A Pequena Dorrit (1857)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo I - REGRESSO À CASA MATERNA
Capítulo III - O BECO DO CORAÇÃO-QUE-SANGRA
Capítulo IV - DESGOSTOS DO CORAÇÃO
Capítulo V - UM ADIVINHO
Capítulo VI - A PERSONAGEM INQUIETANTE
Capítulo VII - UMA GRANDE NOTÍCIA
Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMÍLIA DORRIT
Capitulo IX - UMA SEQUÊNCIA DE DESGRAÇAS
Capitulo X - DE NOVO A PENITENCIÁRIA
Capítulo XI - ESCLARECEM-SE OS MISTÉRIOS
EPÍLOGO

Capítulo II - A PENITENCIÁRIA

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By ClassicosLP

Nessa época, elevava-se junto da Igreja de São Jorge, no bairro de Southwark, a Penitenciária. Era um edifício retangular, que lembrava uma caserna, dividida em cubículos miseráveis e cercada por um pátio estreito e empedrado, rodeado por altos muros eriçados de pontas de ferro. Nela eram encerrados os que na altura não tinham condições para liquidar as suas dívidas a credores impacientes. vinham, com freqüência, acompanhados da família, instalar-se por algumas semanas naqueles cubículos exíguos.

Um dia, muito tempo antes do início da nossa narrativa, um cavalheiro de certa idade, de ar muito amável e desamparado, para lá foi conduzido. Ao carcereiro que fechava o portão de ferro declarou que decerto sairia dentro de um dia ou dois - É o que toda a gente pensa! Murmurara o carcereiro -, e que era até desnecessário desfazer as malas. A grande preocupação daquele homem tímido era a esposa:

— Que pensa o senhor, ficará ela muito impressionada quando amanhã me vier esperar à porta da prisão? - perguntou ao carcereiro.

Este respondeu que, geralmente, tal não acontecia, mas que dependia do temperamento das mulheres.

— Ela é muito delicada e inexperiente.

— Nesse caso, evidentemente.

— Está tão pouco habituada a sair sozinha que pergunto a mim mesmo se conseguirá encontrar o caminho para aqui.

— Talvez apanhe um fiacre - sugeriu o carcereiro.

— Assim o espero. Mas quem sabe, hum, se isso não lhe ocorrerá Diga-me, receio... espero que não lhe seja proibido trazer os filhos, não é verdade?

— Os filhos - retorquiu o carcereiro. - Proibido! Santo Deus, o pátio está cheio de miúdos! Parecem formigas Quantos tem?

— Dois - balbuciou o prisioneiro, entrando no pátio.

O carcereiro seguiu-o com os olhos.

— O senhor também é uma criança, o que faz três. E a sua mulher também, aposto, o que faz quatro. E decerto que vem um a caminho, o que faz quatro e meio. E o mais fraco de todos não é o que 'tá p'ra vir. - pensou.

A família instalou-se no dia seguinte, convencida de que ficaria apenas por alguns dias. Mas os negócios daquele devedor estavam tão enredados - ele próprio não percebia nada daquilo - que os guarda-livros e os conselheiros, que tentaram pôr o assunto em ordem, se viram por fim obrigados a desistir, em face da inexplicável confusão dos papéis.

— Sair? - comentava o carcereiro. - Aquele nunca mais sairá!

Como previra, cinco ou seis meses mais tarde, o endividado apareceu, uma manhã, esbaforido, pedindo que lhe fosse buscar um médico: a mulher estava prestes a dar à luz. De forma que o terceiro filho nasceu na prisão: era uma pequenita frágil, de quem, em breve, todos os prisioneiros muito se orgulhavam e que ficou a ser chamada o Bebé da Penitenciária.

E, gradualmente, o cavalheiro foi-se habituando àquela vida de recluso. começou mesmo a descobrir nela uma certa segurança: sentia-se ali protegido das desgraças que era incapaz de enfrentar. A família encontrava-se agora instalada, os filhos mais velhos brincavam no pátio e toda a gente conhecia o bebé. o próprio prisioneiro admirava o recluso.

E - Que homem distinto - dizia para consigo -, um autêntico cavalheiro, que sabe tocar piano, que fala francês e até italiano!

Quando a recém-nascida completou oito anos, a mulher do endividado, cuja saúde era frágil, faleceu. O marido encerrou-se no cubículo, saindo de lá quinze dias mais tarde, de cabelos grisalhos e, depois, a vida retomou o seu curso normal: as crianças continuaram, como antes, a brincar no pátio, vestidas de preto.

O tempo passou. Bob, o carcereiro, envelhecia e a saúde declinava.

— Eu e o senhor - disse, numa noite de Inverno, ao devedor - somos os pensionistas mais idosos daqui. Como todos estimam o senhor, gostaria que passasse a ser o Pai da Penitenciária!

O senhor Dorrit acedeu e a tradição prosseguiu, de geração em geração de prisioneiros - quer dizer, de três em três meses -, porque o idoso senhor de modos afáveis e cabelos brancos era o Pai da Penitenciária. Todos os recém- chegados lhe eram apresentados, cerimónia que ele levava muito a sério recebia-os no seu quarto, com uma certa condescendência de homem a quem o destino oprimiu, dizendo:

— Bem-vindo à Penitenciária! Sim, sou o Pai da Penitenciária, tiveram a bondade de me conceder esse título!

Tornou-se habitual receber sub-repticiamente algumas boas moedas, com os cumprimentos de um pensionista, daqueles que se iam embora. Recebia estas ofertas como os tributos de admiradores a uma personagem oficial e acostumou-se, com toda a naturalidade, ao que passou a ser uma espécie de mendicidade.

Também Amy, a menina que nascera na prisão foi transmitida de geração em geração, quer dizer, de braços em braços. O carcereiro Bob, o seu padrinho, afeiçoou- se- lhe bastante, reservando-lhe uma boa lareira no cubículo e respondendo às suas perguntas. Ela depressa compreendeu que nem toda a gente tinha o hábito de viver encurralada em pátios estreitos, rodeados de muralhas eriçadas de pontas de ferro; mas também depressa percebeu que, se ela tinha liberdade para sair pelo portão de ferro e franquear os muros, o pai, esse, não podia. A partir de então, começou a olhá-lo com ar de piedade e compaixão. Experimentava os mesmos sentimentos com respeito à sua caprichosa irmã e ao seu tão indolente irmão, pelas pessoas sem vivacidade que os altos muros mantinham prisioneiras e pelas crianças que ali brincavam.

Mas foi na ação que se manifestou o seu desejo de proteção, no dia em que o pai ficou viúvo. nessa altura tinha apenas oito anos e, de início, tudo o que pôde fazer foi ficar junto do preso para cuidar dele. Mas, pouco a pouco, começou efetivamente a assumir o lugar de mais velha e de responsável, suportando todas as preocupações, todas as inquietações e todas as vergonhas daquela família arruinada.

Periodicamente, mandava o irmão e a irmã para a escola primária; até ela frequentou algumas aulas noturnas, de forma que, aos treze anos, era capaz de ler e de escrever e de se encarregar das reduzidas despesas da família. Descobrindo, um dia, que um professor de dança acabara de ingressar como pensionista, foi, muito polidamente, solicitar-lhe que desse algumas aulas de dança à sua irmã Fanny, que mostrava grandes desejos de aprender. O bom homem, nas dez semanas que permaneceu na Penitenciária, consagrou todo o seu tempo à jovem, que fez progressos extraordinários. O sucesso deste empreendimento impeliu a pobre jovem a fazer outra tentativa durante meses, aguardou a chegada de uma costureira finalmente, apareceu uma modista, a quem a jovem se dirigiu:

— Aprender costura! E para quê? Veja aonde isso me levou! à prisão.

— Mesmo assim desejava aprender, minha senhora - insistiu ela.

— E, além disso, a menina é tão pequenina que.

— É verdade, sou muito pequenina! - soluçou o Bebé da Prisão, cuja pequena estatura dava já azo a gracejos.

A modista, que no fundo tinha um coração muito bondoso, fez dela sua aluna e, em pouco tempo, uma hábil costureira.

Com o tempo, também o Pai da Penitenciária foi mudando. Quanto mais dependia do dinheiro dos pensionistas mais ares se dava, em contrapartida, de nobre arruinado! Aceitava os cobres, mas chorava se alguém se atrevia a dizer que as filhas trabalhavam para viver. Embora fosse necessário engendrar toda a espécie de mentirazinhas para manter, aos seus olhos, esta ilusão de ociosidade distinta. A filha mais velha tornou-se dançarina: na família, havia um tio arruinado - arruinado pelo Pai da Penitenciária - que sobrevivia tocando muito mal, clarinete, no velho teatro para onde Fanny foi contratada. E contaram ao pai que a filha se ausentaria, durante o dia, para tomar conta do velho tio. O Pai da Penitenciária aceitou esta explicação, sem fazer perguntas.

— Façam como quiserem, minhas queridas, saiam à vontade, têm razão, isto aqui não é nada alegre! - dizia-lhes, fingido que nem por um instante lhe ocorria que pudessem sair para trabalhar.

Para o Bebé da Prisão, o mais difícil foi persuadir o irmão a trabalhar: deambulava pela prisão, fazia pequenos recados para os pensionistas e andava com rapazes pouco recomendáveis. Feliz com a sua sorte, teria, na verdade, continuado a viver assim até aos oitenta anos! Amy, ajudada pelo padrinho, o carcereiro Bob, arranjou para ele um emprego num notário. Mas, ao fim de seis meses, Tip voltou, de mãos nos bolsos, anunciando que se fartara e desistira do emprego. Tip cansava-se de tudo: de cada vez que arranjava trabalho - e arranjou muitos! - voltava, invariavelmente, algum tempo depois, declarando que estava farto e que desistira de tudo. E voltava à Penitenciária para retomar a sua vida de moço de recados, como se a prisão exercesse nele um fascínio irresistível. Um dia, contudo, anunciou que descobrira uma coisa ao seu jeito e, durante vários meses, ninguém soube nada dele. Vários boatos ambíguos correram a seu respeito, mas a pequena Amy de nada soube. Quando ele voltou, foi declarar tranquilamente à irmã que contraíra algumas dívidas, que voltava para a Penitenciária como recluso. Espantou-se por a ver desmaiar!

Tal era a vida e a história do Bebé da Penitenciária aos vinte e dois anos de idade. A despeito dos laços que a prendiam à casa natal, compreendera que melhor seria esconder a toda a gente o lugar onde passara a existência. E tal segredo aumentava ainda mais a sua natural timidez.

Tal era a existência da Pequena Dorrit, que voltava, agora, para casa, numa triste noite de Setembro, observada à distância por Arthur Clennam. Avançava, como uma sombra minúscula, pelas ruas buliçosas e bruscamente desapareceu pela porta da Penitenciária.

Na rua, Arthur Clennam parara, aguardando que passasse algum transeunte, a fim de lhe perguntar que lugar era aquele, quando surgiu um velho, que descreveu uma curva e passou pelo alpendre. Avançava todo curvado, as costas abauladas e com ar preocupado. Envergando um velho capote coçado, que lhe caía até aos calcanhares, tendo a cobrir-lhe os cabelos grisalhos e eriçados um velho chapéu ensebado e esburacado, segurava debaixo do braço um estojo mole, que devia conter qualquer instrumento para venda e segurava um maço de rapé, de um penny, com o qual reconfortava o pobre nariz azulado.

Arthur bateu-lhe ao de leve no ombro, interpelando-o, e o velho virou- se, piscando os olhos, como se tivesse percebido mal:

— Hem, que diz?

— Por favor, meu amigo, pode-me dizer que local é este?

— Este local é a Penitenciária.

— A prisão para dívidas?

— Sim, cavalheiro, a prisão para dívidas - retorquiu ele, virando-se.

— Desculpe, mas saberá o senhor se toda a gente pode entrar e sair?

— Entrar lá, sim. - respondeu o velho, dando a entender que ninguém de lá podia sair.

— Perdoe-me a insistência, o senhor frequenta bastante este local?

— Conheço-o bem - respondeu ele, como que ofendido por estas perguntas.

— O senhor vai-me desculpar. Não faço estas perguntas por curiosidade impertinente, o motivo que tenho é sério. Conhece o nome Dorrit?

— O meu nome, cavalheiro - respondeu ele simplesmente -, é Dorrit.

Arthur tirou o chapéu e apresentou-se; estava interessado por uma jovem a quem chamavam a Pequena Dorrit e que acabava de ver entrar naquele recinto.

— Essa jovem é filha do meu irmão, William Dorrit. Chamo-me Frederick. Sei que sua mãe, a senhora Clennam, protege a minha sobrinha e lhe dá trabalho. sendo assim, entre Arthur seguiu-o: franquearam os dois portões de ferro, que foram em seguida aferrolhados, e penetraram na prisão. A noite estava escura e as candeias do pátio e as tristes velas que se lobrigavam nas janelas só a tornavam mais sombria.

— E sobretudo, cavalheiro - disse Frederick, ao subirem as escadas -, não diga ao meu irmão que a minha sobrinha é costureira. O coitado não sabe que ela trabalha, tentamos salvaguardar-lhe a dignidade.

Quando o velho abriu a porta do quarto, Arthur avistou a Pequena Dorrit e compreendeu imediatamente a razão por que tinha tantas precauções em tomar as refeições do meio-dia sozinha: trouxera a carne que lhe fora servida e estava a aquecê-la para o pai, que, de velho roupão e gorro preto, aguardava o jantar diante da mesa cuidadosamente posta.

A jovem teve um sobressalto, ficou muito ruborizada e em seguida muito pálida; o visitante fez-lhe um sinal, suplicando-lhe que se tranquilizasse e que confiasse nele.

— Este cavalheiro é o senhor Clennam, que encontrei à porta - explicou Frederick ao irmão -, desejava cumprimentar-te, mas não se atrevia a entrar, com receio de te incomodar.

O senhor Dorrit levantou-se e cumprimentou Arthur com a sua altivez condescendente:

— Muito me honra, cavalheiro, seja bem-vindo. Frederick, uma cadeira! Rogo-lhe que se sente.

Era o mesmo cerimonial com que acolhia um novo pensionista.

— O cavalheiro deve estar a par... , minha filha

decerto lhe disse que eu sou o Pai da Penitenciária.

— Eu.

— Sim, evidentemente - arriscou Arthur, que ignorava o facto.

— E decerto sabe que a minha filha Amy nasceu aqui: que boa filha, cavalheiro, é o meu conforto e o meu amparo! Amy, minha querida, por favor, trazes-me a travessa? Senhor Clennam, vai-me dar a honra de partilhar a minha humilde refeição. .

A Pequena Dorrit instalou-se junto do pai, mas parecia inquieta e perturbada e nada conseguiu engolir. O olhar que deitava ao senhor Dorrit, a um tempo cheio de admiração e de vergonha, de dedicação e de amor, tocou bem fundo no coração de Arthur. Mas o Pai da Penitenciária continuou o seu discurso e o visitante então compreendeu por que tinha a jovem um ar tão envergonhado e perturbado:

— As pessoas são muito caridosas! a maior parte daquelas que vêm aqui para me serem apresentadas desejam agraciar-me com qualquer, hum, ofertazinha em honra do Pai da Penitenciária. Na maioria das vezes dão, hum, dinheiro que, devo confessar, é sempre bem-vindo!

Em face de um pedido tão explícito, a jovem pousou a mão no braço do pai, numa súplica muda, depois desviou o seu rostozinho, crispado de vergonha.

Ouviu-se uma sineta e, ao mesmo tempo, a porta abriu-se, dando passagem a dois jovens: eram Tip e Fanny, que vinham buscar os seus fatos que Amy cosera, lavara e engomara. Quando a sineta tocou segunda vez, Frederick levantou-se.

— Despache-se, senhor Clennam, em breve as portas fecharão. Depois, saiu com os dois sobrinhos.

Clennam, antes de partir, meteu sub-repticiamente uma boa quantia na mão do senhor Dorrit e em seguida desceu as escadas a correr, à procura da Pequena Dorrit, que desaparecera. Encontrou-a no pátio:

— Perdoe-me por ter vindo aqui! Mas desejava tanto ser-lhe útil, a si e à sua família! Se pudesse esperar ser merecedor da sua confiança, tal facto consolar-me-ia de muitas decepções!

— O senhor é muito bondoso e, no entanto, preferia que não me seguisse. Mas despache-se, a sineta já parou de tocar!

— Espere! Há quanto tempo conhece a minha mãe?

— Há dois anos, julgo eu!

— Ela veio buscá-la aqui?

— Não, ela não sabe onde vivo. No anúncio, indiquei a morada de um amigo do meu pai e foi assim que a senhora Clennam me descobriu e contratou.

A situação daquela criança impressionava-o tanto que se afastou a contragosto; todavia, ao chegar ao portão, ele deparou-se-lhe fechado. Uma voz trocista ressoou atrás de si:

— Então, apanhado na armadilha - perguntou Tip, o prisioneiro. - Ande, venha, vamos procurar um sítio onde pernoitar.

Mais tarde, acomodado numa tarimba, envolto nas trevas da Penitenciária, Arthur cismava:

— Quem sabe, quem sabe se razões misteriosas não levaram a minha mãe a interessar-se por esta garota!

E a suspeita, que o perseguiu, voltou a perpassar-lhe inexplicavelmente o espírito.

No dia seguinte, quando acordou, espessas nuvens corriam pelo limitado céu que se lobrigava da prisão e a chuva fustigava os detritos e a poeira do pátio. Foi com alívio que abandonou aquele antro de miséria, depois de ter encarregado um moço de recados de prevenir a Pequena Dorrit de que estaria à sua espera em casa de Frederick, tio dela.

A casa do velho era pobre e respirava-se ali um ar doentio, trapos a secar pendiam das águas-furtadas. Arthur encontrou Frederick na sua mansarda, bebendo o seu café numa mesa desengonçada, enquanto Fanny se acabava de vestir no cubículo ao lado. Logo que Amy chegou, um pouco mais tarde, Arthur ofereceu-se para a acompanhar durante parte do trajeto. Ela aquiesceu, dando mostras de certo embaraço, e aceitou o braço que ele lhe estendia.

Partiram, assim, em direção à Ponte de Ferro depois de percorrerem as artérias buliçosas, aquele lugar, de tão calmo, parecia-lhes que se encontravam em pleno campo. As rajadas de vento eram fortes e húmidas no céu, as nuvens, o fumo e o nevoeiro perseguiam-se com fúria, enquanto as ondas sombrias do rio se encapelavam. A Pequena Dorrit parecia a mais pequena, a mais agradável e a mais frágil das criaturas de Nosso Senhor!

— Ontem à noite falou-me com tanta gentileza, senhor Clennam, que gostaria de lhe agradecer. E também desejaria muito dizer-lhe que, - hesitou e estremeceu, de olhos marejados de lágrimas - que. é preciso não julgar mal o meu pai. Encontra-se há tanto tempo recluso ali. A prisão modificou-o e, precisamos de o compreender!

— Acredite, minha filha, que nunca o julgarei com dureza.

— Não quero dizer com isto que ele tenha que se envergonhar de qualquer coisa! Como sabe, é muito respeitado - acrescentou, com ingénuo orgulho -, os que vão para a Penitenciária têm imenso prazer em conhecê-lo e toda a gente reconhece que é superior aos outros, é mais por isso do que por ele ser pobre que lhe dão presentes!

O seu rosto resplandecia de afeto e de fidelidade. Dirigiu ao seu novo amigo um olhar suplicante:

— Porventura, compreenderá melhor a minha atitude de ontem à noite? Disse-lhe que lamentava a sua vinda, pois bem, com efeito. para falar verdade. não lamento absolutamente nada. Mas talvez tenha falado de uma maneira bastante confusa.

— Não se preocupe, acho que compreendi perfeitamente! - respondeu Arthur, um pouco perturbado. - Mas diga-me antes: gostaria de ver o seu irmão Tip em liberdade?

— Oh! Senhor Clennam, sentir-me-ia tão, tão feliz!

— Pois bem, veremos... Esse amigo do seu pai de que me falou ontem, como se chama ele?

— Chamava-se Plornish, era estucador e morava no Beco do Coração-que-Sangra.

— Não lhe prometo nada, minha filha, mas pode contar comigo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.

Voltaram a percorrer as ruas lamacentas. Clennam pensava na frágil figurinha que lhe dava o braço e que ele - ele que se sentia tão velho - considerava uma criança; cismava no local miserável onde ela nascera, na sua solicitude para com os outros, na sua inocência.

De repente, ouviu-se um grito:

— Mãezinha! Mãezinha!

Uma esquisita personagem, muito excitada, veio embater contra eles e caiu no chão, entornando o cesto de batatas.

— Oh, Maggie, és uma menina tão desastrada! - exclamou a Pequena Dorrit.

Maggie levantou-se com ligeireza e pôs-se a procurar as batatas, mas apanhava mais lama do que tubérculos.

Arthur e a Pequena Dorrit ajudaram-na e, quando tudo ficou em ordem, ela enxugou o rosto sujo com o xaile. Arthur pôde então examiná-la: tinha cerca de trinta anos, larga de ossos, traços grosseiros, olhos arregalados e era calva. Os olhos eram transparentes, incolores e fixos, porque era quase cega, e um sorriso, igualmente imóvel, iluminava-lhe constantemente o pobre rosto. A Pequena Dorrit apresentou-a:

— Esta é a Maggie, a filha da minha velha ama, que morreu há muito tempo. Maggie, diz -nos que idade tens.

— Dez anos, mãezinha!

— Nem calcula como ela é esperta e inteligente, não é verdade? Maggie Ganha sozinha o seu sustento!

E Maggie ria, muito feliz.

— Escuta, Maggie, este senhor quer saber a tua história, conta-lhe: a tua avó não era muito boa contigo.

E Maggie fingiu que bebia uma garrafa, dizendo egine, depois batia num bebé imaginário com um cabo da vassoura e um atiçador.

— Aos dez anos - prosseguiu a Pequena Dorrit - teve uma febre maligna e, desde então, ficou assim.

— Que lindo hospital - exclamou Maggie. Tão confortável Com limonada, laranjas, frango!

— Quando voltou do hospital - continuou a Pequena Dorrit, como se estivesse a contar uma história a um garoto -, a avó tratou-a ainda pior. Mas Maggie lutou tanto para melhorar, que pouco a pouco foi sendo capaz de sair sozinha e agora ganha o seu sustento.

Maggie ria às gargalhadas, batendo palmas, depois puxou- os até defronte de uma mercearia, para lhes mostrar como sabia ler bem os cartazes. Quando Arthur Clennam viu como o prazer fazia ruborizar o rosto da Pequena Dorrit sempre que Maggie acertava, pensou que seria capaz de ali ficar uma eternidade a contemplar as duas.

Finalmente, chegaram à prisão e a minúscula mãezinha desapareceu com o seu enorme bebé por trás do portão de ferro, que em seguida foi aferrolhado.

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