A Pequena Dorrit (1857)

By ClassicosLP

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Obra do inglês Charles Dickens. More

Capítulo II - A PENITENCIÁRIA
Capítulo III - O BECO DO CORAÇÃO-QUE-SANGRA
Capítulo IV - DESGOSTOS DO CORAÇÃO
Capítulo V - UM ADIVINHO
Capítulo VI - A PERSONAGEM INQUIETANTE
Capítulo VII - UMA GRANDE NOTÍCIA
Capitulo VIII - A RIQUEZA DA FAMÍLIA DORRIT
Capitulo IX - UMA SEQUÊNCIA DE DESGRAÇAS
Capitulo X - DE NOVO A PENITENCIÁRIA
Capítulo XI - ESCLARECEM-SE OS MISTÉRIOS
EPÍLOGO

Capítulo I - REGRESSO À CASA MATERNA

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By ClassicosLP

Passava-se em Londres, num domingo à tardinha, numa tardinha como todas as outras, lúgubre e deprimente. Só o badalar dos campanários das igrejas agitava os edifícios de tijolo e as ruas sombrias e desertas. Que espetáculo desanimador para quem, procurando distrair-se, olhasse pela janela! A cidade, ao crepúsculo, parecia morta. Que acabrunhamento para os trabalhadores londrinos que, aprisionados no escuro dos seus cubículos estreitos e doentios, viam terminar em tristeza o seu único dia de descanso!

Foi nesse momento que o senhor Arthur Clennam desceu da diligência de Douvres. O passageiro, um homem de cerca de quarenta anos, de rosto grave e tisnado, entrou num café para se aquecer e instalou-se perto de uma janela. Mas depressa ergueu a cabeça para escutar o badalar ininterrupto dos campanários em torno dele, as suas queixas e os seus gemidos. E, pouco a pouco, veio-lhe à memória a recordação dos domingos sombrios da sua juventude: recordou-se dos seus temores de menino, relembrou os seus domingos no colégio, os três ofícios religiosos a que era obrigado a assistir antes de poder engolir um jantar bastante frugal, finalmente, os domingos passados em casa, na companhia de uma mãe de rosto severo e coração impiedoso, o dia inteiro refugiada nos seus livros de orações.

— Que Deus me perdoe - pensou - e perdoe aqueles que me educaram, mas como odiava aqueles dias! E eis que, passados quinze anos na China, regressava a Londres num desses horríveis domingos.

A noite ia caindo. Arthur observou, através do vidro, as sombrias casas defronte, que se assemelhavam a prisões: um rosto espreitava, ocasionalmente, por uma dessas janelas imundas e logo desaparecia, como que para não ver a chuva, que começara a cair.

O viajante abotoou a capa, pôs o chapéu e saiu. Em passo rápido, a despeito da lama e dos charcos de água suja, desceu em direção ao Tamisa por um emaranhado de ruas tortuosas, percorreu os depósitos de mercadorias existentes ao longo do cais silencioso e, algumas ruas mais longe, deteve-se em frente da casa que procurava. Era um edifício velho e isolado, de tijolo quase negro. A seguir ao alpendre, um portão enferrujado fechava o patiozinho, votado ao abandono. Muitos anos antes, a casa começara a inclinar-se para um dos lados e tinham-na escorado com um gigantesco andaime, que continuava a sustê-la menos mal.

— Nada mudou - murmurou o viajante -, sempre a mesma tristeza e desolação. E sempre aquela luz, à janela de minha mãe, como quando voltava do colégio!

Bateu. Ouviram-se uns passos arrastados e a porta foi aberta por um velhinho, descarnado e encurvado, de olhar frio e penetrante.

— Ah, Senhor Arthur, até que enfim - exclamou sem a mínima emoção. - Entre.

Arthur fechou a porta. O velho examinou-o à luz da vela.

— Está mais robusto do que antigamente, mas nunca se poderá comparar ao seu pai ou à sua mãe.

— Como vai a minha mãe?

— Mantém-se no quarto, mesmo quando não faz tenções de se deitar: em quinze anos, não chegaram a quinze as vezes que saiu.

Penetraram numa fria e tristonha sala de jantar.

— Acho que ela não vai gostar que o senhor tenha viajado no Dia do Senhor - continuou o velho com frieza -, mas, enfim, isso é consigo! Vou anunciar a sua chegada.

Afastou-se, levando a vela, andando de lado como um caranguejo e de cabeça baixa, vestido de negro e de polainas compridas.

— Como sou sentimental! - pensou Arthur que sentiu as lágrimas assomarem-lhe aos olhos perante um acolhimento tão gélido. Fora ali que passara a infância, silencioso e aterrorizado, na companhia de uns pais que nunca se haviam entendido e que se evitavam o mais possível.

O velho voltou depressa, iluminou-lhe as escadas sombrias e abriu a porta de um quarto imerso de escuridão. Na penumbra da lareira, sentada num sofá negro como um ataúde, amparada por um grande almofadão negro lembrando um cepo, encontrava-se a mãe de Arthur, que envergava o seu vestido negro de viúva. Deu-lhe um gélido beijo e mandou-o sentar-se do outro lado da mesinha. Quinze anos se haviam passado e via-se o mesmo fogo, as mesmas cinzas e o mesmo cheiro a tinta negra pairava no quarto mal arejado daquela mulher, agora enferma.

— Minha mãe, que mudada está, a senhora, que era tão ativa!

— Para mim, o Universo reduziu-se a este quarto - replicou ela. - Graças a Deus sempre desprezei as vaidades mundanas.

Aquela presença, aquela voz severa, faziam Arthur sentir o seu medo e timidez de rapazinho.

— Reumatismo ou doença nervosa, pouco importa - prosseguiu ela -, o facto é que as minhas pernas ficaram paralíticas. Já não saio do meu quarto. Não saio desde. desde quando - exclamou por cima do ombro.

— Vai fazer doze anos no Natal - respondeu uma voz alquebrada, vinda da escuridão. - É você, Affery - perguntou Arthur, levantando a cabeça.

A voz trémula respondeu que sim, que efetivamente era Affery, e uma velha surgiu por um momento à luz bruxuleante da lareira, antes de mergulhar de novo na escuridão.

— Contudo, posso ainda ocupar-me dos nossos interesses!-prosseguiu a senhora Clennam, apontando para uma cadeira de rodas, que se encontrava junto de uma grande escrivaninha -, e dou graças à Providência por esta mercê. Mas, para um domingo, já se falou demasiado em negócios.

Na mesinha achavam-se alguns livros, o seu lenço, as lunetas, assim como um relógio antigo, que mãe e filho fitaram ao mesmo tempo.

— Vejo, minha mãe, que recebeu a encomenda que lhe mandei depois da morte do meu pai. Este relógio foi a sua maior preocupação e era seu desejo que eu o fizesse chegar-lhe às mãos.

— Guardo-o como uma recordação do seu pai.

— À hora da morte, só exprimia este desejo: quase sem forças para o agarrar, murmurou com dificuldade: "Para a tua mãe". E julguei que estava ainda a delirar, porque o vi tentar abrir a caixa.

— E não delirava?

— Não, estava perfeitamente lúcido. Após a sua morte, eu próprio abri o relógio, pensando encontrar no interior qualquer recordação, mas só continha a tampa, de seda bordada a pérolas, que a senhora decerto viu.

A senhora Clennam abanou a cabeça e repetiu:

— Para um domingo, já falámos demasiado em negócios.

Depois, chamou:

— Affery, são nove horas!

A velha voltou a aparecer e retirou a mesa, trazendo em seguida um tabuleiro com biscoitos e manteiga, e, quase imediatamente, apareceu o velho, trazendo uma garrafa de vinho do Porto, limão e especiarias, com os quais preparou um grogue quente e perfumado. A doente, depois de acabar a sua merenda, pôs as lunetas e, lendo em voz aterradora por um dos livros, orou pela destruição de todos os seus inimigos. Depois estendeu a mão ao filho:

— Boa noite, Arthur. A Affery vai tratar de si. Cuidado com a minha mão, ela é sensível.

Ele tocou-lhe ao de leve na mão: a mãe não poria entre os dois maior distância se vestisse uma couraça. E seguiu os dois criados pelas escadas.

Affery, quando voltaram, os dois, à sala de jantar, perguntou-lhe se queria cear.

— Não, Affery, já comi.

— Então beba qualquer coisa, um cálice de vinho do Porto.

Também recusou.

— Arthur - sussurrou ela, baixando a voz -lá porque eles me metem medo, não é razão para o senhor também ficar aterrorizado. Metade da fortuna pertence-lhe, não é verdade?

— Sim, sim.

— Então, não se deixe intimidar. O senhor é inteligente, resista-lhes. Ela é terrivelmente maldosa, sabe-o bem; e o meu marido, Jeremy Flintwitch, também é ruim, olá se é! E ele não a leva à certa.

Os passos arrastados do velho Jeremy obrigaram-na a refugiar-se na extremidade da sala.

— Que estás tu aí a fazer, Affery? - perguntou ele em voz esganiçada. - Vai lá fazer a cama do menino Arthur. E mexe-te!

Tinha o pescoço tão torcido que as pontas do lenço palpitavam sob uma das orelhas dir-se-ia um enforcado passeando-se com a sua corda.

Arthur seguiu Affery pelas escadas, que cheiravam a mofo, até ao último andar da casa. A grande mansarda onde entraram era ainda mais fria e mais sinistra do que as outras dependências, atulhadas de objetos desirmanados e partidos. Arthur foi abrir a janela e contemplou o céu avermelhado por sobre uma floresta de velhas chaminés enegrecidas.

— Affery - inquiriu, virando-se -, quem era aquela rapariga que estava no quarto de minha mãe?

— Que rapariga - perguntou, por sua vez, Afferry num tom bastante agudo.

— Tenho a certeza de que era uma rapariga a pessoa que avistei, junto de si, quase escondida no escuro.

— Ah, ela é A Pequena Dorrit! Mais um dos caprichos da sua mãe! Sabe Deus porque se interessou por aquela rapariga! Mas diga-me, Arthur, esqueceu-se da sua antiga namorada? É rica e viúva, podia agora casar com ela!

Que imagens a senhora Flintwitch acabara, de repente, de evocar: As de dois garotos apaixonados Flora e Arthur, que os pais e o dinheiro haviam separado, muitos anos atrás. Nessa altura, ele era tão jovem e tinha tantas esperanças. Sonhou e à imagem longínqua de Flora, o seu primeiro amor, veio lentamente sobrepor-se a da jovem que conhecera umas semanas antes em Marselha, a linda Cherry Meagles, cuja semelhança, real ou imaginária, com Flora suscitara nele um interesse surpreendente. Debruçou-se de novo à janela, o olhar virado para o céu em fogo e ali ficou por muito tempo, imerso nos seus devaneios.

Quando a senhora Flintwitch sonhava, não era como Arthur, de olhos abertos. E nessa noite, porém, teve um sonho bastante estranho e, sobretudo, muito real. Tão nítido que se parecia mais com a realidade do que com um sonho.

O quarto de dormir do casal Flintwitch situava-se muito próximo dos aposentos da senhora Clennam. Para se ter acesso a estes últimos, desciam-se dois ou três degraus do outro lado da escada, de modo que Affery só tinha que dar alguns passos, quando a senhora Clennam chamava por ela. Sendo assim, depois de ter cuidado da patroa, foi, como de costume, deitar-se, enquanto o marido, coisa curiosa, não fora ainda para o quarto conjugal.

Algumas horas mais tarde, a meio da noite, pareceu-lhe que acordava e que verificava encontrar-se a cama sempre vazia. No seu sonho levantou-se, então, espantada, e desceu as escadas, tendo às apalpadelas chegado ao vestíbulo, mergulhado na escuridão, avistou luz pela frincha da porta de um pequeno quarto que nunca era aberto e aproximou-se, descalça, em bicos de pés; a cena que julgou ver era tão surpreendente, que ficou ali especada, sentindo-se sufocar: havia dois Jeremy Flintwitch, sentados um em frente do outro, o primeiro completamente desperto e olhando encolerizado para o segundo, que ressonava numa cadeira. O Jeremy acordado, em quem imediatamente reconheceu o marido, tal era o seu mau-humor, pegou nas tenazes que estavam na lareira e desferiu uma pancada feroz no estômago do outro.

— O que é isto? O que se passa? Onde estou? - gritou o segundo Jeremy, em sobressalto.

O companheiro fez-lhe um gesto ameaçador, para o obrigar a calar-se.

— Há duas horas que dormes! Pega na tua capa, no teu chapéu, no teu cofre e põe-te a mexer!

— Mais um copinho de vinho do Porto antes de me ir - gemeu o sósia, espreguiçando-se -, tu prometeste, não te esqueças!

— Toma, bebe-o depressa e oxalá que sufoques!

— À tua!

O sósia esvaziou o copo com ar satisfeito e acabou de se vestir. Depois, pegou numa caixa de ferro que se achava sobre a mesa e colocou-a debaixo do braço. Jeremy observava o seu duplo com inquietação: certificou-se de que ele se aguentava de pé, que segurava firmemente no cofre e recomendou-lhe que o vigiasse com mais cuidado, até, do que a sua própria vida. Depois, dirigiu-se cautelosamente para a porta, a fim de lha abrir. Affery, que previra este gesto, encontrava- se já nas escadas, entrevendo, pela fresta do batente, o céu pontilhado de estrelas.

Foi então que o sonho se tornou verdadeiramente muito bizarro: Affery teve tanto medo de Jeremy, que lhe faltaram as forças para voltar ao quarto e ali ficou, como que pregada ao chão, até que o marido, que subia, segurando uma vela, deu pela sua presença. Olhou-a fixamente, sem dizer palavra, e continuou a avançar; ela, como que hipnotizada, pôs-se então a recuar lentamente. E foi assim que, um a recuar e outro a avançar, chegaram ao quarto. Logo que fechou a porta, Jeremy pegou na mulher pelo pescoço e pôs-se a abaná-la com tanta violência, que ela ficou arroxeada:

— Ora bem, Affery, ó mulher - gritou o senhor Flintwitch. - Em que estás tu a sonhar? Acorda, acorda! Deste agora em sonâmbula? Adormeci lá em baixo e, em pleno pesadelo, venho dar contigo acordada! Affery, mulher - acrescentou com um esgar -, se volto a encontrar- te a sonhar desta maneira, isso quer dizer que precisas de um bom remédio E nem imaginas a dose que apanharias, minha velha, nem imaginas.

Na manhã de segunda-feira, quando os campanários da City deram as nove horas, Jeremy fez rolar a poltrona da senhora Clennam para junto da grande escrivaninha e deixou passar Arthur, que entrava.

— Sente-se melhor esta manhã, minha mãe?

— Nunca mais me sentirei melhor - retorquiu ela com uma certa satisfação amarga-, mas sei-o e suporto o meu destino.

De rosto sereno e impenetrável, arrumou alguns papéis.

— Posso-lhe falar dos nossos negócios, minha mãe, sente-se com disposição para isso? - perguntou Arthur.

— Se me sinto com disposição - exclamou ela. - Há mais de um ano que o seu pai faleceu e, a partir dessa altura, fiquei ao seu dispor, aguardando a sua vontade!

— Antes de poder deixar a China, tive muitos problemas a resolver; e depois viajei um pouco, para repousar e descontrair-me.

— Repousar e descontrair-se! - a mãe virou-se para ele como se não tivesse compreendido, pois relanceou o quarto onde estava encerrada com ar escandalizado.

— Além disso, minha mãe, como a senhora era a única testamenteira e como dirigia a empresa, só me restava aguardar que tudo ficasse resolvido de acordo com os seus desejos.

— As contas estão feitas e todos os recibos verificados. Pode examiná-los quando quiser - respondeu ela.

— É inútil; visto ter sido a senhora a resolver tudo. Posso continuar, minha mãe! A senhora sabe que, de há alguns anos para cá, o nosso negócio entrou em declínio. há quarenta anos, esta casa fervilhava de atividade e, hoje, não é nada. Fazemos as nossas expedições por intermédio de outros e.

— Julgo adivinhar o que vai dizer - interrompeu ela. - Deus me livre de me queixar das amargas provações que Ele me envia. Mereci-as, porque pequei, e aceito-as.

— Como compreendeu, minha mãe, decidi retirar-me dos negócios. Não tentarei convencê-la a fazer o mesmo, seria tempo perdido, receio eu. Tentarei simplesmente obter a sua indulgência, caso tenha exercido sobre a senhora alguma influência, por mínima que seja; minha mãe, durante quarenta anos curvei-me à sua vontade e às regras que me impôs. Isso sem qualquer proveito ou prazer; mas curvei- me, lembre- se disso!

Desgraçado daquele que tivesse procurado clemência no olhar inexorável daquela mulher Como lhe era necessária, a sua. religião de tristeza e de trevas, quebradas por acessos de maldição, de vingança e de destruição!

— Acabou, Arthur, ou tem ainda algo a acrescentar?

— Há ainda outra coisa, minha mãe: algo que há meses me persegue dia e noite e cuja alusão me é ainda mais penosa visto dizer respeito a todos nós.

— A todos nós Então, a quem?

— À senhora, a mim, ao meu falecido pai. Conheceu-o muito melhor do que eu; a senhora era, mais enérgica e dominava-o; foi a senhora quem decidiu mandá-lo para a China dirigir os nossos negócios e manter-me aqui até aos vinte anos, antes de me deixar ir ter com ele.

— Ora bem! Vá direito ao assunto!

Ele baixou a voz e continuou, muito perturbado:

— Queria perguntar-lhe se alguma vez suspeitou. A esta palavra, ela virou-se para o filho e franziu os sobrolhos. — Suspeitou de que o meu pai teria sido torturado por algum secreto remorso?

— Não compreendo. Que mistérios.

— Não teria causado a alguém qualquer dano que não teve possibilidade de reparar?

Ela olhou-o com cólera, mas sem responder.

— Se esta idéia nunca lhe ocorreu, o que eu disse deve parecer-lhe medonho. Mas tal suspeita obceca-me. Eu estava lá, compreende, e li-lhe no rosto, quando me confiou o relógio que lhe enviava como recordação, que tentara, em vão, escrever algumas palavras para si! Em nome do céu, a senhora, que há quarenta anos conhece todos os nossos assuntos, ajude-me a desvendar este mistério!

Ela mantinha-se sempre silenciosa e recuou lentamente para o fundo da cadeira, qual sombra feroz.

— Se é preciso reparar ou restituir, façamo-lo depressa! E para isso utilizaremos o dinheiro que me cabe e do qual não disporei se não me pertencer com plena justiça!

Junto da escrivaninha pendia o cordão de uma sineta; bruscamente, fez rolar a poltrona para trás e puxou-o com violência. Uma jovem acorreu imediatamente, muito assustada.

— Chame o Flintwitch!

Um instante mais tarde, aparecia o velho:

— Com que então, já a discutirem um com o outro!

— Flintwitch, olhe para o meu filho! Mal entrou em casa ei-lo a difamar a memória do pai em presença da mãe! Pede- me que lhe devasse o passado, receando que os bens terrenos, que com tanto esforço adquirimos, sejam produto da desonestidade e pergunta-me a quem será necessário restituí-los! Viaja, diverte-se e depois atreve-se a falar de reparação! Será que há quinze anos não pago já pelos meus pecados! Se volta a falar disso, Arthur, renegá-lo-ei, expulsá-lo-ei para sempre da minha presença E se, apesar de tudo, ousasse voltar, quando eu me sentisse a morrer, o meu corpo, à sua aproximação, sangraria.

Calou-se, em parte acalmada por estas palavras proféticas.

— Visto que me mandou chamar, poderei, porventura, saber a razão de tudo isto? - perguntou Jeremy.

— Pergunte à minha mãe: o que eu disse dirigia-se exclusivamente a ela.

— Oh! Oh! Muito bem! Se bem estou a compreender, o Arthur suspeitou do pai, não é verdade?

— Basta, não falemos mais disso - atalhou a senhora Clennam.

— Sim, sim, mas só mais uma coisa - insistiu o velho - disse-lhe que não havia razão para suspeitar do pai?

— Digo-lho agora.

— Ah, agora Bom. E eu repito-lhe, Arthur, para que fique bem claro, não tem qualquer fundamento suspeitar do seu pai. Bom. Também já o informou da sua decisão quanto à empresa?

— Ele abandona os negócios.

— A favor de.

— De minha mãe, evidentemente – concluiu Arthur.

— Nesta desilusão que sofri, o meu único consolo - replicou a senhora Clennam, após uma breve pausa - será recompensar um velho servidor. O comandante abandona o navio, Jeremy, mas continuaremos os dois, ou afundar-nos-emos com ele.

Jeremy agradeceu e asseverou-lhe a sua eterna dedicação, depois olhou para o relógio e tocou a sineta.

— Onze horas. Hora das suas ostras. Mas a senhora Clennam recusou-se a tocar naquele prato, todavia muito apetitoso, acrescentando sem dúvida este sacrifício ao seu rol no Grande Livro da Eternidade.

A jovem que respondera ao chamamento e trouxera as ostras era a que Arthur entrevira, na véspera, no escuro. Devia ter vinte e dois anos, embora o rosto deixasse transparecer mais maturidade e preocupações do que seria natural naquela idade. Todavia, era pequena de estatura e tão franzina no seu apertado vestido, que a teríamos, na verdade, tomado por uma criança.

A Pequena Dorrit era costureira ao dia: por um salário irrisório, trabalhava das oito horas da manhã às oito horas da noite. O que ela fazia nesse intervalo, era um mistério. Serviam-lhe a refeição, que tomava sozinha, pois pretextava sempre qualquer trabalho a terminar a fim de jantar isolada. Para costurar, instalava-se em recantos tão afastados e escapulia-se com tanta ligeireza, quando com ela cruzavam nas escadas, que mal se tinha tempo de observar o seu rosto pálido, diáfano e agitado, onde sobressaíam lindos olhos cor de avelã. De cabeça delicadamente inclinada, uma configuração frágil, umas mãozinhas incansáveis, assim era a Pequena Dorrit no seu trabalho.

No decurso daquele dia, Arthur percorreu a casa de alto a baixo: achou-a tão triste, tão lúgubre e tão poeirenta, que pegou nas malas e decidiu instalar-se no hotel. Contudo, vinha todos os dias, para verificar contas e papéis. Por vezes, encontrava a Pequena Dorrit e a sua curiosidade em relação à jovem era cada vez maior.

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A classical book, by the one and only Charles Dickens! (I only made this to make it easier to read on screen)