Cumprindo a promessa que fizera ao senhor Meagles, Arthur dirigiu-se, um sábado, para Twickenham, onde o amigo possuía uma casa de campo. O tempo estava tão bom para a época, que preferiu fazer o percurso a pé e caminhava debaixo de um Sol radioso que aquecia a charneca. Mergulhado nas suas reflexões, depressa foi alcançado por um transeunte que o precedia e cujo vulto lhe pareceu, de repente, familiar.
— Daniel Doyce! Como vai - exclamou Arthur, dirigindo-se a ele.
O senhor Doyce encaminhava-se igualmente para a casa do seu amigo Meagles e a conversa entre os dois homens foi crescendo de animação. O inventor relatou a Clennam, muito interessado, os anos da sua aprendizagem, os seus trabalhos, as suas pesquisas e as dificuldades que se lhe depararam.
— Acho que, neste caso, ser-me-á necessário arranjar um sócio: até agora, tenho-me aguentado muito bem, mas estou a envelhecer, sou obrigado a ir com mais freqüência ao estrangeiro e não posso fazer tudo sozinho. Se houver oportunidade, falarei ao Meagles, que saberá aconselhar-me.
Chegaram, sempre conversando, à encantadora vivenda dos amigos. A casa estava circundada por um jardim magnífico, donde se via o serpentear de um rio. Logo que assomaram ao portão de ferro, toda a família se precipitou para os receber, isto é, o senhor Meagles, a senhora Meagles e a filha, Cherry.
Cherry tinha vinte anos. Espessos caracóis castanhos emolduravam-lhe o lindo rosto, de grandes olhos cintilantes e meigos e um sorriso terno e feliz. Numa palavra, era tão bela como encantadora.
A tarde passou-se agradavelmente em passeios e conversas. Quando Clennam voltou ao seu quarto, a fim de se vestir para o jantar, sentou-se diante da lareira, a refletir. A questão que o atormentava decerto se encontrava há muito presente no seu espírito, mas só agora assumia toda a sua acuidade: iria ou não apaixonar-se por Cherry?
Tinha o dobro da idade dela. Pois bem, que interessava isso? Sentia-se jovem de corpo e de espírito. Mas a questão seria verdadeiramente essa: Decerto o senhor e a senhora Meagles o aceitariam de bom grado para genro. Mas a jovem, que pensaria ela?
Ora, o senhor Clennam era um homem muito modesto, e quando fez a comparação dos seus méritos com os da bela Miss Meagles, ficou completamente desesperançado, mas, por fim, resolveu refrear os seus sentimentos para com ela.
À noite, após o jantar, pediu ao senhor Meagles que lhe concedesse meia hora para conversarem e retiraram-se para o escritório deste.
— Senhor Meagles, o senhor está ao corrente da minha situação; por causas várias, abandonei a empresa de minha mãe, e neste momento; precisava de arranjar outro emprego. Ora, vim a saber, pelo senhor Doyce, que este encarava a possibilidade de arranjar um sócio para o ajudar a dirigir a sua oficina. O senhor conhece-me: se acha que eu seria a pessoa indicada, gostaria que tivesse a amabilidade de o informar que me ponho à sua inteira disposição.
A proposta encantou o senhor Meagles, que prometeu falar no assunto, no dia seguinte, ao amigo.
Quando regressou ao quarto, Clennam pôs-se à janela e contemplou o rio, que serpenteava, tão tranqüilo, por entre os juncos e os nenúfares. E congratulou-se por ter tomado a decisão de não se afeiçoar a Cherry. Era tão bela, tão digna de ser amada! Como podia um homem de quarenta anos, tímido e grave, que em todo o lado se sentia um estranho, sem amigos, sem uma família acolhedora, sem fortuna, esperar conquistar aquela jovem? E, observando o rio, dizia para consigo que a água era bem ditosa por não conhecer a dor.
Na manhã seguinte, Arthur saiu antes do pequeno almoço, para ir admirar o campo das redondezas. Atravessou o rio na barcaça e passeou durante uma hora, depois voltou para o barco. um cavalheiro esperava já na margem, com o seu cão. Era um jovem de bela aparência, com cerca de trinta anos, rosto moreno e jovial. Todavia, Arthur ficou mal impressionado com a maneira brutal com que calcava o chão, dando pontapés nas pedras, e não lamentou ver-se livre da sua companhia quando desembarcou do outro lado do rio. Ao chegar a hora do almoço, Arthur enveredou pelo atalho que subia até à vivenda. Qual não foi o seu espanto ao deparar-se-lhe, no jardim, o jovem, a quem uma criada anunciava que Miss Meagles ainda não descera!
— Mas mesmo agora nos encontrámos!
— exclamou o desconhecido. - Permita-me que me apresente: Henry Gowan.
O jovem possuía uma certa distinção e uma voz agradável. Contudo, se Arthur se tivesse apaixonado por Chetry - mas não tinha -, achá-lo-ia bastante antipático.
Nessa altura, apareceu Cherry: que ar radioso o seu rosto deixava transparecer! Como acariciava aquele cão, que tão bem a conhecia! Quantas coisas exprimiam o seu rubor, e a sua perturbação, os seus olhos baixos! Clennam nunca a vira assim.
Entraram os três na sala de jantar: uma nuvem ensombrou o rosto do senhor Meagles, que reprimiu um suspiro antes de cumprimentar Gowan. E Arthur deu-se conta de que a mesma inquietação se espalhava pelo rosto do seu anfitrião sempre que via a filha com o recém-chegado. Com respeito a Gowan, Arthur veio a saber que estava ligado às famílias mais ricas do país. Todavia, a sua fortuna pessoal era demasiado insignificante para que lhe fosse concedido um desses cargos lucrativos e tranqüilos das altas esferas administrativas. De forma que se fizera pintor, mas lidava com a sua arte com tanta desenvoltura, que não obtinha grande sucesso.
À tarde, começou a chover e o dia pareceu a Clennam muito tristonho. Quando voltou para o quarto, afundou-se na poltrona e ali ficou por muito tempo, sem se mexer, escutando a chuva que caía a cântaros sobre o telhado. Bateram à porta. era Daniel Doyce, que lhe vinha perguntar a que horas partia no dia seguinte. Quando a questão ficou resolvida, Clennam não se conteve e abordou um assunto que o atormentava:
— Pareceu-me hoje que o nosso anfitrião estava um pouco sombrio.
— Sim - respondeu Doyce.
— Mas a filha não, creio eu.
— Não - retorquiu Doyce.
Ambos se calaram. Doyce, de olhos fixos na chama da vela, prosseguiu lentamente:
— O facto é que o senhor Meagles por duas vezes levou a filha para o estrangeiro, com o objetivo de a afastar de Gowan. Acha que ela sente uma extrema simpatia por ele e receia que semelhante união não dê bons resultados.
— Eles estão. - Clennam engasgou-se, tossicou e calou-se.
— O senhor apanhou um resfriado - declarou Doyce, sem olhar para ele.
— Decerto estão noivos, não é verdade? - prosseguiu Clennam em tom desprendido.
— Ainda não, pelo que me foi dito. O rapaz declarou-se, mas nada ficou decidido. Tudo o que há entre eles, viu-o o senhor, com os seus próprios olhos, esta tarde!
— Ah! Vi bastante - exclamou Arthur. O senhor Doyce deu-lhe as boas- noites com uma inflexão de homem que ouviu um grito de desespero e fez menção de responder com qualquer coisa encorajadora. E a chuva caía a cântaros, fustigava o solo, pingava dos ramos dos abetos e dos troncos nus de outras árvores. Caía pesadamente, tristemente. Era uma noite de lágrimas.
A Pequena Dorrit não completara os vinte e dois anos sem conhecer um apaixonado. este era o filho, muito sentimental, de um porteiro, a quem o pai esperava, na devida altura, legar o cargo imaculado e a quem familiarizara, desde a infância, com a responsabilidade do ofício, ambicionando manter o aferrolho na família E, enquanto esperava, o jovem ajudava a mãe a manter uma pequena loja de tabaco, situada próximo da prisão.
Ainda o objeto da sua afeição se sentava na sua cadeirinha e brincava com bonecas, e já o jovem John Chivery a contemplava com êxtase. Quando cresceu o suficiente para chegar aos buracos das fechaduras, ficava horas a admirá-la, com um olho só, enquanto o jantar que deveria levar ao pai arrefecia aos seus pés. Aos vinte e três anos, sempre fiel, oferecia todos os domingos, a tremer, charutos ao pai da sua bem-amada.
John era baixinho, de pernas bastante fracas e cabelos de um louro muito pálido. Via mal de um olho (talvez aquele com que tantas vezes espreitara pela fechadura) e esse parecia maior que o outro. O pequeno John era meigo e tinha a alma grande, poética, expansiva e fiel.
Os pais de Chivery não ignoravam a inclinação do filho, inclinação que por vezes o levara a mostrar-se irascível com os clientes - facto este que prejudicava os negócios. John saía, com intenção de se declarar, mas voltava, à tarde, sem ter ousado falar.
Neste assunto, e como sempre, a Pequena Dorrit foi a última a saber. Fanny e Tip, ao corrente daquela paixão, troçavam do pobre rapaz, que tinha o arrojo de amar uma jovem pertencente a uma família tão superior à dele. O senhor Dorrit, por seu turno, bem tentava aparentar que nada sabia: a sua pobre dignidade não podia rebaixar-se a tanto! Mas aceitava, e com alegria, os charutos de domingo. E, por vezes, condescendia até a dar alguns passos pelo pátio com o doador, o que punha este último muito orgulhoso e cheio de esperança.
Sendo assim, num domingo, John saiu para a sua visita habitual, levando a sua oferta de charutos. Vestira-se com esmero, um casaco cor de ameixa, uma enorme gola de veludo sobre o colete de seda com ramagens douradas, umas calças tão bem listradas, que as suas pernas pareciam liras de três cordas, e um vasto chapéu de cerimónia. Quando a senhora Chivery viu o seu pequeno John contornar a esquina da rua naquele aparato, compreendeu para onde ia e piscou o olho ao marido.
O senhor Dorrit, a quem muito agradavam as visitas de domingo, recebeu os charutos simulando uma grande surpresa, que nessas ocasiões lhe era habitual:
— Obrigada, John, obrigada! Mas diga-me a verdade, porque é demasiado, não posso. Não. Então não falarei mais disso. Ponha-os em cima da lareira, peço-lhe, John. E sente-se, sente-se. Não é nenhum estranho aqui!
À tímida pergunta do jovem se Miss Dorrit estava, o pai respondeu que Miss Amy saíra e que decerto se encontrava na Ponte de Fetro. Há algum tempo que ia lá com freqüência. O apaixonado voltou a descer as escadas, encantado, e não tardou a chegar à ponte. avistou, ao longe, o vulto da sua bem-amada que, junto de um dos parapeitos, contemplava pensativamente o rio. Estava tão absorvida, que não o ouviu chegar. Quando ele chamou a Miss Dorrit, teve um sobressalto e virou-se, tendo o seu rosto assumido uma expressão de receio e como que desgosto, que espantou o pobre rapaz. Contudo, recompôs-se rapidamente e cumprimentou-o com a sua voz habitualmente meiga. Mas quando soube que fora o pai que indicara a John o seu paradeiro, desfez-se em soluços e afastou-se um pouco. O pequeno John ficou tão assombrado com aquela reação, que se pôs a tremer dos pés à cabeça e se precipitou no seu encalço:
— Escute, preciso de lhe dizer, Miss Amy - balbuciou ele, pensando ser aquela a altura de finalmente esclarecer as coisas -, escute! É o seguinte: há muito tempo - a mim parece-me que foi há séculos! - que sinto o desejo profundo e ardente de lhe dizer uma coisa. Permite-me que lha revele? Asseguro-lhe que não falarei sem o seu consentimento, ou, que antes preferia saltar deste parapeito do que lhe causar o mínimo desgosto!
A Pequena Dorrit olhou-o e respondeu-lhe, toda a tremer, mas com voz tranqüila:
— Suplico-lhe, John Chivery, visto que tem a bondade de me pedir permissão para continuar, suplico-lhe, não diga nada.
— Nunca, Miss Amy?
— Não, suplico-lhe, nunca.
— Oh, meu Deus! - exclamou John em voz sufocada.
— Mas, em contrapartida; deixe-me explicar-lhe uma coisa: é preciso que não nos tome, a mim e a toda a minha família, por pessoas diferentes dos outros prisioneiros. Não sei o que fomos no passado, em qualquer dos casos, não lhes somos, nem nunca seremos, superiores.
O pequeno John prometeu dolorosamente que se sentiria muito feliz por fazer tudo o que ela desejasse.
— Pelo que me toca - prosseguiu a jovem -, pense em mim o menos possível, quanto menos melhor será. O senhor, é de tal forma generoso, que sei que posso contar consigo. Adeus, John, espero que um dia encontre uma boa esposa e que seja feliz, o John bem o merece.
O pobre pequeno John, que já não podia mais, desfez-se em soluços.
— Oh! Não chore, suplico-lhe, não chore! Adeus, John, e que Deus o abençoe!
E o pequeno John afastou-se, a gola enorme levantada, porque chovia, o casaco cor de ameixa abotoado, para esconder o colete e a bengala apontada em direção da casa paterna. Amy, entretanto, sentara-se num banco, apoiando contra o muro rugoso a mão, depois o rosto, como se sentisse a cabeça pesada e o espírito oprimido.
No dia seguinte, a Pequena Dorrit foi procurar a irmã Fanny ao teatro onde, todos os dias, esta representava. Amy não estava acostumada àqueles lugares e sentiu-se completamente perdida nos bastidores, no meio de um labirinto poeirento de traves, de tabiques, de paredes de tijolos e de cordas, onde zumbia um enxame de gente. De súbito, ressoou atrás dela a voz pouco cordial da irmã:
— Santo Deus, Amy, que fazes tu aqui? Nunca me passou pela cabeça ver-te num lugar destes, no meio dos artistas!
Conduziu a irmã para um recanto mais afastado, onde se amontoavam cadeiras e mesas douradas e onde jovens, sentadas um pouco por todo o lado, tagarelavam.
— Ora então, Amy, o que se passa? Decerto é qualquer coisa a meu respeito que te preocupa! - disse Fanny, como se estivesse a dirigir a uma avó cheia de preconceitos.
— Não é coisa importante - respondeu a irmã -, mas desde que me falaste dessa senhora que te deu.
Nessa altura, alguém fez assomar a cabeça por entre duas traves, gritando:
— Atenção, meninas!
Todas as jovens se levantaram, sacudindo as saias, e Fanny fez o mesmo.
— Desde que me falaste daquela senhora que te deu um bracelete, sinto-me inquieta - prosseguiu Amy.
A voz fez-se ouvir de novo:
— Vamos, meninas!
As jovens desapareceram num ápice e, durante um bom pedaço, ouviu-se música e passos cadenciados. Finalmente, o bulício parou, as dançarinas voltaram a aparecer e vestiram-se para se irem embora. As duas jovens esperaram que o tio Frederick arrumasse o clarinete e subisse e acompanharam-no até à taberna onde ele habitualmente jantava. Fanny declarou então:
— Agora, Amy, se não te sentes muito cansada, vem comigo até Harley Street, Cavendish Square!
O ar com que pronunciou esta distinta morada e o movimento desdenhoso do seu vistoso chapelinho deixaram Amy estupefacta.
Quando chegaram a essas ricas paragens, Fanny pareceu que escolhia a mais bela das casas, bateu e pediu para ver a senhora Merdle. O lacaio empoado introduziu-as então num salão vasto e magnífico. O mais belo aposento que Amy vira na vida. A jovem, extasiada, olhava para a irmã, que lhe fez sinal para se calar, indicando um reposteiro; um instante depois, uma mão cheia de anéis ergueu o reposteiro e apareceu uma dama: uma senhora bastante bela, muito majestosa e também muito desdenhosa, que convidou as duas jovens a sentarem-se e, por seu turno, instalou-se no seu sofá cor de púrpura e ouro.
— Senhora Merdle - disse Fanny, num misto de ousadia e de deferência -, aqui, a minha irmã perguntou-me como tivera eu a honra de a conhecer. E como eu devia ainda visitá-la, tomei a liberdade de a trazer comigo, esperando que a senhora quisesse ter a bondade de lhe explicar pessoalmente.
— É muito difícil explicar à gente nova o que é a alta sociedade. Para falar com franqueza, é difícil explicá-lo. à maior parte das pessoas Gostaria muito, é evidente, que a sociedade fosse menos dura e menos injusta, mas sabemos que o não é, e, a menos que nos disponhamos a viver nos Trópicos - disseram-me, contudo, que, lá, o clima é maravilhoso! -, infelizmente temos que a aceitar! Visto que a sua irmã deseja que lhe relate as circunstâncias - tudo em sua honra! - do nosso encontro, é prazenteiramente que a vou satisfazer. Tenho um filho de vinte e dois anos - casei-me muito nova -, muito alegre, o que é permitido à gente nova, e muito impressionável, o que bem lamentável é para nós, que devemos obedecer às rígidas leis da alta sociedade!
Suspirou, como se ela própria não fosse um dos pilares dessa alta sociedade londrina.
— Ora, quando soube que o meu filho ficara maravilhado com uma dançarina e quando soube de que teatro se tratava, fiquei muito surpreendida e bastante aflita. Mas quando soube que a sua irmã, contendo-lhe os ímpetos, o levara a propor-lhe casamento, experimentei uma angústia indescritível. Dirigi-me, pois, ao teatro, para expor à jovem em questão a minha maneira de pensar e deparou-se- nos alguém muito diferente, deve dizê-lo, do que imaginara e que, por seu turno, também se vangloriava da sua família!
Rematou com um dos sorrisos dos mais irónicos.
— Disse-lhe, minha senhora - respondeu Fanny, corando levemente -, que me encontrou numa situação que me é muito inferior e que a minha família valia a do seu filho.
— É isso - replicou a senhora Merle com frieza. - Expliquei então à sua irmã que, sendo o mundo como é, se me tornava impossível manter tais ligações com essa família de que ela tanto se orgulha.
— Por favor, minha senhora, que a minha irmã fique sabendo - interveio Fanny, com um desdenhoso movimento do seu chapéuzinho - que já tive a honra de informar o seu filho que não desejo ter qualquer relacionamento com ele.
— Mas evidentemente, ia dizê-lo mais adiante! Finalmente, chegámos a um acordo e a sua irmã permitiu- me que lhe agradecesse com um ou dois testemunhos da minha consideração, que lhe foram entregues pela minha costureira.
A Pequena Dorrit tinha um ar penalizado e o seu rosto, ao virar-se para a irmã, mostrava-se perturbado.
— Por ocasião da sua última visita, Miss Dorrit ir-me-á permitir que lhe diga adeus, que lhe exprimirei à minha bem grosseira maneira.
A senhora Merdle levantou-se da poltrona e fez deslizar qualquer coisa para a mão de Fanny.
— Adeus, Miss Dorrit, e os meus maiores desejos de felicidades para o futuro!
As duas raparigas levantaram- se, a mais velha com ar altivo e a mais nova humilhada. Foram reconduzidas até à porta pelo lacaio empoado e encontraram-se na calçada! Depois de caminharem em silêncio por algum tempo, Fanny perguntou:
— Ora bem, Amy, que tens tu a dizer?
— Oh, não sei, Fanny - respondeu ela, desconcertada. - Então aquele jovem não te agradava?
— Agradar-me? É quase idiota!
— Visto que me pediste a opinião, devo dizer-te, que fiquei muito penalizada por teres aceite coisas daquela mulher. Não te zangues.
— Grande imbecil - respondeu-lhe a irmã, sacudindo-lhe o braço -, não tens nenhum carácter, nenhum amor-próprio! Como suportar que uma mulher tão falsa e tão insolente calque impunemente a tua família aos pés? Nesse caso, ao menos obriga-a a pagar e honra a tua família com esse dinheiro!
De repente, explodiu em desesperados soluços:
-Desprezas-me porque sou dançarina, mas foste tu quem me proporcionou os meios de o ser! E o teu irmão Tip, deixas que o insultem, porque trabalhou nas docas ou em notários, mas a culpa também é tua! E deixas que insultem o teu pobre pai, porque ele está preso: será que alguma vez imaginaste os sofrimentos que ele suporta?
A injustiça das suas censuras dilacerou o coração da Pequena Dorrit, mas nada respondeu. Fanny acalmou-se finalmente e as suas lágrimas exprimiram o seu arrependimento:
— Perdoa-me, Amy, perdoa-me - exclamou, com a mesma veemência com que censurara a irmã. - Estás tu a ver, estou mais em contacto com as pessoas do que tu e possivelmente tornei-me demasiado orgulhosa e altiva, será?
— Sim, oh, sim - respondeu a Pequena Dorrit.
— E enquanto te ocupavas do jantar e da roupa, eu só pensava na honra da família. És uma pequena dona de casa muito tranqüila, não é verdade?
A Pequena Dorrit sorriu, sem nada dizer, mas tinha o coração triste e desolado.