A Pequena Dorrit (1857)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - REGRESSO À CASA MATERNA
Capítulo II - A PENITENCIÁRIA
Capítulo III - O BECO DO CORAÇÃO-QUE-SANGRA
Capítulo IV - DESGOSTOS DO CORAÇÃO
Capítulo V - UM ADIVINHO
Capítulo VI - A PERSONAGEM INQUIETANTE
Capítulo VII - UMA GRANDE NOTÍCIA
Capitulo IX - UMA SEQUÊNCIA DE DESGRAÇAS
Capitulo X - DE NOVO A PENITENCIÁRIA
Capítulo XI - ESCLARECEM-SE OS MISTÉRIOS
EPÍLOGO

Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMÍLIA DORRIT

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By ClassicosLP

O Outono chegara e uma límpida manhã brilhava pelos picos elevados dos Alpes: a neve que caíra recentemente ofuscava, o ar era tão puro e tão leve que, ao respirá-lo, iríamos julgar que uma vida nova tivera início.

Nos cumes desertos do desfiladeiro do Grande São Bernardo, no convento que, à noite, serve de abrigo seguro aos viajantes, eram horas de retomar o caminho. Os monges limpavam a neve que se acumulara em frente da porta e ao longo do atalho puxavam-se as mulas para fora das estrebarias atavam-se os guizos, carregavam-nas com as bagagens; as vozes dos guias e dos cavaleiros ecoavam como se fossem música, pelo ar límpido. Alguns tinham-se já posto a caminho e, no vasto e branco planalto, minúsculos vultos de homens e de mulas avançavam, ao tilintar cristalino dos guizos e ao soar de vozes harmoniosas.

Uma nobre caravana, que fizera a excursão na véspera, pôs-se a caminho, dirigindo-se de novo para o vale, onde haviam deixado as bagagens. Envergando peles e caras fazendas, aquela família, que se compunha de dois cavalheiros idosos, de duas jovens encantadoras e de um garboso cavaleiro, era acolhida em todo o lado com a maior das deferências. Em cada etapa, um mensageiro partia à frente, a fim de se certificar se os aposentos de luxo se encontravam preparados na estalagem que os aguardava. Era o arauto do cortejo familiar. Atrás dele, vinham a grande e a pequena carruagem, ocupadas pela família Dorrit. No fim, seguia o grande carroção com a restante criadagem, as bagagens mais pesadas e toda a lama e poeira que as outras viaturas não tinham acumulado.

Todo este séquito se comprimia no pátio do hotel de Martigny, no regresso da excursão que a família fizera à montanha. Mas uma surpresa imprevista aguardava o senhor Dorrit no hotel: dois viajantes desconhecidos jantavam num dos aposentos que lhes estavam reservados!

O estalajadeiro, de chapéu na mão, especado no meio do pátio, jurava, por tudo quanto lhe era sagrado, ao mensageiro, que se sentia penalizado, aflito, desnorteado, mas que a nobre dama insistiria tanto com ele para lhe facultar o aposento por uma curta meia hora, que ele não fora capaz de resistir. A curta meia hora passara, a dama e o companheiro tinham acabado a sobremesa e a sua chávena de café, a conta estava paga, a carruagem atrelada, iam partir. Mas por um horrível acaso, que decerto se devia à maldição divina, ainda se encontravam lá.

Nada teria podido aumentar ainda mais a indignação do senhor Dorrit do que ouvir estas desculpas. Pareceu-lhe que uma mão assassina acabara de atingir a dignidade da família. Porque o sentimento desta dignidade era nele tão agudo, que estava sempre a vê-la ameaçada.

— Será possível, senhor - perguntou, rubro de cólera -, que tenha tido, hum, o arrojo de pôr um dos meus aposentos à disposição de outra pessoa?

Mil perdões! O estalajadeiro suplicava ao cavalheiro para não se zangar! Se o cavalheiro quisesse ter a suprema bondade de aguardar cinco minutos no outro salão que lhe fora reservado.

— Não, homenzinho! Nem sequer porei o pé em sua casa! Como se atreveu a agir comigo desta maneira? Por quem me toma, pois, para não me tratar, hum, para não me tratar como faz com os outros cavalheiros?

Miss Fanny interrompeu o pai com grande aspereza, declarando ser evidente que a impertinência daquele homem se devia a uma razão particular, que ele teria que confessar!

Entretanto, o estalajadeiro deslizara até ao salão em causa para lhe explicar a delicadeza da sua situação e depressa voltou a descer as escadas, precedendo a dama e o seu companheiro. Este dirigiu-se ao senhor Dorrit:

— Desculpe-me, não tenho o dom da palavra, mas aquela dama - aliás, a minha mãe manda-me dizer-lhe que espera sinceramente não ter dado azo a mal-entendidos!

O senhor Dorrit, ainda ofegante, em virtude da afronta de que fora vítima, saudou o cavalheiro e a dama com ar frio, categórico e sem apelo.

— Não, mas realmente, diga-me meu velho - prosseguiu o cavalheiro, aproximando-se de Tip.

— Tentemos os dois conciliar a situação. Na verdade, a minha mãe não quer algazarras! A culpa não foi deste bom homem, mas dela. Hem? Então isto vai, meu velho, fica combinado!

— Edmond - chamou a dama -, explicaste. mas acho que é melhor ser eu a apresentar-lhe as minhas desculpas! - disse ela dirigindo-se graciosamente para o senhor Dorrit.

De repente, a dama, aproximando o lornhão dos olhos, ficou petrificada e sem conseguir pronunciar palavra, ao ver as duas meninas Dorrit. Miss Fanny, no primeiro plano do quadro grandioso composto pela família, pela equipagem da família e pelos servidores da família, pegara no braço da irmã, como a querer mantê-la ao seu lado e assumir um ar distinto, olhando a dama de alto a baixo.

Esta - que era a senhora Merdle - recompôs-se rapidamente, concluiu as suas desculpas cheias de consideração ao senhor Dorrit, que a elas respondeu de modo igualmente gracioso, e subiu para a carruagem, depois de ter dirigido às duas jovens um fascinante sorriso de despedida, como faria a duas meninas de alta linhagem que nunca tivera o prazer de encontrar, mas que considerava absolutamente encantadoras.

Quanto ao jovem Edmond Sparkler, que ficara petrificado ao mesmo tempo que a mãe, foi quase impossível arrancá-lo da imobilidade com que fixava Fanny e o seu quadro familiar. Quando conseguiram dobrá-lo o suficiente para o fazerem passar pela portinhola, os seus olhos colaram-se à lucarna traseira da carruagem e aí se fixaram até o trem ter desaparecido.

Este encontro foi, para Miss Fanny, tão agradável, que o seu humor se suavizou consideravelmente, o que a todos surpreendeu.

A Pequena Dorrit tinha, neste grupo, um papel de silêncio e meditação absoluta. Sentada, na carruagem, em frente do pai, recordava-se do velho quarto da Penitenciária e a sua vida atual parecia-lhe um sonho. Tudo o que via era novo e maravilhoso, mas irreal. Tinha a impressão de que aquelas paisagens montanhosas e aquelas regiões pitorescas se dissipariam a qualquer momento e que a carruagem, numa curva brusca da estrada, se deteria, com um solavanco, diante do velho portão gradeado da prisão.

Para si, o mais estranho era sentir uma distância tão grande entre ela e o pai. De início, tentara manter, ao seu lado, o mesmo lugar, ocupando-se dele. Mas este dera-lhe a entender que os criados estavam ali para desempenhar essa tarefa, que uma jovem da alta-roda se não devia rebaixar executando essas ocupações subalternas, que devia manter-se no seu lugar! Obedecera, sem murmurar, e achava-se, pois, sentada no canto de uma carruagem luxuosa, as mãozinhas pacientes cruzadas no regaço, contemplando, através da janela, cumes tão irreais como a sua própria vida interior.

Depois de terem passado pelos Alpes, dirigiram-se para a Itália. Para a Pequena Dorrit cada dia era um sonho que tinha início em qualquer aposento decorado com frescos. Através da janela, enquadrada pelas folhas amareladas de uma vinha, contemplava algumas laranjeiras plantadas em vasos, nas lajes fendidas do terraço, e, mais abaixo, o pátio, rodeado de colunas, com as carruagens e os criados. E depois, ao longo do dia, estradas ladeadas de vinhas e oliveiras, aldeias brancas, tão lindas mas tão pobres, lagos azuis e palácios em ruínas. Por vezes, pernoitavam, durante semanas inteiras, em esplêndidos aposentos, davam todos os dias banquetes, visitavam maravilhas, percorriam palácios imensos, descansavam nos cantos sombrios de velhas igrejas, onde, entre as lamparinas de ouro, o incenso fumegava. Depois deixavam as cidades e retomavam a estrada ladeada de vinhas e de oliveiras.

A caravana familiar acabou, assim, por chegar a Veneza, onde permaneceu por algum tempo, porque estava previsto passarem seis meses num faustoso palácio do Grande Canal.

Nessa cidade de sonho, de ruas pavimentadas de água, onde o lúgubre silêncio dos dias e das noites é apenas quebrado pelo badalar surdo dos campanários das igrejas, pelo marulhar da água e pelos chamamentos dos gondoleiros, a Pequena Dorrit tinha todo o tempo para sonhar. A família corria para os divertimentos e para os saraus, mas ela, demasiado tímida para assistir às festas, pedia simplesmente que a deixassem tranqüila. Por vezes, quando conseguia escapar aos serviços da sua tirânica criada de quarto, metia-se numa das gôndolas sempre amarrada à porta do palácio, e pedia para ser conduzida através daquela cidade estranha. Mas o seu refúgio preferido era a varanda do seu quarto que, situado no último andar, pairava por sobre o canal. Permanecia ali à tardinha, contemplando o pôr do Sol, as longas faixas violetas que abrasavam o horizonte, a luz que banhava os edifícios tornando-os como que transparentes e iluminados a partir do interior. Via extinguirem-se aquelas maravilhas e, enquanto as gôndolas negras transportavam os convidados para a música e para os bailes, debruçava-se à varanda e contemplava a água, como se todo o seu passado aí repousasse, fundado algures.

Arthur Clennam, que há muito não via a mãe, dirigiu-se, uma tardinha, em passos lentos, para a triste casa da sua juventude. Acabava de entrar na rua estreita e íngreme para a qual dava o alpendre, quando alguém o alcançou, tão rente que quase foi atirado contra a parede. Como ia mergulhado nos seus pensamentos, o encontrão apanhou-o desprevenido e o outro teve tempo de dizer, com rudeza: Perdão, foi sem querer! e de ultrapassá-lo, antes que pudesse compreender o que lhe acontecera.

A rua descia quase a pique antes de virar bruscamente, e o homem, que, sem estar embriagado, parecia agitado por qualquer bebida forte, percorreu-a rapidamente; Clennam perdeu-o quase imediatamente de vista. Não tinha a intenção de o seguir, mas sentia apenas vontade de o observar um pouco mais de perto e estugou o passo para virar a esquina. Quando a atingiu, contemplou a rua inteira. nem vivalma. E, contudo, não havia nenhuma sombra nem nenhuma esquina que o pudessem ocultar ao seu olhar e não ouvira qualquer porta fechar-se. Cismando naquela estranha personagem, entrou no pátio. o homem encontrava-se ali, apoiado contra o gradeado da pequena cerca, e olhava para as janelas da senhora Clennam, rindo em silêncio. Um instante depois, avançava, lançando a capa por cima do ombro, e batia ruidosamente à porta.

Clennam avançou rapidamente e subiu, por seu turno, os degraus. O homem observou-o com ar fanfarrão, após o que bateu de novo.

— O cavalheiro é muito impaciente! - observou Arthur.

— Assim é. Com os demónios! É do meu temperamento ser impaciente!

Affery, de candeia na mão, entreabriu a porta e perguntou quem acabava de bater com tanta violência àquela hora:

— Como, Arthur - exclamou, muito espantada, avistando-o primeiro. -, foi o senhor? Ah, meu Deus, não! - prosseguiu, ao ver o outro. - É ele de novo!

— Evidentemente, é outra vez ele, senhora Flintwitch! Abra a porta e deixe-me abraçar o meu caro Jeremy Diga-lhe que o velho Blandois regressou! O seu pequerrucho, o seu bem-amado! Abra a porta, minha linda, e deixe-me apresentar os meus respeitos à sua patroa. A senhora ainda é viva? Ora bem, tanto melhor!

E, para estupefação de Arthur, Affery abriu a porta. O desconhecido, sem mais cerimónias, entrou no hall, fazendo soar os tacões.

— Diga-me, Affery, suplico-lhe - perguntou Arthur em tom severo -, quem é este senhor?

— Diga-me, Affery, suplico-lhe - repetiu Blandois -, quem é este, ah ah ah. senhor?

Muito oportunamente, ouviu-se a voz da senhora Clennam, que pedia aos dois homens que subissem. Deparou-se-lhes a idosa mulher sentada, aprumada e impassível, na sua poltrona.

— Pois então apresente-me o senhor seu filho, minha senhora - começou Blandois -, julgo que tem queixas contra a minha pessoa!

— Cavalheiro - interrompeu Arthur -, seja o senhor quem for e seja qual for a razão da sua visita, se eu fosse o dono da casa, tê-lo-ia já posto na rua!

— Mas não é o dono da casa, Arthur - interveio a mãe. - Se eu tiver qualquer objeção a fazer, serei eu a levantá-la, não se preocupe! O senhor Blandois foi-nos recomendado pelos nossos correspondentes de Paris, que são inteiramente fidedignos, desconheço a razão da sua visita de hoje, mas é provável que se trate de algum assunto relacionado com a nossa empresa e será para nós um dever e um prazer atendê-lo. Eis porque é lamentável que o seu carácter insensato tenha achado motivos para se ofender.

Flintwitch entrou nesse momento. O visitante levantou-se, rindo grosseiramente, e abraçou-o.

— E como lhe corre a vida, meu lindo Flintwitch? Num mar de rosas? Tanto melhor, tanto melhor! Tem uma aparência maravilhosa, jovem e fresco como um rebento! Ah, que lindo, que bom menino - e fê-lo rodopiar, como um pião, após o que o empurrou para o outro extremo da sala e voltou a sentar-se.

O espanto, a cólera e a vergonha embargaram a voz de Arthur. Flintwitch reassumiu a sua compostura, de respiração ofegante, mas o rosto sempre impassível. A senhora Clennam fez, nessa altura, um breve gesto de despedida com a mão e disse:

— Arthur, poderia deixar-nos a sós para tratarmos dos nossos negócios?

— Obedeço-lhe, minha mãe, mas contrariado. Senhor Flintwitch, é com bastante surpresa e repugnância que deixo. o seu assunto de negócios ser tratado no quarto de minha mãe! Boa noite.

No momento em que se dispunha a sair, Blandois exclamou em voz estridente:

— Outrora, meu lindo Flintwitch, tive um amigo que ouviu contar tantas histórias horrorosas sobre a cidade de Londres, que nunca teria ficado sozinho, à noite, com duas pessoas que talvez tivessem interesse em desembaraçar-se dele, não, palavra de honra, nem mesmo numa casa tão respeitável como esta. Não é verdade, Jeremy?

Desdenhando responder-lhe e, aliás, incapaz de o fazer, tal a cólera que o dominava, Clennam saiu após um relancear ao visitante, o qual fez estalar os dedos em sinal de despedida, enquanto o nariz e os bigodes se lhe encarquilhavam, num sorriso diabólico.

Nesse intervalo, em Veneza, outros problemas muito diferentes agitavam Miss Fanny Dorrit. No decurso de um dos seus passeios de gôndola, as duas irmãs verificaram que eram seguidas por outro barco, que executava, em torno delas, uma manobra singular, ora interceptando-lhes o caminho, ora detendo-se e deixando-as partir de novo. Amy estava absolutamente estupefacta ao ver a irmã assumir grandes ares, puxar de um soberbo leque dourado e preto e, indolentemente apoiada na popa, abanar-se com graciosidade. Acabou, pois, por perguntar o que se passava.

— É aquele palerma! - respondeu Fanny laconicamente.

— Quem? - inquiriu a Pequena Dorrit.

— Minha querida filha, tens compreensão lenta! É o jovem Sparklet, quem havia de ser?

E, como a gôndola os ultrapassava de novo, Fanny disse, com um riso cheio de coqueteria:

— Minha querida, alguma vez viste imbecil como este?

É preciso confessar que o senhor Sparkler, de olhos grudados nela, como uma grande bolha no vidro, na verdade não tinha o que poderíamos chamar garboso.

— Achas que nos vai seguir até casa - perguntou Amy.

— Minha querida filha, como hei de saber o que será capaz um idiota que morre de amores? Mas é provável que nos siga!

— Então morre de amores por ti - perguntou ela com ingenuidade. - Mas tu, minha querida Fany, quais são as tuas intenções a seu respeito?

— Escuta-me, minha patetazinha! É aquela falsa e insolente senhora Merdle que me interessa! Não percebes o que ela decidiu quando nos encontrámos em Martigny? Procedeu como se nunca nos tivesse visto. E porquê? Porque, agora, passei a ser um partido muito conveniente para o filho! E eu quero vingar-me da sua falsidade e da sua insolência: farei daquele cretino do Sparkler meu escravo E vergá-la-ei também!

— Mas dar-te-ás tu conta, Fanny, das conseqüências de tal comportamento?

— Não pensei ainda nelas, minha querida, cada coisa no seu devido tempo - respondeu ela, com uma indiferença cheia de soberba. - Chegámos. E o nosso Sparkler também, que grande coincidência!

Com efeito, o apaixonado encontrava-se ali, de pé na sua gôndola, segurando um cartão de visita e perguntando aos lacaios se estava alguém em casa. Os gondoleiros das jovens, a quem a perseguição exasperara, provocaram então uma suave colisão entre as duas barcas: o galante executou uma pirueta para trás e apenas pôde exibir à sua amada a sola dos sapatos, enquanto o resto do corpo se balançava nos braços dos seus criados.

A partir daquele dia, a vida de Fanny passou a ser uma longa sequência de angústias e perplexidades. A família emigrara para Roma, onde a senhora Merdle vivia, aliás, e o apaixonado seguira-a, naturalmente. E toda a gente em breve ficou a saber quem era a terna senhora do coração do senhor Sparkler, embora muito caprichosa com ele, Fanny, todavia, não o repelia. Ligara-se suficientemente a ele para se sentir comprometida sempre que ele se mostrava ridículo, isto é, com muita freqüência. Envergonhava-se dele, não se decidia nem a repeli-lo nem a encorajá-lo e, torturada pelo receio de a senhora Merdle tirar partido da sua confusão, voltava para os saraus num profundo estado de perturbação e de agitação.

— Querida Fanny, o que se passa? - perguntava Amy, ao vê-la precipitar-se para o toucador e tentar raivosamente chorar.

— O que se passa, grande palerma! Se não fosses tão tapadinha, não me perguntavas! Quem me dera morrer!

— É o senhor Sparkler, minha querida?

— O senhor Sparkler - repetiu Fanny, vincando bem as sílabas com um desprezo sem limites, como se fosse a última pessoa, à face da Terra, em quem lhe ocorreria pensar. - Não, menina-morcego, não é ele!

Arrependendo-se logo pela maneira como interpelara a irmã, desfez-se em soluços dizendo que a obrigavam a mostrar-se odiosa.

— Escuta-me, meu pequeno anjo - disse finalmente -, isto não pode continuar assim, preciso de lhe pôr termo, de uma maneira ou doutra! Percebes, minha querida?

— Sim. - respondeu Amy, que não compreendia muito bem.

E quererás tu aconselhar=me, minha querida - prosseguiu a outra, enxugando os olhos.

— Sim oh, és a minha tábua de salvação!

Depois de ter abraçado com grande ternura a sua tábua de salvação, pegou num frasco de perfume, deitou algumas gotas num lencinho e refrescou a fronte e os olhos.

— Meu tesouro, o que te vou dizer decerto te irá espantar: a despeito da nossa fortuna, esbarramos, falando do ponto de vista social, com grandes obstáculos. Não me compreendes muito bem, não é verdade? Quero eu dizer que, ao fim e ao cabo, a alta sociedade considera-nos novos-ricos -deu uma pancadinha na testa da irmã e murmurou -. E a questão que ponho a mim própria é a seguinte deverei eu decidir-me a assumir a tarefa de superar esses obstáculos em nome da nossa família?

— Mas de que maneira? - perguntou a Pequena Dorrit com inquietação.

— Nunca suportarei que a senhora Merdle me atormente ou me trate com condescendência! Prosseguiu Fanny, cada vez mais exaltada e ficando com a testa avermelhada, à força de lhe dar pancadinhas. - Não podemos negar que o Sparkler tenha uma boa situação ou que pertença a uma excelente família. Que ele seja inteligente ou não. de qualquer dos modos, seria incapaz de suportar um marido inteligente! Não poderia sujeitar-me a uma tal autoridade.

— Oh, minha querida Fanny! - exclamou Amy, experimentando um certo terror perante o que estava a pressentir. - Se amasses alguém, não pensarias dessa maneira! Se o amasses!

Fanny deixou de torturar a testa e olhou para ela:

— Oh, na verdade! Santo Deus, há certas pessoas que mostram uns ares de conhecerem a fundo determinados assuntos.

— Mas, Fanny, mereces um marido muito superior ao senhor Sparkler!

— Ora, Amy, só sei que queria ter uma posição mais definida e mais firme para me impor àquela mulher insolente!

— E para isso, Fanny, casarias com o filho? e sujeitar-te-ias a ser infeliz para toda a vida?

— Não seria uma vida desgraçada, seria a vida que mais me convém, Sim, que me convém plenamente.

Havia na sua voz uma entoação ligeiramente amarga, ao pronunciar aquelas palavras. Levantou-se e contemplou-se no grande espelho, com um risinho orgulhoso, batendo as mãos por cima da cabeça:

— A sua distinção Vai conhecer a minha. Serei a rival dela e isso significará o objetivo da minha vida! E a dançarina que ela desprezou por completo e que em nada se pareceu comigo. Oh, não dançará diante dos seus olhos enquanto viver!

Algumas semanas depois, ficou decidido o casamento. A Pequena Dorrit, ao inteirar-se da notícia, pousou a cabeça no ombro da irmã e pôs-se a chorar. Fanny, a princípio, riu-se, mas em breve apoiava o rosto contra o de Amy e punha-se também a chorar - um pouco. Foi a última vez que deixou transparecer os poucos sentimentos que fora obrigada a reprimir em virtude daquele casamento. A partir daquela altura, enveredou, com o seu andar imperioso é obstinado, pelo caminho que escolhera.

O casamento foi magnífico: nunca o cônsul britânico em Roma celebrara algum que se lhe igualasse. Depois, os recém- casados partiram para Florença, onde o senhor Dorrit se lhes devia juntar, a fim de os acompanhar até Londres. Fanny subiu para a sua deslumbrante carruagem. E, depois de ter rolado alguns minutos pela superfície lisa de um pavimento uniforme, começou a sofrer solavancos ao longo de um Lodaçal de Desencanto e através de uma longa, longa avenida de ruínas e de destroços. Dizem que muitas outras carruagens de núpcias seguiram o mesmo trilho e que ainda o percorrem.

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