA SEQUÊNCIA DE DESGRAÇAS
Capítulo XI - ESCLARECEM-SE OS MISTÉRIOS
EPÍLOGO

Capitulo X - DE NOVO A PENITENCIÁRIA

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By ClassicosLP

Anunciado por passos rápidos e por uma respiração ruidosa, o senhor Pancks surgiu no escritório de Arthur Clennam. A investigação terminara, a carta fora levada ao conhecimento público. O banco fora à falência e, em seu redor, só se via ruína e devastação.

No meio dos papéis em desordem e das cartas por abrir, Arthur mantinha-se imóvel. a cabeça apoiada nos braços cruzados, prostrado e desesperado. Pancks, ao vê-lo, foi invadido pelo desânimo e apoiou, por seu turno, a cabeça nos braços.

— Fui eu quem o convenceu a fazer esse depósito, senhor Clennam, bem o sei. Diga-me tudo o que quiser. O que me disser não poderá ser pior do que aquilo que digo a mim próprio!

— Oh Pancks! pancks! Não fale assim! E eu que arruinei o meu sócio! Arruinei o Doyce! O honesto, o infatigável velho, que toda a vida trabalhou para sobreviver!

Era tão angustioso o espetáculo da sua desolação que Pancks, num gesto de desespero, começou a arrancar os cabelos.

— Censure-me - gritou Pancks -, chame-me doido, miserável, injurie-me, insulte-me, far-me-a bem!

— E dizer que ontem - replicou Clennam -, ontem, apenas, tinha a firme intenção de vender, de converter em valor monetário e de resolver o assunto!

— Senhor Clennam, investiu. investiu tudo - perguntou Pancks, hesitando penosamente.

— Tudo.

O senhor Pancks pôs-se a puxar os cabelos espetados com uma tal força, que arrancou algumas madeixas e meteu-as raivosamente no bolso.

— Tenho que tomar imediatamente uma resolução - disse Clennam, enxugando algumas lágrimas silenciosas -, tenho que reparar o meu crime o mais rapidamente possível, mesmo que deva passar o resto dos meus dias na prisão.

Nos dias seguintes, a despeito dos protestos do seu advogado, chocado com uma atitude tão incomum no mundo dos negócios, enviou a todos os credores uma carta, na qual declarava ser ele o único responsável pela falência e em que ilibava o seu sócio, o senhor Doyce. Passava para este a sua parte na casa e só guardava para ele as suas roupas, os seus livros e o dinheiro que lhe restava no bolso.

No dia a seguir ao da publicação da carta encontrou, à entrada do Beco, a senhora Plornish e o advogado.

— Senhor Clennam, não vá - suplicou a mulher do estucador. - Os oficiais de diligências aguardam-no à porta!

— Devo sofrer as conseqüências dos meus atos - respondeu ele. - Quanto mais depressa, melhor.

— Ao menos espere um pouco! - interveio o advogado. - Se o prenderem hoje, enviá-lo-ão para a Penitenciária, que é demasiado exígua e limitada.

— Preferia - respondeu Clennam - ser encarcerado na Penitenciária do que em qualquer outra prisão.

O advogado levou as mãos ao céu:

— Incrível! Mas gostos não se discutem. Vamos, então.

Ao longo do Beco dos Corações-que-Sangram olhavam-no com renovada simpatia: Clennam tornara-se um dos seus, a partir de então adquirira, entre eles, direito de cidadania. Depararam-se-lhe os oficiais de diligências à porta e subiu para o trem que o deveria conduzir até ao portão gradeado que lhe era tão familiar.

O senhor Chivery estava de serviço no cubículo e também lá se encontrava o pequeno John. Arregalaram os olhos ao verem Clennam:

— Nunca me senti tão desgostoso por o ver - disse o Chivery pai, apertando-lhe a mão.

Arthur sentou-se a um canto, aguardando que fossem concluídas as formalidades. De repente, sentiu uma mão pousar-lhe no ombro: era o pequeno John, que lhe fazia sinal para o seguir.

— Venha, senhor Clennam, arranjei um quarto para si.

E conduziu-o então pela velha entrada, tão bem conhecida, subiu os degraus altos e penetrou na antiga alcova do senhor Dorrit.

— Aqui está, senhor Clennam - disse. Arthur, completamente alterado, estendeu-lhe a mão, sem dizer palavra.

— Não sei se lhe posso apertar a mão - disse John. - Não, acho que não posso. Mas julguei que iria preferir este quarto. Agora deixo-o.

A surpresa que Arthur sentiu perante esta singular atitude fez com que, ao ficar a sós, a emoção que lhe despertava a recordação daquela que encontrara ali com tanta freqüência o invadisse. E, de súbito, a ausência dela deixou-o tão desolado que se virou contra a parede, para chorar, balbuciando:

— Oh, Minha Pequena Dorrit!

Durante a tarde inteira permaneceu mergulhado num sombrio torpor, relembrando as anteriores etapas da sua vida. Espantou-se ao verificar que a imagem da Pequena Dorrit lhe vinha com tanta persistência ao espírito e avaliou a importância que tivera para ele a influência que ela exercera nas suas melhores resoluções. Parecia-lhe que estava agora a pagar por se ter afastado dela e permitido que algo se interpusesse entre ela e a recordação das suas virtudes.

A porta abriu-se e apareceu a cabeça do senhor Chivery pai.

— Vou sair, senhor Clennam. Posso fazer alguma coisa por si?

— Não, muito obrigado.

— Desculpe-me por ter aberto a porta, mas o senhor não me ouviu. Bati umas cinco ou seis vezes e o senhor não respondeu.

Saindo do seu torpor, Arthur, pela janela, apercebeu-se de que o pátio já fora invadido pelas trevas e que devia ser tarde.

— Chegou o seu processo. Mas queria-lhe dizer outra coisa, senhor Clennam. Não ligue ao meu filho, peço-lhe, se ele parecer um pouco difícil. O meu filho é um rapaz de coração, senhor Clennam, e muito atilado, eu e a minha mulher podemos garanti-lo.

Pronunciadas estas misteriosas palavras, o senhor Chivery retirou-se. Não tinham decorrido dez minutos quando, por seu turno, John Chivery assomou à porta:

— Aqui está a sua mala de mão e o seu baú - disse pousando-os no chão com grande cuidado.

— Agradeço-lhe infinitamente essas atenções. Está agora disposto a apertar-me a mão, espero eu.

John recuou, a mão fechada, com uma expressão severa pintada no rosto e, contudo, tinha os olhos marejados, provavelmente de lágrimas de piedade.

— Porque está zangado comigo - perguntou Clennam. - E, ao mesmo tempo, porque me faz estes favores? Deve haver algum mal-entendido entre nós.

— Não é um mal-entendido, cavalheiro, de modo nenhum. E se o regulamento o permitisse, se eu fosse mais forte e se o senhor não estivesse nessa infeliz situação, poderíamos resolver o assunto com uma luta!

Arthur olhou-o, estupefacto, depois, soltando um profundo suspiro, voltou a sentar-se na velha e coçada poltrona.

— Trata-se de um mal-entendido - disse em tom cansado -, esqueçamos o assunto.

Ao cabo de um instante, John replicou com mais suavidade:

— Desculpe-me, cavalheiro. Sabe que alguns destes móveis me pertencem? Ora bem, se quiser, empresto-lhos. Pertenciam a um cavalheiro: um grande homem. que viveu aqui e que já morreu. Decerto ignorava que o fui ver, quando se encontrava em Londres: foi suficientemente bondoso para me mandar sentar e pedir notícias da minha família. Mas achei-o muito mudado. Perguntei-lhe como estava a Miss Amy.

— Como está ela?

— Pensava que o sabia sem precisar de inquirir a alguém como eu. Mas ele considerou a pergunta como um atrevimento da minha parte - respondeu John, engolindo em seco. - Compreendi então que fora indiscreto em visitá-lo.

O silêncio pairou de novo e novamente John o quebrou:

— Desculpe-me, cavalheiro, mas por quanto tempo mais tenciona estar sem comer nem beber?

— Neste momento não tenho vontade nenhuma.

— Precisa de se alimentar, cavalheiro. Vou fazer chá. Quer que lhe traga uma chávena ou prefere bebê-lo no meu quarto?

Arthur levantou-se e seguiu-o até ao quarto dele, que outro não era do que o antigo quarto da Pequena Dorrit, restaurado, mas assemelhando-se à recordação que Arthur guardava dele.

John olhou-o fixamente, mordendo os dedos.

— Vejo que se lembra deste quarto, não é verdade, senhor Clennam?

— Se me recordo dele? Deus abençoe aquela que cá viveu!

O jovem Chivery precipitou-se para fora da dependência, a fim de ir buscar água.

O quarto falava a Arthur numa voz tão eloqüente e tão triste! Pousou a mão na parede insensível, dizendo muito baixinho: Pequena Dorrit! Olhou pela janela que se situava por cima do muro eriçado de pontas e, pensando no país onde ela vivia, rica e feliz, abençoou-a, através da bruma estival.

John depressa voltou, trazendo comida, e serviu o chá, mas Clennam foi absolutamente incapaz de engolir o que quer que fosse, além de um pouco de chá. John examinou-o por uns instantes e depois disse finalmente, apertando com nervosismo um bolinho entre os dedos:

— Se não quer cuidar da sua saúde, ao menos faça-o por outra pessoa.

— Para falar verdade, não sei por quem - respondeu Arthur, suspirando.

— Senhor - retorquiu John, exaltando-se -, espanta-me que um cavalheiro tão franco como o senhor se rebaixe a dar uma tal resposta! Reprimi as minhas emoções, sabendo que tinha que o fazer e não pensar mais nelas. Quando o vi chegar esta manhã, desencadeou-se dentro de mim um turbilhão de sentimentos, mas finalmente consegui vencê-los. E agora, que me sentia tão desejoso de lhe mostrar que dentro de mim apenas existe um pensamento quase sagrado e que paira acima de tudo, o senhor repele-me com a resposta que deu à minha alusão tão delicada!

Arthur, boquiaberto, olhou-o, aturdido, e perguntou apenas:

— Que se passa John, o que quer dizer?

— Não me atrevo a pensar que haja ainda qualquer esperança, depois das palavras que foram trocadas, mesmo se não se levantasse entre nós barreiras intransponíveis. Mas não é razão para crer que não tenho nem memória, nem pensamento, nem recordação sagrada!

Por incompreensível que fosse este discurso, a sua inflexão era tão sincera, punha tão claramente a descoberto uma profunda ferida, que Arthur prestou atenção.

— Será possível - perguntou, depois de ter refletido bem - que esteja a fazer qualquer alusão a Miss Dorrit?

— É absolutamente possível, cavalheiro! Certamente que conhece a minha paixão pela miss Dorrit, um amor que raia o sacrifício!

— Não, eu...

— Então, quando eu digo para cuidar da sua saúde por outra pessoa, porque não é franco comigo? Julga o senhor que tudo o que fiz esta manhã foi por sua causa? Ora bem, não foi. Então, porque não fala com sinceridade?

— Afirmo-lhe que não estou a compreender. Olhe para mim. Considere a situação em que me encontro. Iria ainda acrescentar às minhas faltas a de ser ingrato ou traidor para consigo? Asseguro-lhe que não estou a compreender!

A incredulidade que se lia no rosto de John foi-se gradualmente transformando em dúvida.

— Senhor Clennam - disse olhando-o atentamente -, quer o senhor dizer que não sabe?

— Mas não sei o quê, John?

— Jesus, ele pergunta o quê! Senhor Clennam está a ver aquela janela E aquele muro E aquele pátio? Dia após dia, noite após noite, semana após semana, mês após mês, tudo aquilo foi testemunha!

— Mas testemunha de quê - perguntou Clennam.

— Do amor de Miss Dorrit!

— Por quem?

— Por si - replicou John, voltando a sentar-se, muito pálido, na poltrona.

Arthur ficou imóvel, como se tivesse recebido uma pancada na cabeça, o olhar fixo em John, os lábios entreabertos, incapaz de articular palavra.

— Eu - exclamou, finalmente, em voz alta.

— Ah! - gemeu o pequeno John. - Sim, o senhor.

Arthur, ao responder, tentou sorrir:

— É imaginação sua! Está completamente enganado!

— Eu, senhor Clennam, enganar-me numa coisa que me fez sofrer tanto e que ainda agora me obriga a puxar do lenço? Ah, Não diga Isso, não diga isso!

E puxou do lenço para enxugar os olhos dando um pequeno soluço. Clennam, incapaz de prosseguir a conversa, pediu a John licença para se retirar e arrastou-se, rente à escuridão da parede, até ao seu quarto. Sentou-se na poltrona, apertando a cabeça entre as mãos, como se sentisse depauperado. A Pequena Dorrit amava-o! Isso transtornava-o mais do que todas as suas desgraças, muito mais!

O facto parecia-lhe completamente impossível. Chamara-a sempre de sua filha, de sua querida filha, insistindo na diferença de idades e falando de si próprio como de um homem idoso. Mas quem sabe se ela o não teria achado demasiado velho? Lembrou-se de que ele próprio não havia pensado nisso até ver as rosas deslizando ao sabor das águas do rio.

Tirou, dos seus papéis, as cartas que ela lhe escrevera e voltou a lê-las. Pareceu captar nelas o som da sua voz meiga, cheia de inflexões de ternura, de que anteriormente nunca se apercebera. E, depois, o calmo desespero de uma resposta Não, não, não! Que lhe dera uma noite, veio-lhe à memória. Absolutamente impossível. E, contudo, essa improbabilidade tornava-se cada vez menos convincente e certa pergunta perpassava-lhe cada vez mais insistentemente o coração: não teria ele, alguma vez, murmurado em segredo que não devia esperar que ela o amasse? Que não devia tirar partido da sua gratidão que era um velho para quem o tempo do amor já passara?

Felizmente, mesmo se tivesse sido esse o caso, agora tudo acabara e era melhor assim. Se ela o amasse verdadeiramente, se ele se tivesse apercebido e se fosse também permitido amá-la, que vida lhe iria proporcionar! Uma vida que culminaria naquele antro miserável! Consolou-se, pensando que ela estava para sempre livre: decerto se casaria em breve. O portão de ferro da Penitenciária, para ela, fechara-se para sempre sobre uma época que findara.

A noite foi surpreendê-lo imerso nestas cogitações. Horas e horas a Pequena Dorrit, a Pequena Dorrit, sempre a Pequena Dorrit! Era sempre a sua inocente e pequenina silhueta que lobrigava no horizonte do seu espírito. Era o fulcro de interesse da sua vida, a concretização de tudo o que ele conhecera de bom e de agradável; para além dela, só havia trevas e desolação.

Querida Pequena Dorrit!

O cárcere começou a deixar as suas marcas em Arthur Clennam. Sentia-se ocioso e deprimido. Conhecendo a influência que o cativeiro podia exercer no seu temperamento, tinha medo de si próprio e escondia-se no quarto, sem se atrever a sair de lá, confinado à escuridão das paredes estreitas. Encontrava-se ali há cerca de dez ou doze semanas, quando um dia bateram à porta e lhe anunciaram que um homem de aspecto militar pedia para ser recebido por ele. Arthur, mergulhado nas suas sombrias preocupações, esquecera-se já que lhe haviam anunciado uma visita, quando passos pesados ressoaram pelas escadas. Passadas largas cujo som não era rápido nem alegre, mas que antes pareciam arrogantes. Quando se detiveram no patamar, Arthur disse para consigo que já os ouvira algures, não conseguindo lembrar- se onde fora. Não teve tempo para refletir nisso, porque um soco na porta escancarou-a: na soleira, encontrava-se Blandois, o desaparecido, causa de tantas preocupações.

— Salve, camarada candidato à forca! - exclamou ele. - Ao que parece, queria ver-me. Pois então, aqui me tem!

Antes que Arthur, indignado, conseguisse recuperar o seu próprio domínio, entrou Cavaletto, seguido do senhor Pancks, que se tornara um grande amigo do italiano.

Blandois instalou-se na cama, sem tirar o chapéu, e permaneceu ali estirado, de mãos nas algibeiras, com um olhar de desafio.

— Aqui está ele, signore! - disse Cavaletto.

— Levei muito tempo a encontrá-lo, mas, com a ajuda do Signore Panco (assim apelidado, Pancks assumia um ar completamente novo!), consegui descobri-lo.

— Grande bandido! - exclamou Arthur. - porque andou a espalhar suspeitas tão terríveis sobre a casa de minha mãe?

— Escutem este nobre cavalheiro! Escutem este modelo de virtude! Mas tenha cuidado, tenha cuidado: pode acontecer que o seu ardor o deixe algum tempo comprometido. Sim, com mil diabos!

Clennam virou-se para o tratante: o nariz e os bigodes uniam-se, num esgar diabólico, troçava, fazendo estalar os dedos, e prosseguiu:

— E agora, filósofo, que me quer? O meu desaparecimento meteu-lhe medo e suspeitou que a senhora sua mãe.

— Quero saber - interrompeu Arthur, não dissimulando a repugnância que sentia - por que razão se atreveu a lançar uma suspeita de assassínio sobre a casa de minha mãe. Quero que essa suspeita se esclareça. Pretendo saber que foi lá fazer quando eu senti ímpetos de o atirar pelas escadas abaixo. Não me olhe assim, conheço-o o suficiente para saber que não passa de um gabarola e de um cobarde!

Muito pálido, Blandois cofiou o bigode, dizendo entredentes:

— Com os demónios, meu filhinho, você compromete um pouco a respeitável senhora sua mãe!

Sentou-se e disse, com uma ameaça fanfarrona na voz:

— Vinho! Tragam-me vinho do Porto, vamos falar de negócios! A sua saúde, senhor prisioneiro! A sua atual situação pouco bem lhe faz, está tão macilento e envelhecido! Quer então saber porque entrei na farçazinha que você veio interromper? Pois fique sabendo que tinha, e que tenho sempre, está a compreender, um interessante produto para vender à respeitável senhora sua mãe. Descrevi-lhe o meu precioso artigo e disse o meu preço. Relativamente à transação, a respeitável senhora sua mãe mostrou-se excessivamente calma, excessivamente imperturbável. Enfim, a sua admirável mãe enfadou-me. Então, para me divertir um pouco, ocorreu-me a idéia de desaparecer. Idéia que, percebe o senhor, a sua mãe e o meu amigo Flintwitch de bom grado teriam concretizado pelas suas próprias mãos. Ai, ai, ai! Não me olhe assim. Repito-lhe. Teriam ficado encantados e deliciados.

Voltou a encher o copo e continuou, com a mesma arrogância:

— Aquela idéia de desaparecer foi-me providencial: aborreceu a sua querida mamã, inquietou-o a si e mostrou que eu era um homem com quem não se brinca. Além disso, deu que pensar à senhora sua mãe, que imediatamente mandou publicar um pequeno anúncio nos jornais, dizendo que as dificuldades de certo acordo seriam resolvidas se determinado indivíduo quisesse ter a bondade de voltar a aparecer. E o senhor veio interromper tudo isto! O meu amigo filósofo, virtuoso, imbecil escolha! - porventura não teria feito melhor em me deixar em paz?

E olhou, por cima do copo, para Arthur, com um sorriso sinistro.

— Não - respondeu Clennam, desesperado por se ver de mãos e pés atados. - Estas duas testemunhas conduzi-lo-ão perante a justiça!

— Perante a justiça? - deu uma gargalhada.

— Diabos levem os juízes! Lembre-se de que tenho uma coisa para vender à sua mamã! Você, ó contrabandista, arranje-me uma pena, tinta e papel.

Pôs-se então a escrever, lendo à medida que o fazia:

À Senhora Clenan, da penitenciária e do quarto do seu filho

Cara Senhora,

Senti-me comovido por saber, pelo prisioneiro, que a senhora receava pela minha vida. Tranquilize-se, minha cara. Por agora, continuo vivo e bem de saúde. Como não tenho a certeza se está preparada para responder à pequena proposta que lhe fiz, refrearei a grande impaciência que sinto de voltar a ver a senhora. Voltarei dentro de oito dias. Poderá então aceitar ou rejeitar a minha proposta, com todas as conseqüências que isso implicará.

Enquanto aguardo, espero não ser demasiado exigente ao pedir-lhe que pague as minhas despesas do hotel.

Com elevada estima e consideração,

RIGAUD BLANDOIS

Tendo acabado a sua missiva, atirou-a, com bazófia, aos pés de Arthur, partindo Panks imediatamente, para a levar a casa da senhora Clennam.

A espera foi longa e penosa para Arthur, que era obrigado a suportar as insolências e os ultrajes daquele indivíduo. Finalmente, ouviram- se de novo os passos de Pancks nas escadas, seguidos de outros. Quando Cavaletto abriu a porta, o homenzinho entrou, precedendo Flintwitch. Blandois agarrou-o pelos ombros e abraçou-o com espalhafato.

— Como vai, Arthur - perguntou o velho, libertando-se secamente daquele amplexo. - Ora bem, teria feito melhor se nos houvesse deixado, à sua mãe e a mim, ocupar-nos dos nossos negócios sem a sua intromissão. Não se deve acordar o gato que dorme.

Olhou em seu redor, com ar de censura:

— Então é esta a prisão para dívidas? Escolheu uma porcaria de mercado para vender os seus leitões, Arthur!

Blandois, menos paciente do que Arthur, sacudiu o velho pelo casaco, gritando, com uma vivacidade feroz:

— Diabos levem os seus leitões e o seu mercado! Dê-me a resposta!

— Um momento - replicou friamente Flintwitch. - Arthur, antes de tudo, aqui está o bilhetinho para si.

Era um bilhete da mãe, que este leu duas vezes antes de o rasgar em pedacinhos:

Caro Arthur,

Peço-lhe que deixe o meu sócio encarregar-se dos meus negócios.

Sua mãe

Blandois riu às gargalhadas:

— Ah Ah! Sendo assim, saio vencedor! É do meu temperamento triunfar! Meus filhinhos, meus bebés, meus bonequinhos, têm todos medo de mim! E, agora, vou ter cama e comida às vossas custas. Procuremos hotel. Ah, ah, ah!

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