Os Guerreiros do Destino

By felipe_gcz

2K 951 530

🧙 RPG 🦖 Batalhas ✨ Magia 💥 Aventura Seis improváveis companheiros são unidos pelo destino, aventurando-se... More

Notas e Avisos
Personagens
1 - As engrenagens começaram a rodar
2 - Um teste de habilidade
3 - Uma lenda viva
4 - A dura realidade
5 - A cidade que nunca acorda
6 - Uma incursão perigosa
7 - A queda
8 - O Cristalário Colorido
9 - A manipulação
10 - Dunascas
11 - Custe o que custar
13 - Uma nova habilidade

12 - Os Cristais do Poder

95 39 27
By felipe_gcz

A sala de controle emitia um zumbido contínuo, hipnotizante. Um difusor emitia um vapor aromático, com perfume de bambu ou eucalipto, difícil de discernir. Baruc estava sentado à mesa, com seu sobretudo apoiado nas costas de sua cadeira de couro, vestido com uma camisa escura e calças pretas. Ele segurava uma caneta com uma mão e esfregava o rosto com a outra. Suas linhas de expressões, mais marcadas ultimamente, refletiam sua idade avançada e seu cansaço. Ele recolocou seus óculos de leitura, analisando os dados das planilhas abertas em uma das três telas à sua frente. Por um segundo, tudo parecia embaralhado e sem sentido, mas logo seu foco retornou e ele voltou ao trabalho.

Não demorou muito para interromper o serviço novamente, pois uma batida na porta o chamou. Pelas câmeras, ele viu Ariom, seu braço direito, olhando diretamente para a tela, como se o encarasse e, pela sua expressão, a conversa não seria agradável. Baruc respirou fundo. Ele definitivamente não estava com paciência para discutir com empregados no momento. Aquela guerra, além de estar sugando seus recursos, também estava esgotando-o mentalmente. "Por que aqueles Reptoides não se entregam logo e me dão o que eu preciso?", pensou Baruc. Sem querer perder mais tempo, ele apertou um botão em sua mesa, abrindo a porta.

— Baruc, eu preciso conversar com você, — disse Ariom, antes mesmo de pisar na sala. O empresário virou sua cadeira giratória, encarando o rapaz, tentando manter uma expressão simpática no rosto, mas falhando miseravelmente.

— Sim, Ariom, o que foi? — O empresário cruzou uma das pernas, colocando suas mãos sobrepostas sobre seu colo.

O soldado titubeou antes de falar, parecendo ter mudado de ideia no último momento, ao se ver frente a frente com seu mentor. Mesmo assim, ele disse, com os lábios comprimidos:

— Essa guerra, senhor. Odurno e Guslig não param de vir atrás de informações. Os outros soldados também ficam me perguntando, querendo saber o que está acontecendo no outro continente. A gente precisa resolver isso de uma vez, as pessoas estão curiosas.

Baruc suspirou ruidosamente antes de responder, desviando os olhos, tentando se manter civil:

— Primeiramente, Guslig e Odurno são dois idiotas que só pensam em dinheiro. Se eles vierem encher o saco de novo, fala que tudo está correndo como o planejado e pergunta se estão precisando que o pagamento seja adiantado. Em segundo lugar, cada soldado sabe exatamente aquilo que ele precisa saber. Você deveria entender isso mais que qualquer outro.

Ariom engoliu em seco, raspando seus dentes e contraindo seu maxilar. Era visível seu desconforto.

— Então me manda pra lá, junto da minha equipe! Em alguns dias eu já extermino todos os Reptoides e trago aquele velho pra você!

O empresário só fechou seus olhos e balançou a cabeça, entretido. Depois de abrir um sorriso discreto, ele disse:

— Ah, Ariom, Ariom. Não é assim que as coisas funcionam. Você é muito mais útil pra mim aqui do que lá, você sabe disso, mas talvez realmente seja a hora de te enviar pra lá, — e Baruc parou, pensando por uns segundos, com a mão no queixo. Em seguida, ele continuou: — Inclusive, falando nisso, tem um serviço pra você e seu time fazerem pra mim. Foi até bom você ter vindo aqui. — Baruc se virou na cadeira, analisando suas anotações e os computadores. Depois de apertar algumas teclas e deslizar o dedo sobre as telas, alguns papéis foram impressos em uma máquina próxima. — Pega esses documentos pra mim, por favor. Esse é o próximo alvo que preciso que eliminem. E façam parecer que foi morte natural. Não quero que chamem muita atenção.

Sem nem questionar qual seria o motivo ou quem seria aquela pessoa, Ariom pegou os papéis, ativando seu modo profissional. Sua postura havia mudado e seus movimentos pareciam precisos e mecânicos. Ele despediu-se de Baruc e já estava saindo, quando o homem mais velho disse:

— Não era sobre a guerra que você ia falar, não é?

Ariom parou no lugar, de costas para Baruc, surpreso. O soldado voltou ao normal, curvando um pouco os ombros, passando a mão por seus cabelos espetados. Lentamente, virou-se para o outro homem, sua boca entreaberta, calculando as palavras. Depois de uns segundos desconfortáveis, ele disse:

— Por que você não deixou a gente ir atrás do Hiner aquele dia do ataque no Cristalário? Ele estava bem ali! Era só mandar meu time e uns Magos pra analisar os suspeitos e a gente achava aquele filho da mãe e matava ele!

Ariom tinha começado calmo, mas terminou gritando e ofegante, descontrolado de raiva. Sua boca espumava, acumulando saliva no canto dos lábios, dando-lhe uma aparência de cão raivoso. Baruc, no entanto, estava impassível, encarando seu subordinado com uma expressão neutra. Por dentro, ele estava até achando um pouco de graça, mas achou que não seria adequado tratar Ariom com desrespeito. Ele se pôs em pé, fitando os olhos de Ariom, fazendo-o desviar o olhar. O soldado era um Lutador mais alto e mais forte que seu chefe, mas, mesmo assim, sentiu-se subjugado pelo olhar dominante de Baruc.

— Você precisa trabalhar isso na sua mente, Ariom. Você sabe que o Hiner é mais valioso pra mim vivo do que morto. — O rapaz mais jovem ia começar a falar algo, mas Baruc continuou: — Sua raiva, por mais que compreensível, só vai nos atrapalhar. Deixe o passado no passado.

— Mas, senhor... — Ariom disse, tremendo, medindo as palavras. — Se não fosse pelo Hiner, a gente nem ia precisar dessa guerra. Ele roubou a profecia e... Foi tudo por minha culpa.

— Ah, rapaz. Deixa de besteira. Eu até hoje fico impressionado na audácia do Hiner, invadindo a minha sala e levando a única coisa no mundo que todo meu dinheiro não pode comprar. — Baruc disse, soltando um riso com um misto de admiração e indignação. — Você não tinha como imaginar que ele ia fazer isso, sem contar que você era bem novo também.

— Mas eu tinha recebido ordens de impedir ele, só que eu não fui capaz. Ele me pegou desprevenido. Eu... Eu odeio aquele desgraçado!

— Calma, calma, Ariom. — Baruc se aproximou e segurou o rapaz pelos ombros, levemente comovido pela raiva que o soldado reprimiu por tanto tempo. — Você tem que levar tudo em consideração. Ele é um Bruxo e você um Lutador. Se ele age primeiro, você não tem mesmo o que fazer. É estratégia básica de batalha. Além disso, é bem difícil atacar um amigo de infância, não é mesmo?

Ariom levantou os olhos, encarando Baruc, ainda envergonhado, porém contente em saber que seu chefe o compreendia. A culpa havia se transformado em ódio e repulsa no coração de Ariom, que só conseguia pensar em se vingar de seu antigo colega. Baruc continuou consolando o rapaz:

— E você tem que lembrar que vocês dois eram os melhores soldados da turma na época. Se o Hiner não tivesse nos abandonado, você e ele juntos que iriam comandar meu exército.

Entre gemidos e grunhidos, Hadria acordou. Ela estava de bruços, esforçando-se para se levantar, empurrando o chão, tentando erguer o tronco. A dor que sentia em seu corpo inteiro era forte, mas não se comparava à tontura e confusão mental que a impediam de pensar direito. Ela agia puramente por instinto, sem saber o motivo de suas ações. Por um segundo, ela achou que tinha ficado surda, mas aos poucos sua audição foi voltando, ouvindo ao longe um barulho de vento. Ela esfregou o rosto e conseguiu se sentar, usando algumas caixas que estavam por perto como apoio, suas costas sustentadas por alguma superfície fria e dura.

A Bruxa olhou seus arredores, tentando decifrar aquela bagunça. Pelo jeito, ela tinha permanecido no interior do avião, perto da porta traseira. Feliz por ter sobrevivido, ela focou em seus sinais vitais. Sua respiração era curta e ruidosa, controlando a quantidade de ar que entrava em seus pulmões, evitando qualquer movimento desnecessário de suas costelas. Ela testou suas articulações, conseguindo constatar que nenhum grande osso parecia quebrado, podendo se movimentar, mesmo que dolorosamente. Tudo isso, no entanto, demandou uma energia absurda, exaurindo-a. Hadria apoiou sua cabeça na parede e apagou.

Quando ela acordou novamente, não conseguia nem determinar quanto tempo passou desacordada. Ela sentia que não foi muito, mas não tinha como ter certeza. O sol estava brilhante, emitindo raios fortes sobre o teto destruído da aeronave, então ainda era dia. Sentindo que sua força havia se recuperado um pouco, Hadria se colocou sofridamente em pé, escorando-se no que podia. Ela caminhou mancando na direção do local onde antes ficava o motor, no centro da aeronave, que agora era apenas um buraco que se abria para a imensidão do deserto. A frente do avião tinha se separado do restante, parando sabe-se lá onde.

Aestus e Spes não estavam no interior das ruínas da aeronave. A garota Minati tentou chamar por eles, mas sua voz saía mais como um gemido do que como palavras. Conforme ela saía para o aberto, sua consciência ia se recobrando aos poucos. Ela analisou o estado em que estava. Suas roupas, por incrível que parecesse, estavam intactas. Sua saia, seu corsete, sua blusa e suas botas não apresentavam sequer um rasgo. Não estavam limpas, já que havia areia por toda parte, assim como em seu cabelo bagunçado, mas isso era o de menos.

Ao alcançar o lado externo, a luminosidade a cegou momentaneamente, fazendo-a levantar sua mão e proteger os olhos. Com uma expressão de dor em seu rosto, ela pôde encontrar pelo menos um de seus dois amigos. Aestus estava caído sobre a areia, não muito longe dali. Mas nem foi isso que mais chamou a atenção da garota. Um grande grupo de Reptoides, de diferentes Classes, estava reunido ali, observando tudo com olhares atentos. Eles usavam roupas marrons e bege, com tecidos esvoaçantes, que os camuflavam no cenário desértico. Spes estava sendo segurado por um deles, com sua cabeça coberta por um saco de tecido. Quando Hadria começou a levantar sua mão esquerda, um deles gritou:

— Materializa seu grimório e seus amigos morrem!

Sua voz era áspera e um pouco rouca, dando a impressão que sua garganta estava muito seca. Vários outros apontaram suas armas tanto para Hadria, quanto para seus dois companheiros. Pelo modo que eles falaram Aestus e Spes estavam vivos, deixando-a mais aliviada. A Bruxa, enfim, levantou as duas mãos, trêmula e fraca, em claro sinal de rendimento.

— Tira seu materializador e joga ele no chão! — O mesmo Reptoide ordenou.

Lentamente, a fim de não parecer ser uma ameaça e porque seu corpo todo doía, Hadria destravou o dispositivo de seu pulso, jogando-o no chão bem na sua frente. Ela até tentou pensar em algum modo de sair dali, mas não tinha como. Só esse movimento simples e lento havia sido torturante. Ela decidiu agir conforme ordenavam, tentando ganhar a confiança daquela raça tão assustadora.

— Isso, muito bom, — o Reptoide disse. — Agora vem andando pra cá, devagar e com as mãos pra cima.

Longe dali, Lithor também acordava de seu desmaio, porém menos debilitado que Hadria. Ele sentia como se seu corpo tivesse sido atropelado por um Lebretão, mas estava consciente. Deitado com a cara na areia, ao começar a se levantar, ele sentiu uma dor absurda em seu ombro direito, fazendo-o cair novamente no chão. Apoiando-se em seus cotovelos, o Magnor alcançou o local de onde originava a dor, retirando uma placa afiada de metal que havia perfurado sua pele e estava cravada em sua carne.

Uma onda de dor incapacitante percorreu todo seu corpo, fazendo-o grunhir e arfar pesadamente. Ele sentiu o sangue escorrer por seu braço, misturando-se à areia que o cobria parcialmente, criando uma massa marrom pegajosa. Mesmo assim, Lithor continuou se esforçando para se pôr em pé, rangendo seus dentes enquanto tentava estancar o sangramento. Desistir era algo que nem chegava a passar por sua mente.

Cambaleante e curvado, Lithor ficou em pé, encontrando-se perdido no meio do deserto. A alguns metros, era possível ver pedaços da aeronave em que fizeram a viagem para o antigo continente, com a cabine e as asas mais à frente. Caixas, equipamentos e contêineres estavam espalhados por sua volta, criando o cenário da catástrofe a qual, milagrosamente, eles haviam sobrevivido. Na verdade, não houve nenhum milagre, mas sim o poder absurdo de Spes que havia impedido um desastre maior.

O Magnor não conseguia entender como aquele pequeno Lagomorfo conseguiu essa façanha, protegendo todos de um acidente dessa magnitude. Mesmo assim, ele estava eternamente grato por, mais uma vez, ter sido salvo pelo Mago. Com a lembrança de seu amigo, Lithor foi trazido de volta à realidade, dando-se conta que precisava encontrar os outros.

Segurando seu ombro ferido, Lithor começou a andar vagarosamente. Cada passo que ele dava causava uma dor forte que irradiava por todo seu corpo. Por isso, seu progresso era lento, demandando muito esforço e energia. A alguns metros, no entanto, após subir uma pequena elevação na areia, Lithor encontrou Orkan caído de bruços.

O lugar onde o Ladino estava era como uma grande cratera, dando a impressão de que a areia estivesse sendo afunilada para um buraco lá embaixo. O Magnor pôde ver que o Humanoide estava vivo, pois se retorcia ruidosamente, tentando se mexer enquanto gemia. Porém, no estado em que se encontrava, Orkan não iria conseguir fazer muita coisa. Um pedaço relativamente grande de uma chapa metálica estava fincado nas costas do loiro, próximo às escápulas. Qualquer movimento que ele fazia era interrompido por um grunhido, mas mesmo assim ele não desistia de tentar sair dali. Lithor, o mais rápido que pôde, desceu até o Ladino para ajudá-lo.

— Orkan, sou eu, o Lithor. Eu tô indo te ajudar! — Ele disse, enquanto tentava não perder o equilíbrio e rolar até o fundo daquela depressão. Orkan nem conseguiu responder, mas parou de se mexer, parecendo aliviado.

O grande Magnor alcançou seu amigo e, com grande esforço, conseguiu se ajoelhar a seu lado. O sangue já havia escorrido por todo o lado direito do corpo de Lithor, extravasando profusamente de seu ferimento. Ele tinha que fazer algo a respeito disso logo, mas a situação de Orkan era mais drástica.

— Olha, eu vou pedir pra você ficar calmo, tá? — Lithor disse, tentando lembrar como Spes falava enquanto atendia os pacientes na clínica improvisada em Dunascas. — Tem um pedaço de metal preso nas suas costas, daí que tá vindo essa dor. Eu vou tirar ele pra você, então se prepara. Vamos lá!

Lithor segurou a placa metálica com suas duas mãos, respirou fundo e, em um movimento ligeiro e curto, arrancou-o das costas de Orkan. O Ladino puxou ruidosamente o ar, erguendo sua cabeça e fechando os olhos, sentindo uma inexplicável mistura de muita dor e alívio. Ele imediatamente tentou se levantar, mas percebeu que ainda não conseguia.

— Calma, calma! Não se mexe! Eu vou tentar resolver isso! — Lithor exclamou, com uma voz mais aguda falhando por conta do medo e preocupação. Assim que o objeto foi removido, uma hemorragia intensa começou no local. Era muito sangue. Em pouco tempo, Orkan entraria em choque hipovolêmico e morreria. Lithor precisava fazer algo.

Tentando se lembrar das técnicas e habilidades que os Lutadores possuíam, o Magnor fechou seus olhos. Ele sabia que tinha algo que podia fazer, mas a respiração curta e rápida de Orkan não o ajudava a se concentrar. Seu coração batia acelerado, fazendo-o entrar em uma espiral de medo e ansiedade. Quando Lithor estava quase cedendo ao desespero e desistindo, aceitando o fato que seu amigo morreria em suas mãos, ele conseguiu se conectar aos seus poderes.

O Lutador colocou uma mão em seu peito e a outra nas costas de Orkan. Ele sentia os batimentos cardíacos erráticos do rapaz ferido, como um pedido de ajuda em um código tétrico. Lithor puxou o ar quente do deserto, enchendo seus pulmões, criando uma aura alaranjada ao seu redor. Ao expirar, a aura desceu por seu braço, envolvendo também todo o corpo de Orkan. Lithor sentiu os corações entrarem em sincronia, assim como a respiração, profunda e uniforme.

Quando a luz sutil que os envolvia se dissipou, tanto o ferimento das costas de Orkan quanto o do ombro de Lithor haviam parado de sangrar. A pele ainda estava com um corte aberto, mas bem menor, sem oferecer qualquer risco de morte. Orkan começou a se levantar, aceitando a ajuda de Lithor.

— Valeu, cara. Eu achei que minha hora tinha chegado, — disse Orkan, tentando ficar com as costas retas.

O Lutador ajudou seu amigo a se manter em pé, começando vagarosamente a enfrentar a íngreme subida para sair daquele lugar. Orkan estava em um estado deplorável, sua camisa havia se rasgado bastante, deixando à mostra seu colar com o cristal verde sobre seu tórax cheio de escoriações.

— Desculpa, o meu poder de cura não chega perto do de Spes, é só pra emergência. Eu fiz o que pude.

— Lithor, você foi demais, mano! — Orkan disse, tentando olhar para cima, nos olhos do Magnor, mas grunhindo de dor, desistindo. Quando ia soltar um comentário irônico, tirando sarro da situação deles, algo o fez parar. O Ladino aguçou seus sentidos, com seus olhos semicerrados. — Tem alguém observando a gente.

Os dois pararam e olharam em volta. Sentindo o perigo, Lithor agarrou Orkan pela cintura e, com toda sua força, saltou, saindo daquele buraco. No mesmo instante, um vulto passou raspando por eles, aterrissando próximo de onde os dois estavam milésimos de segundos antes, cravando uma espada no chão.

Lithor, enfraquecido, caiu sobre a areia escaldante, derrubando Orkan ruidosamente. Eles se levantaram, cambaleantes, e recuaram, olhando atentamente para o local onde estavam antes. Uma figura misteriosa saiu dali. A pessoa usava vestes largas, de tecidos grossos, cobrindo todo seu corpo. Uma camisa branca de manga comprida e uma calça marrom, amarrada com um tecido vermelho, do mesmo tom do pano enrolado sobre sua cabeça e rosto. Somente seus olhos amarelos de Reptoide eram visíveis e eles pareciam ferozes.

Mesmo sem estar em condições, Lithor levantou seus punhos e Orkan materializou suas adagas, temendo um embate. Seu oponente empunhava um escudo circular na mão esquerda e uma espada curta na outra. Eles se encararam por um tempo, cada um esperando o outro tomar iniciativa. O inimigo parecia incerto do que fazer, observando os outros dois com atenção. Lithor sabia que, se fossem realmente lutar, provavelmente perderiam, ainda mais se o inimigo tivesse uma classe forte como Cavaleiro, mas ele não iria se entregar.

Orkan agiu primeiro, arremessando debilmente uma adaga, sendo bloqueada facilmente pelo Reptoide. Lithor, aproveitando a oportunidade, avançou e desferiu um soco, que foi defendido pelo escudo de seu oponente. O impacto contra o metal causou um barulho alto, jogando o Lutador para trás, que caiu de costas atrapalhadamente aos pés de Orkan. O Ladino estava curvado, mas ainda empunhando suas armas, arfando.

Um leve tremor no solo surpreendeu Orkan e Lithor, que olharam ao redor amedrontados. Nisso, o Reptoide avançou na direção dos dois, correndo agilmente. Preparando-se para o ataque, Lithor cruzou os braços na frente do rosto, posicionando-se em frente a Orkan. Nesse momento, uma Criatura gigantesca surgiu atrás dos dois amigos, emergindo da areia do nada. Eles só conseguiram enxergar uma bocarra imensa se aproximando, pronta para devorá-los.

No entanto, o Reptoide tinha antecipado esse ataque, pulando por cima dos alvos da Criatura e pondo seu escudo à frente do corpo. Uma parede quase invisível, transparente, se formou, parecendo cruzar todo o deserto, até onde o olho alcançava. A Criatura enorme bateu contra a barreira e, imediatamente, se enterrou novamente na areia, sumindo na mesma velocidade em que apareceu.

— Vamos embora, aqui não é seguro! — O Reptoide disse, com sua voz abafada pelo tecido sobre sua boca. Ele jogou duas poções de cura e cantis de água para Lithor e começou a andar apressadamente na direção dos destroços da aeronave. Ele retirou um objeto de suas vestes e apertou um botão, falando em seguida. — Scula, eu achei a cabine do avião. Tem dois sobreviventes. Eu vou tentar pegar o que eu consigo e já volto pra base.

— Mas aí não é o território das Formigas-leão? Toma cuidado! — Uma voz metálica e cheia de estática saiu do comunicador do Reptoide. Lithor observava a conversa com curiosidade, depois de ter tomado sua poção, sentindo-se mais disposto, mas ainda sem saber qual a real intenção daquela figura à sua frente.

— Pode deixar, eu...

Nesse momento, outro tremor de terra ocorreu no local, mas mais forte que o anterior. Lithor se aproximou de Orkan, que também havia bebido sua poção, mas ainda estava enfraquecido. Seus ferimentos eram muito graves para serem curados com somente uma dose. Por isso, o Lutador estava pronto para proteger seu colega caso fosse necessário.

Um grande redemoinho de areia surgiu no lugar onde a cabine da aeronave estava. A estrutura metálica afundou rapidamente, sumindo como se tivesse sido jogada no mar. O terremoto cessou-se logo em seguida, tão subitamente quanto havia começado.

— Scula, abortar missão, — o Reptoide disse em seu comunicador. — Esses filhos da puta enterraram a cabine. Estou voltando.

— É, não dá pra bobear perto das Formigas-leão, elas pegam tudo o que cai na região, — respondeu a voz metálica, soando decepcionada.

O Reptoide guardou seu comunicador e encarou os outros dois, que ainda estavam confusos e com medo. Por mais que aquela pessoa aleatória os tenha salvado, eles não sabiam a real intenção dela. Querendo ou não, era um Reptoide ali, uma raça misteriosa em um continente desconhecido. Parecendo ler a mente deles, a figura estranha começou a desenrolar o pano de sua cabeça, mostrando seu rosto para tentar se comunicar melhor.

O Reptoide que eles assumiram ser um homem, na verdade, era uma mulher, de feições marcantes e cenho fechado, mas bonita. Sua pele sutilmente escamosa tinha um tom café com leite. Seu rosto era estreito, com maçãs do rosto bem definidas e lábios finos. Mesmo que seu olhar parecesse sério e objetivo, não era hostil. Ela colocou as mãos na cintura e disse:

— A gente precisa sair daqui logo. Se as Formigas-leão não devorarem a gente, os soldados do Baruc podem aparecer a qualquer momento. E eu não tô com paciência pra brigar com um monte de idiotas que sofreram lavagem cerebral.

Lithor e Orkan concordaram com a cabeça, ainda em silêncio, sem saber bem o que fazer. Ela continuou:

— Vocês estão bem perdidos, né? Tudo bem, eu entendo. Pelos cristais que vocês têm aí, já percebi que vocês são os Guerreiros do Destino. Eu estava esperando por vocês. Meu nome é Anala. Também sou uma Guerreira. — E ela apontou para seu escudo. Só nesse momento, Lithor percebeu um cristal preso bem no meio do objeto, pulsando no mesmo ritmo do cristal em sua pulseira.

Sentindo-se mais calmo e aliviado, Lithor soltou um suspiro e abriu um sorriso, percebendo que estavam, afinal, no caminho certo. Orkan ainda estava ressabiado, mas baixou a guarda, resignado. Ela os examinou e, depois de uns segundos, perguntou:

— E cadê o resto da equipe? Era pra ter mais de vocês.

Ao ouvir isso, o coração de Lithor bateu mais forte. Ele pensou em Spes e ficou extremamente preocupado, imaginando como ele estaria. Hadria e Aestus também passaram por sua mente, mas o Lagomorfo foi seu primeiro pensamento. Lithor conseguiu visualizar seus olhos verdes sempre alegres e seus cabelos de fogo. Em pouco tempo, aquele Mago da Luz tinha se tornado tão importante para Lithor. Sua vontade era abraçá-lo e protegê-lo a todo momento, mesmo que seja Spes que geralmente protegesse todos os outros, como fizera algumas horas antes.

— O avião se partiu no meio durante o acidente, — disse Orkan, sério. — Eles ficaram na outra metade que deve ter caído pra lá, — e ele apontou para uma nuvem de fumaça que havia se formado.

— Ah, sim. Uma outra equipe foi lá averiguar. Eles já devem até ter voltado, parece ter sido mais perto da nossa base.

— Será que eles estão bem? — Lithor inquiriu, ansioso.

— Lithor, eles são a menor das suas preocupações, sério, — Orkan disse, debochado. — Eles estão com o Spes, que foi quem protegeu a gente da queda. Relaxa.

— Se vocês sobreviveram, eles também devem ter resistido ao acidente, — Anala falou, tentando tranquilizar o Lutador. — Me sigam, vamos encontrar eles. E vocês, como se chamam?

O Magnor, mais calmo, se aproximou de Anala, empolgado.

— Eu sou Lithor e esse é Orkan. Muito obrigado por ter salvado a gente e desculpa por ter te atacado antes.

— Sem problemas, — Anala disse, começando o caminho de volta para a base. — Eu sou uma Guardiã, seria bem difícil vocês conseguirem causar qualquer dano que fosse, minha defesa é muito forte. E eu já esperava que vocês fossem me atacar quando me vissem. É o que todo mundo faz quando chega aqui e vê um Reptoide.

— Desculpa, eu só conheci um Reptoide na vida e ele não estava em condições de falar muita coisa. Eu não sabia como agir, — Lithor disse, envergonhado.

— Você conheceu um Reptoide? Homem? Quem é?

— Sim, um Reptoide que apareceu uns anos atrás em Dunascas, onde eu moro. O nome dele é Hayeh.

Ao ouvir isso, Anala parou no lugar. Seu corpo todo se contraiu e ela parecia em choque. Lithor ficou sem saber o que fazer, perguntando se estava tudo bem. A Reptoide falou baixinho:

— Hayeh sobreviveu à viagem. Eu falei pra ele não ir, mas aquele maluco foi mesmo assim. Como ele tá?

— Infelizmente, ele não tá bem. A viagem deve ter sido bem difícil, porque a gente encontrou ele na praia, com uns destroços de um barco. Acho que ele ficou muitos dias à deriva e isso afetou a cabeça dele. Desculpa.

Anala balançou a cabeça, incrédula. Aquela notícia parecia ter a pego de surpresa. Ela respirou fundo e continuou a caminhada, dizendo:

— Hayeh é meu irmão. Ele foi pro outro continente atrás... — E ela titubeou. — Atrás de informações. Ele queria pedir também que parassem os ataques ao nosso povo, mas nunca mais ouvimos falar dele. Eu tinha certeza que ele tinha morrido. Não sei se fico feliz ou triste com essa notícia.

Eles continuaram o percurso em silêncio por um tempo. Orkan ainda estava sentindo dores, permanecendo calado, poupando suas forças. Lithor, no entanto, estava curioso para saber mais sobre os Reptoides. Ele esperou um tempo para que Anala pudesse absorver essa notícia sobre seu irmão e depois perguntou:

— Aonde a gente tá indo?

— Nossa base atual. Com essa guerra em curso, a gente não consegue se estabelecer em um lugar fixo, então a gente tá sempre em movimento, tentando fugir dos ataques e despistar os soldados. Por enquanto, está funcionando.

— E como você sabia que eu e o Orkan éramos Guerreiros do Destino? Como você sabia que a gente ia chegar?

Anala olhou para o rosto curioso de Lithor, sentindo sua inocência e bondade, mas achou melhor segurar algumas informações. Ela só respondeu:

— Quando a gente chegar lá, vocês vão entender. Depois de encontrar os outros Guerreiros, tudo vai ser explicado no momento certo.

Eles continuaram caminhando por um longo tempo. Lithor tentou puxar conversa com Anala, mas ela respondia tudo de maneira monossilábica, cortando o assunto. Orkan também não colaborou, ficando quieto quase que o tempo todo. Era um comportamento bem peculiar para aquele Ladino falastrão, sempre com resposta para tudo. Por conta desse silêncio, a caminhada pareceu mais demorada e desconfortável do que poderia ter sido. A areia entrava pela roupa e calçados inadequados que Lithor usava. Além disso, o sol estava muito forte e o vento estava quente, parecendo piorar a dor que ele sentia em seu ombro ferido exposto. Lithor torcia para chegarem logo ao destino.

A Reptoide de tempos em tempos verificava um equipamento, com uma tela preta e um ponto verde piscando. Assim como o comunicador, aquele aparelho parecia estranho, improvisado, com peças coladas e recortadas, formando um mosaico tecnológico bizarro. Subitamente, Anala parou e olhou ao redor, em um ponto aparentemente aleatório, sem qualquer ponto de referência. Ela verificou mais uma vez aquela geringonça, apertando um botão em sua lateral. Uma luz piscou duas vezes, soltando um "bip". Ela guardou este negócio e, com a outra mão, já apanhou seu comunicador, falando:

— Scula, chegamos. Estamos na posição.

— Ok, chefia! Preparar para iniciar o procedimento em 3, 2, 1.

Assim que a voz metálica vinda do aparelho terminou a contagem regressiva, a areia ao redor começou a vibrar e tremer, fazendo os três começarem a afundar rapidamente. Lithor e Orkan ficaram assustados, mas Anala nem esboçou muita reação. Ela simplesmente enrolou seus tecidos em volta do rosto e falou:

— Aconselho vocês a tamparem o nariz e fecharem os olhos.

Confiando na orientação da Reptoide, Lithor puxou o ar e se protegeu como pôde. A areia o engoliu por inteiro com muita velocidade. Ele sentiu como se estivesse deslizando por um tubo áspero, com a areia zunindo ao seu redor. Depois de descer por o que pareceu muitos metros, Lithor chegou ao destino final, tropeçando e perdendo o equilíbrio, caindo desajeitadamente sobre o chão duro e rochoso. Orkan chegou logo em seguida, aterrissando da mesma maneira que seu amigo. Anala, por sua vez, chegou como se estivesse descendo um lance de escadas, com sua postura profissional e séria, andando e limpando a areia de suas vestes de maneira natural.

Os dois rapazes se levantaram e se recompuseram. Lithor viu uma máquina bem grande perto de onde estavam, provavelmente responsável pela vibração que sentiram. Eles prontamente seguiram a Guardiã, sem conseguir entender muito bem onde estavam. Eles caminharam por um corredor dilapidado em rocha, sem coragem de perguntar qualquer coisa para a mulher, mas não houve necessidade, pois em pouco tempo chegaram em outro ambiente. O local onde se encontravam era impressionante. Uma caverna ampla, iluminada por um conjunto de cristais e tochas, estendia-se por muitos metros quadrados. O teto era alto, criando quase que um salão imenso de um palácio, com formações rochosas naturais. Não era possível ver todo o ambiente, dada a grandiosidade do lugar.

Um pouco à frente, várias tendas e barracas estavam montadas de maneira razoavelmente organizada, criando um tipo de vilarejo subterrâneo, onde podia-se ver vários Reptoides vivendo suas vidas. Alguns cozinhavam, outros cuidavam de crianças, um grupo de jovens conversava e ria, jogando cartas. Tudo parecia precário e improvisado, dando uma impressão de desconforto. As condições de vida ali não eram das melhores, fazendo com que Lithor sentisse um misto de indignação e pena daquele povo.

Antes que eles alcançassem o agrupamento, uma figura peculiar se aproximou correndo dos três. Era um Reptoide alto e encorpado, usando uma roupa estranha, feita de recortes de diferentes tecidos e diferentes cores, principalmente marrom e bege. Parecia algo que um piloto de aeronaves usaria, complementado pelos óculos de proteção que usava no topo da cabeça. O que deixava sua aparência ainda mais estranha era a pletora de equipamentos que ele carregava pendurada em seu corpo. Eram maquininhas que piscavam, telas com diferentes dados e informações, caixinhas que emitiam sons variados. Ele era a personificação de uma cacofonia sonora e visual.

— Anala, que pena que você não conseguiu a peça que eu precisava, mas que bom que você chegou bem, — o rapaz exótico disse, com uma fala rápida, parecendo que havia tomado um choque.

— Oi, Scula. É, não foi dessa vez. Mas pelo menos eu consegui resgatar os forasteiros, que era o motivo da minha ida até lá.

— Ah, verdade, verdade. Tem isso também. Mas seria tão bom se tivesse conseguido a peça.

Balançando a cabeça, Anala soltou um riso curto. Em seguida, ela fez as apresentações:

— Scula, esses são Lithor e Orkan. Rapazes, esse é o Scula, nosso melhor Ferreiro.

— Eu prefiro ser chamado de Engenheiro, mas não é uma Classe de verdade, por assim dizer. Eu me especializei em máquinas e engenhocas, então não vem me pedir pra consertar suas roupas e armaduras, por favor. Sem ofensas.

— Quero saber dos nossos amigos, vocês encontraram eles? — Orkan disse, sério, sem paciência para conversa.

Scula olhou o Ladino de cima a baixo em milésimos de segundos, respondendo logo em seguida:

— Ah sim, a equipe de reconhecimento voltou faz um certo tempo. Acho que eles trouxeram três pessoas que...

— Onde eles estão? — Orkan interrompeu o Reptoide.

O Ferreiro/Engenheiro olhou para Anala, buscando orientações. A Guardiã fez um sinal com a cabeça, fazendo-o prosseguir. Ele pediu para que o seguissem, virando-se de costas e caminhando pela caverna. Scula falava sozinho e gesticulava bastante, aparentemente reclamando ou fazendo planos, não era possível discernir. Logo eles alcançaram as primeiras barracas do vilarejo subterrâneo, onde os Reptoides se assustaram ao ver um Magnor e um Humanoide. Alguns adultos se colocavam à frente das crianças, protegendo-as. Outros entravam para dentro de suas tendas ou se retraíam, amedrontados, tentando fugir dos olhos curiosos dos dois rapazes.

Lithor se sentia mal ao ver a reação que causavam aos moradores dali. Em nenhum momento alguém parecia raivoso ou revoltado pela sua presença. Eram claramente pessoas traumatizadas e acuadas, aterrorizadas por qualquer um que fosse de fora. O Magnor tentou evitar contato visual, pois aquilo o estava deixando triste. Ao olhar para Orkan, pôde ver que seu amigo também estava desconfortável, porém sua expressão era estranha. Lithor não conseguiu decifrar o que passava pela cabeça dele.

Depois de atravessar aquele assentamento deplorável, Anala e Scula entraram em uma abertura separada do salão principal da caverna. Era uma área menor, com algumas armas, aldravas cheias de flechas e um módico estoque de poções, indicando que era um local reservado aos guardas e equipamentos bélicos do assentamento. Alguns poucos Reptoides estavam ali, aparentando serem de Classes variadas, usando roupas de combate e armaduras. Oposto à entrada, havia um corredor guardado por um homem carregando uma espada larga e outro com um arco e flechas. Eles pareciam irritados.

— Leafar, Vecenit, como foi a missão de vocês? Onde estão os sobreviventes?

— Os inimigos, você quis dizer? — O Reptoide disse, com sua voz rouca.

— Leafar, a gente já conversou sobre isso...

— Eu não confio neles, Anala! E você ainda trouxe mais dois com você, deixou eles livres! — O rapaz empunhou sua espada pesada, fazendo com que Orkan materializasse suas adagas e deixasse Lithor apreensivo, sem saber o que fazer.

Anala fechou os olhos e respirou fundo, antes de responder:

— Por isso que não dá pra deixar essas coisas na mão de vocês homens. Só pensam em batalhar, guerrear, resolver tudo na violência. Traz logo os sobreviventes aqui. E você, — ela se virou para Orkan, — nem tá em condição de lutar e fica empunhando essas arminhas como se fosse fazer alguma coisa. Me poupe. Vamos ter calma, todo mundo!

O Ladino abaixou lentamente seus os braços, mas mantendo as lâminas nas mãos. Sua testa estava contraída, tensa, refletindo seu rendimento a contragosto, mas ele sabia que não ganharia uma luta ali. Lithor olhava ao redor, tenso, sentindo o peso dos olhares dos demais Reptoides. Depois de uns segundos em um silêncio desconfortável, Leafar voltou a apoiar a ponta de sua espada no chão, pedindo para Vecenit trazer os três prisioneiros. O Reptoide pendurou seu arco no ombro e seguiu pelo corredor atrás dele.

Foi possível ouvir o barulho de uma porta metálica pesada sendo aberta, rangendo em suas dobradiças. O guarda deu algumas ordens curtas, inaudíveis de onde Anala e os outros estavam. Lithor olhava por cima da cabeça de Leafar, esperando ver Hadria e Orkan andando devagar e Spes correndo em sua direção, com seu grande sorriso no rosto. Porém, a cena que ele viu foi um pouco diferente.

Seus três amigos estavam com os pulsos e tornozelos amarrados, andando com passos curtos e trôpegos, seus corpos fracos e cambaleantes. Suas cabeças estavam cobertas por sacos de pano sujos presos por cordas enroladas no pescoço. Ver seus companheiros naquela situação o fez se sentir agoniado e, pela reação de Anala, ela também não estava feliz. Orkan, como esperado, perdeu a paciência, partindo para cima de Leafar, adagas prontas para o ataque.

Anala golpeou o Ladino com seu escudo antes que ele pudesse se aproximar, fazendo-o cair sobre o piso, contorcendo-se de dor. Seu ferimento nas costas se abriu novamente, fazendo-o voltar a sangrar. A Reptoide esbravejou:

— Eu falei pra todo mundo ficar calmo aqui! E antes que você fale qualquer coisa, Leafar, que merda é essa?! Olha o estado que eles estão!

— Você que falou pra gente tomar cuidado, — ele soava intimidado.

— Vocês tinham que se assegurar que eles não iam atacar vocês pelas costas, tirar as armas deles. Não era pra tratar como se fossem Criaturas. Você ao menos deu água pra eles? Alguma poção de cura? — O guarda abaixou a cabeça, desviando o olhar. Anala continuou: — Seu silêncio já me respondeu. Cadê o Mago da Luz da equipe de vocês? Alguém precisa tratar dessas pessoas!

Os três prisioneiros começaram a esboçar alguma reação ao que estava sendo dito, porém parecendo estar muito enfraquecidos. Lithor teve a impressão que não foi somente a queda do avião que os tinha incapacitado, porém não quis imaginar os tipos de violência pelos quais eles passaram.

— Com licença, Anala. Se me permite, — o Lutador disse, com o tronco curvado, tentando parecer mais submisso, o que era difícil com todo seu tamanho. — O Spes, aquele Lagomorfo ali, é um Mago muito poderoso. Ele consegue curar todo mundo aqui com uma só magia. Se você puder deixar ele fazer o trabalho dele...

Anala analisou a situação, ponderando por alguns segundos, finalmente concordando com a proposta oferecida. Ela cortou as cordas que prendiam o Mago e retirou seu capuz improvisado. Spes respirou fundo quando foi solto, piscando seus olhos repetidas vezes sem conseguir focá-los, visivelmente atordoado e enfraquecido. Até seus cabelos, que geralmente eram de um vermelho vivo, estavam aparentando estar mais escuros. O Mago estava no limite da consciência, claramente se esforçando ao máximo para não desmaiar.

Lithor, comovido, ameaçou ir até a direção dele, mas Anala só fez um sinal com a mão, pedindo-o para ficar onde estava. Ela mesma se aproximou de Spes, balançando a cabeça, indignada e reprovando o modo como seus conterrâneos trataram os prisioneiros. Porém, ela entendia a atitude deles, já que na última vez em que confiaram em forasteiros o resultado foi catastrófico. Para alguns Reptoides, toda cautela era pouca.

A Guardiã retirou de suas vestes dois frascos pequenos, sendo um contendo poção de cura e um de poção revigorante. Ela segurou a cabeça de Spes com uma das mãos e com a outra ministrou o conteúdo dos vidros ao Mago. Ele se engasgou um pouco, mas Anala o segurou bem, fazendo-o tomar todo o líquido. Ele fez a careta de sempre depois de sentir o gosto típico destas concocções, balançando a cabeça e apertando os olhos. Assim que ele os abriu, era possível ver que eles brilhavam novamente com o verde de sempre, assim como o ruivo chamativo de seus cabelos havia voltado também. Ele olhou em volta, um pouco perdido e curioso, voltando a atenção para Anala, que disse:

— Você consegue curar seus amigos aqui?

— Um Lebretão é coberto de pelos? Claro que consigo, — ele respondeu, de sua maneira usual, falando rápido e sendo levemente sarcástico. Percebendo que a situação demandava um pouco mais de seriedade, ele se retraiu um pouco e pediu desculpas baixinho. — Eu poderia... É... Pegar meu materializador de volta, por favor?

A Guardiã olhou para os dois Reptoides que, muito a contragosto, devolveram o materializador do Mago, arremessando-o com mais força do que o necessário. Spes se atrapalhou todo, tentando agarrar o equipamento no ar, derrubando-o e pegando-o do chão com um sorriso amarelo. Ele o ajustou ao seu punho e prontamente fez seu cajado aparecer. Os Reptoides ali presentes ficaram tensos, preparando-se instintivamente para o pior. Lithor conseguia compreender o que sentiam, pois teve uma sensação parecida quando seus novos amigos chegaram a Dunascas, mas ali o clima estava bem mais hostil.

Spes, alheio a tudo isso, concentrou-se e segurou seu cajado próximo ao peito. De olhos fechados, uma luz verde clara começou a se formar no cristal branco de sua arma. A luz aumentou rápida e gradativamente de intensidade, iluminando todo o lugar. Spes levantou seu cajado sobre a cabeça com uma mão, olhando para o alto. Feixes luminosos pularam na direção de todos os presentes, atingindo não somente seus amigos feridos.

O ferimento nas costas de Orkan fechou-se por completo, deixando uma cicatriz no lugar. A dor chata e constante no ombro de Lithor sumiu instantaneamente. Hadria e Aestus recobraram completamente os sentidos, firmando as pernas e a coluna. Até Anala e os outros Reptoides se sentiram revigorados, como há tempos não se sentiam. Spes abriu um sorriso tímido, orgulhoso de si pela magia bem sucedida.

Anala retirou os sacos das cabeças do Cavaleiro e da Bruxa, enquanto Lithor ajudava Orkan a se levantar, segurando-o pelos ombros. Por mais que parecesse um gesto solidário, o Magnor na verdade estava tentando impedir que o Humanoide avançasse novamente sobre os Reptoides. Todo o grupo se entreolhou, aliviados em verem que estavam todos bem, mesmo que em uma situação desfavorável. Interrompendo o momento de reencontro, Anala se adiantou:

— Oi, pessoal. Desculpa pelo modo que meus colegas trataram vocês, mas às vezes o medo toma conta do nosso julgamento. Já confiamos demais em pessoas más, não que esse seja o caso agora. — Ela respirou fundo, tentando decidir como continuar a conversa.

— Nós viemos pra ajudar. Queríamos ver como era a real situação dos Reptoides, — disse Aestus, aproveitando a pausa da mulher.

— Eu acredito que isso possa ser verdade. — Ela parou mais uma vez, mas logo resolveu ir direto ao ponto. — Eu recebi informações que os Guerreiros do Destino iam chegar hoje aqui no deserto. Quando fiquei sabendo da queda do avião, na hora eu sabia que seriam vocês. Eu já conferi os cristais daqueles dois, — e ela apontou para Orkan e Lithor. — Agora eu preciso que vocês apresentem os seus.

— Nós vamos precisar das nossas armas, — Aestus respondeu, ainda com as mãos amarradas, tentando soar solene e respeitoso.

Os outros Reptoides começaram a falar juntos, negando a proposta, em um burburinho irritado. Anala balançou a cabeça, sua desconfiança aumentando. Lithor antecipou que isso iria acontecer, já que sabia que os cristais de seus amigos estavam presos às armas. No entanto, parecia mesmo uma desculpa para que eles reouvessem seus equipamentos. Não havia uma saída fácil para aquela situação.

— É verdade, pessoal, — disse Spes, balançando a ponta de seu cajado, onde ficava seu cristal branco. — Olha o meu cristalzinho aqui. O do Aestus fica na empunhadura da espada dele e o da Hadria fica na capa do grimório dela. — As pessoas ao redor ainda não demonstravam nenhum sinal de aceitação. O Mago suspirou e sugeriu: — Seguinte: eu posso lançar uma magia e deixar a Bruxa incapaz de usar feitiços. A Guardiã aqui, não peguei seu nome, moça, desculpa. Ela pode usar uma habilidade pra prender o Cavaleiro, sei lá.

A oferta de Spes pareceu razoável para a maior parte dos que estavam em volta, mas ainda assim pareciam receosos. Para resolver a situação de uma vez, Anala aceitou a proposta, separando Aestus do grupo e se posicionando em frente a ele, com seu escudo preparado. O Lagomorfo se desculpou preemptivamente e, sem demora, usou uma das poucas magias ofensivas que os Magos da Luz podem usar, apontando sua mão espalmada na direção da Bruxa. Hadria jogou a cabeça para trás, como se tivesse sido atingida por uma bola invisível. Seu rosto era uma mistura de dor e confusão, mal conseguindo manter seus olhos abertos.

Os guardas entregaram os materializadores dos dois Guerreiros. Lithor se adiantou e ajudou Hadria a equipar o seu, já que ela estava com a mente um pouco confusa. Quando estavam prontos, eles materializaram suas armas. Nesse momento, uma luz muito forte brilhou no recinto, ofuscando a visão de todos. Quando conseguiram abrir os olhos, puderam perceber que os seis cristais estavam iluminados, com um brilho potente e pulsante, como corações felizes em um reencontro.

Spes, com um sorriso enorme estampado em seu rosto, prontamente libertou Hadria de seu estado incapacitante. Assim que ela percebeu a situação, abriu um sorriso muito discreto, de canto de boca, confirmando o que sua intuição sempre dizia. Anala parecia emocionada, com uma expressão confiante e esperançosa nos olhos. Lithor encarou Spes, que também havia procurado seu olhar, e os dois, mesmo sem qualquer palavra, compartilharam uma sensação de vitória.

Aestus se emocionou muito com aquela situação, percebendo que fazia parte de algo maior que sua jornada inicial em busca de aventuras. Ele acenou com a cabeça na direção de Orkan, que ainda estava tentando assimilar tudo o que estava acontecendo. O Ladino, pela primeira vez em sua vida, sentiu que poderia ser importante, como alguém necessário e que faz parte de algo grandioso. Sempre tratado como um estorvo e uma decepção por sua família, ele não sabia lidar com todas essas sensações e pensamentos que se formavam em sua cabeça. Ele lutou contra as lágrimas que começaram a se formar em seus olhos ao sentir algo que nunca havia sentido de si: orgulho.

Os demais Reptoides ali recuaram e abaixaram a cabeça em reverência. Para eles, os Guerreiros do Destino eram divindades lendárias, ao contrário do restante de Kairos, que os tratavam como um simples conto para crianças. Eles representavam a esperança que há tempos haviam perdido. Um futuro melhor e mais justo agora era algo possível e não simplesmente um sonho.

Os guardas se desculparam para os três prisioneiros, envergonhados. Anala se afastou de Aestus, baixando a guarda, permitindo que os seis se reunissem pela primeira vez. Todos permaneceram em silêncio por um longo tempo, admirando a bela miríade de cores emitidas por seus cristais, absorvendo este momento mágico. Anala foi a primeira a falar, fazendo com que todos olhassem para ela.

— Agora só precisamos nos encontrar com o Oráculo.

— Ah, sim! A gente já sabe quem é! Quero dizer, a gente tem quase certeza, né? — Spes disse, olhando para os outros, sorrindo.

— É, bem... É uma teoria que a gente tem, — Aestus disse, um pouco encabulado.

Anala pareceu extremamente confusa com essa informação, arqueando uma das sobrancelhas e erguendo um canto da boca.

— Como assim? O que vocês estão falando?

— Tem um homem misterioso chamado Hiner que fez algumas coisas reprováveis no outro continente, — explicou Hadria, cruzando seus braços. — Mas, de uns tempos pra cá, ele vem fazendo umas aparições sempre onde nós estamos, dando dicas e falando qual caminho devemos seguir. Por conta disso, nós acreditamos que ele possa ser o Oráculo. O difícil vai ser encontrar ele.

Anala abaixou a cabeça e riu um pouco, levantando o rosto em seguida, com um sorriso em seu rosto, algo não muito usual. Em seguida, ela disse:

— O Oráculo mora aqui. É meu avô, o nome dele é Hakim.

Os outros cinco ficaram visivelmente surpresos, estarrecidos por receberem uma notícia dessas. Todos pararam para processar essa nova informação, enquanto Anala achava graça da cara que eles fizeram, balançando sua cabeça. Spes era o mais indignado, tendo sua teoria destruída em segundos.

— Impossível... Mas ele parece saber tudo sobre a gente! E ainda consegue usar habilidades de mais de uma Classe! — Ele falou, com o olhar perdido.

— Desculpa acabar com suas crenças, Lagomorfo, mas vocês estão errados, — Anala disse, sentindo um pouco de dó em ver o Mago parecer tão perdido. — Mesmo assim, esse tal de Hiner parece ser alguém importante pra nossa missão. Vamos conversar com o meu avô. Ele deve poder ajudar bastante.

Ao terminar a frase, a Guardiã foi na direção da entrada do salão, sendo automaticamente seguida pelos demais. Os guardas permaneceram onde estavam, ainda um pouco envergonhados e amedrontados. Anala guiou seus novos aliados por entre os barracos simples e improvisados, de onde outros Reptoides observavam a trupe com atenção.

Spes, Aestus e Hadria, vendo aquele cenário pela primeira vez, também ficaram condoídos com a situação precária em que aquele povo vivia. Crianças subnutridas e adultos amedrontados habitavam aquele lugar, que não parecia apropriado para se viver. Lithor, que estava caminhando atrás de Spes, apertou o ombro de seu amigo, oferecendo apoio silenciosamente. O Mago apertou a mão do Lutador, emocionado.

Em pouco tempo, eles alcançaram um barraco um pouco maior e mais bem construído que o restante, feito de placas de metal, tecido e lona. Alana empurrou a porta e entrou, seguida dos outros. Lithor teve que se abaixar bastante para entrar, mas o teto no interior era alto o suficiente para que ele ficasse em pé.

Eles estavam em uma sala grande, com uma mesa comprida, mas estreita. No lado esquerdo, havia uma bancada com uma pia e um fogão. Na parede do lado oposto, havia um grande mapa do deserto, com várias anotações, pontos marcados e desenhos feitos à mão. Parecia que o lugar era usado para reuniões estratégicas e debates entre as lideranças. O ambiente era iluminado por um equipamento movido a cristais de fogo, criando uma luz alaranjada. Diferente da superfície, onde a areia e o sol eram muito quentes, a temperatura ali era amena e agradável.

Alana acessou um pequeno corredor situado na parede em frente à entrada. Ela bateu em uma porta e se anunciou, antes de entrar cautelosamente. Todos olhavam atentamente para o corredor, esperando ansiosamente pela aparição do lendário Oráculo. Foi possível ouvir uma conversa abafada vindo do aposento, seguida de passos arrastados e lentos. Por fim, Anala surgiu conduzindo um Reptoide bem idoso, que se apoiava em um dos braços daquela forte mulher.

O Oráculo parecia ser simpático, com um largo sorriso no rosto enrugado. Ele usava uma túnica verde-escuro um pouco surrada e remendada, que o dava uma aparência de um ancião sábio e bem vivido. Sua cabeça, completamente careca como todos os demais Reptoides, estava descoberta, com sua pele levemente escamosa à mostra. Seus olhos, amarelos como os de sua neta, tinham o mesmo brilho sagaz de Anala, reforçando o parentesco entre os dois.

A Guardiã colocou Hakim na cadeira situada na cabeceira da mesa e pediu para os outros se sentarem. O Oráculo observava a todos com atenção enquanto se arrumavam à mesa, murmurando algumas coisas para si. Lithor sentou-se na maior cadeira que tinha, que mesmo assim era pequena demais para o brutamontes. Depois que todos estavam acomodados, ele disse, com uma voz baixa e gostosa:

— Sejam bem vindos, meus Guerreiros do Destino. Eu sou Hakim, o Oráculo, mas eu acho que Anala já tinha falado de mim para vocês. — O grupo só balançou a cabeça, confirmando, muito impressionados para falar qualquer coisa. — Ótimo, ótimo. Eu estou olhando para o rostinho de todos vocês e tentando me lembrar das visões, da profecia, que vi tantos anos atrás. Acho que consigo reconhecer vocês.

O senhorzinho olhou atentamente para cada um, analisando as vestimentas e características físicas, parecendo se concentrar bastante. Ele puxava pela memória, já corroída pelo tempo, reconhecendo alguns detalhes que havia vislumbrado havia muito tempo. Ele apontou um dedo na direção de Aestus e disse:

— Você deve ser o Cavaleiro, Aestus. Jovem e forte. Amigo do Orkan, — e ele se virou para o loiro, — o Ladino do grupo. Ágil e ardiloso.

Os dois jovens se encararam, sorrindo, e confirmaram o que foi dito. O Oráculo então se virou para Spes e começou a dizer, vagarosamente:

— Você...

— Eu sou Spes, o Mago! — O Lagomorfo falou, do seu jeito rápido como sempre, levando as mãos ao rosto logo em seguida, vermelho de vergonha. — Desculpa, seu Oráculo! É que eu tô muito emocionado aqui na sua presença! Não queria te interromper!

Hakim riu baixinho, balançando a cabeça, achando graça da personalidade efusiva de Spes. Ele continuou falando, em sua cadência lenta:

— Sem problemas, garoto. Minha memória não está tão boa já faz algum tempo. Obrigado pela ajuda. Agora você, menina, — e ele se virou para Hadria. — Você é inconfundível. Hadria, a poderosa Bruxa das Trevas. Peculiar, porém letal.

Hadria fez uma pequena reverência com a cabeça, agradecendo pelo reconhecimento, mantendo a expressão séria. Ela arrumou seus cabelos negros, colocando uma mecha atrás de uma orelha. Hakim prosseguiu com seu reconhecimento, pousando seus olhos sobre Lithor, que estava sentado como podia na cadeira pequena para ele.

— Você é o Lutador do grupo, um Magnor poderoso e eficiente. Eu só não consigo me lembrar do nome...

Spes, ansioso como sempre, já ia se intrometer, mas Lithor segurou sua mão, controlando o Lagomorfo. Hakim, que estava esfregando a testa, abriu um largo sorriso e levantou um dedo, dizendo:

— Lithor! Claro, Lithor! Como eu poderia me esquecer de você? Desculpe-me, eu já estou um pouco velho.

— Eu achei que você não conseguia se lembrar do nome deles, vô.

— Na verdade, eu não conseguia lembrar de muita coisa mesmo, pois tive que extrair a minha visão na forma da profecia, antes mesmo de você nascer. Isso fez com que eu não me lembrasse mesmo. Mas aquela última visão que eu tive trouxe tudo de volta, mas um pouco confuso.

Os forasteiros não entenderam nada, mas Anala pareceu ter compreendido a situação. Ela continuou:

— Eles comentaram sobre um tal de Hiner, que eles achavam que era o Oráculo, — disse Anala, repassando as informações que recebeu. — Você sabe alguma coisa a respeito dele?

— Hmmm... — Hakim ficou absorto em pensamento, parecendo processar a informação. Ele falou em seguida: — Ele pode ser o próximo Oráculo então?

— Próximo Oráculo? — Aestus perguntou, surpreso.

— Sim, sim. O Oráculo não é único, Cavaleiro. Cada geração tem o seu. E, quando um novo Oráculo surge, o anterior vai ficando cada vez mais fraco. Por isso eu quase não tenho mais visões, não consigo quase usar nenhuma habilidade. Meu sucessor já herdou meus poderes.

— Então o Hiner pode mesmo ser o novo Oráculo? — Perguntou Hadria, direta.

— Pelo que Anala comentou, talvez. Ou então... — E Hakim olhou na direção de sua neta.

— Será? — A Guardiã soou um pouco incrédula, virando-se para o restante do grupo em seguida: — Qual a relação entre Hiner e Baruc?

Essa pergunta pegou todos desprevenidos. Aestus gaguejou, pensando em uma resposta, e Orkan se adiantou:

— Eu sabia que eles tinham alguma ligação, desde aquele ataque em Silvi. Alguma coisa tem aí!

— Calma, Orkan. Acho que vocês precisam saber de toda a história pra entender, — falou Anala, solenemente. Ele respirou fundo e continuou: — Muitos anos atrás, nós desenvolvemos uma aeronave e conseguimos cruzar o oceano, já que a viagem pelas águas sempre foi muito perigosa. Sobrevoamos o continente de vocês e encontramos uma cidade bem grande, que depois descobrimos se tratar de Reganta.

— Nosso povo sempre foi muito isolado, as minhas visões sempre me orientaram a permanecer assim, — falou lentamente o Oráculo. — Mas, um dia, de repente, recebi a orientação divina de fazer essa viagem. Até hoje não consegui entender muito bem o motivo disso... — Ele pareceu arrependido, mas seguiu em frente: — Tínhamos que encontrar as autoridades de lá e fazer contato, trocar informações e tecnologias.

Anala olhou para seu avô, balançando a cabeça, parecendo indignada e não querendo aceitar os fatos, mas continuou recontando a história:

— Não demorou pra direcionarem a gente pro Baruc, que era o "líder revolucionário", segundo todo mundo. Grande revolução... Ele mal sabia como processar os cristais direito. Muitas invenções mequetrefes, umas máquinas que não funcionavam direito. Os nossos inventores se controlaram pra não rir na frente dele, — ela riu, coçando a testa, mas logo ficando séria novamente.

— Inventores? Mas quem inventou a aeronave foi o Baruc, até onde eu sei, — disse Orkan.

Anala e Hakim deram uma risada contida, balançando a cabeça e se entreolhando. A Guardiã respondeu:

— Isso é o que te contaram, né? Ele realmente moldou a história da maneira que ele quis. Nossa tecnologia era muito mais avançada que a do Baruc quando chegamos no continente de vocês. Antes da guerra, nossas cidades eram grandes centros desenvolvidos. É o que contam os mais velhos, evidenciado pelas ruínas que existem na superfície, — Anala falou com um pesar perceptível na voz. — Nós passamos muitos ensinamentos pra vocês e assim começou uma troca de conhecimento e descobertas muito interessantes. Esse período de paz durou alguns anos. Eu nasci por volta dessa época.

— Então você está dizendo que o Baruc não inventou o processamento de cristais? — Hadria disse, com a mão no queixo, raciocinando.

— Exatamente. Ele se apossou das nossas descobertas e ficou com o crédito. Mas isso não foi o pior que ele fez, — Anala respondeu com o cenho franzido.

— O outro continente cortou relações conosco subitamente, — Hakim retomou. — Ficamos sem saber o que fazer, então mandamos uma representante nossa para tentar retomar as conversas. Ela era minha filha, mãe de Anala, que nunca mais voltou, — ele disse, pesaroso.

— Aqueles filhos da mãe devem ter feito ela de prisioneira e torturado ela. — As palavras de Anala eram carregadas de ódio. — Devem ter arrancado tudo o que puderam dela, porque os ataques de Baruc começaram logo em seguida e não foi algo aleatório. Eles tinham um objetivo específico.

— A profecia! — Spes exclamou, levando as mãos ao rosto, como sempre fazia quando estava surpreso. — A Reptoide que vocês enviaram deve ter passado essa informação pra eles!

— Não foi exatamente isso, mas Baruc veio pessoalmente, junto de alguns poucos soldados, e atacou nossa cidade, — Hakim disse. — Ele veio especificamente atrás de mim. Eu consegui fugir com vida, junto dos meus netos e outras pessoas, mas ele roubou a profecia. Desde então os ataques não pararam mais. A intensidade e frequência varia, mas vivemos em fuga, nos escondendo.

— Mas se eles já roubaram a profecia, por que continuam atacando vocês? — Inquiriu Aestus.

— Nós temos algumas explicações pra isso, — Anala explicou. — Uma delas é que as pessoas não podem nem sonhar que os Reptoides que desenvolveram toda a tecnologia que ele roubou, então Baruc quer nossa destruição. Preservar a imagem que ele construiu.

— É bem do feitio dele, isso aí, — sussurrou Spes.

— Outra explicação é que o Baruc não iria nunca conseguir acessar a profecia que ele roubou, então ele nem tem noção do seu conteúdo.

O grupo olhou sem entender para a mulher, que coçou a testa pensando em como explicar isso. No entanto, foi seu avô que elaborou:

— Quando extraí de forma tangível a profecia da minha consciência, foi criado um pequeno cristal contendo as informações importantes. Este cristal foi colocado dentro de uma urna de pedra selada por uma magia forte. Somente um Guerreiro do Destino conseguiria abri-la. Qualquer tentativa de acessar o conteúdo à força destruiria a profecia. Acredito que Baruc nunca conseguiu o que queria, então ele precisava de alguém para fazer isso para ele.

— Mas, afinal, o que tinha na profecia? — Perguntou Lithor, curvando-se para se aproximar de Hakim.

— Nada de muito interesse para o Baruc, na verdade. Era basicamente toda a jornada que vocês fizeram até aqui, — o Oráculo respondeu, sorridente. — As datas onde se encontrariam, os locais onde se conheceriam, o caminho que deviam tomar. Tudo isso culminando em nosso encontro aqui hoje.

Todos ficaram em silêncio, absorvendo o que foi dito. Parecia que as peças se encaixavam aos poucos na cabeça de cada um deles. O que parecia ter acontecido de forma natural então já estava previsto há tanto tempo, com tantas tramas e pessoas envolvidas por trás. Orkan, entretanto, parecia não querer aceitar aquela informação.

— Que absurdo! Eu comecei essa jornada por vontade própria! Ninguém me guiou ou colocou na minha cabeça a ideia de sair de Comanse! Era algo que eu sempre quis!

— Sim, eu também sempre sonhei em ser um Caçador, viajar o mundo, ajudar as pessoas, — acrescentou Aestus, reticente.

— Eu achava que ia passar o resto da minha vida em Silvi, até encontrar vocês, — falou Spes, com o queixo apoiado em uma das mãos. — Mas aí aconteceu...

— O ataque de Hiner... — Aestus completou, pensativo.

— Depois do ataque vocês decidiram que iam rodar o mundo atrás do Hiner, — continuou especulando Spes. — E eu senti que precisava ir junto. Aí a gente encontrou a Hadria em Foscor...

— E eu só consegui a permissão da minha mãe pra sair da cidade depois do incêndio que o Hiner causou, — a Bruxa disse. — E ainda direcionou a gente pra Dunascas, prometendo um próximo ataque que nunca aconteceu.

— É, acho que esse tal de Hiner sabe mais do que vocês imaginam, — Lithor disse.

— Por isso eu perguntei qual a relação dele com o Baruc, — explicou Anala, que se levantou da mesa e caminhou pela sala. — Acho mais provável ele ter tido acesso à profecia do que ele ser o novo Oráculo. Mas, no final das contas, esses detalhes não são tão importantes assim. Tem mais um motivo para o Baruc vir atrás do meu avô, talvez o mais importante.

Hakim balançou a cabeça, com uma expressão de preocupação em seu rosto, sua testa ainda mais enrugada e seus finos lábios pressionados. Parecia que ele sentia uma grande culpa que pesava sobre seus ombros. Anala afagou as costas do velho, que sorriu timidamente para ela. A Guardiã falou:

— Meu avô é o único motivo pelo qual Baruc não exterminou todos os Reptoides ainda. A gente tem algo de valor inestimável: informação. Sem o Oráculo, vai ser bem difícil de encontrar o que ele procura há tanto tempo.

Os outros Guerreiros ficaram em silêncio, tentando decifrar o que foi dito, mas ninguém sabia o que falar. Spes olhou em volta, apreensivo, e soltou:

— Moça, por favor, eu sou ansioso. Fala logo o que o Baruc tá querendo aqui no deserto.

Anala achou graça da maneira que o Lagomorfo se expressou, respondendo em seguida:

— Acredito que vocês conhecem uma versão fantasiosa dos Guerreiros do Destino, contada na forma de lenda ou contos pra criança dormir, não é?

Os forasteiros, incluindo Lithor, anuíram com a cabeça. A mulher continuou:

— Então, para nós, Reptoides, os Guerreiros do Destino eram algo esperado ansiosamente por todos. Não era uma questão de "se eles existem", mas sim de "quando eles vão aparecer", entendem? E a função deles, ou melhor, nossa, — ela se corrigiu, tentando se acostumar com a confirmação de que fazia parte deste grupo lendário, — é proteger Kairos da ruína. E, pra isso, precisamos impedir que os Cristais do Poder caiam nas mãos erradas.

— São cristais que possuem uma grande carga de energia com propriedades mágicas inimagináveis, — Hakim explicou. — São cinco, no total, escondidos em pontos estratégicos do nosso planeta. Se eles forem reunidos, não se sabe ao certo o que pode acontecer, mas algo tão poderoso certamente pode causar grande destruição se usado por alguém com más intenções. A missão de vocês é impedir que isso aconteça.

— Então o Baruc já tem conhecimento desses Cristais do Poder? — Perguntou Aestus.

— Sim, mas não sabe exatamente a localização deles, só uma noção de onde podem estar — Anala respondeu. — Ele sabe que um deles está aqui no deserto, por isso seu interesse tão grande em vir explorar a região.

— Isso explica a quantidade de maquinários de mineração que a gente viu no avião que trouxe a gente pra cá, — Hadria disse levando os olhos para cima, tentando se lembrar do que viu nas caixas no setor de carga da aeronave. Ela parou por um instante e voltou o olhar para o Oráculo. — E você sabe onde os cristais estão, né? Por isso o Baruc não exterminou toda sua raça ainda. Sem sua ajuda, ele provavelmente não vai encontrar o que procura.

Todos voltaram a atenção para o senhorzinho, que confirmou o que a Bruxa havia dito. Eles, então, entenderam o pesar na voz de Hakim. Ele era o motivo pela perseguição que os Reptoides sofriam. Não ele, exatamente, mas seu conhecimento e as informações que detinha. Muitos não saberiam lidar com essa responsabilidade, tendo que sacrificar a vida de todos ao redor para proteger todo o planeta.

Spes apoiou os cotovelos na mesa e segurou seu rosto, absurdado. Lithor se recostou para trás, como pôde, e cruzou seus braços, respirando fundo. Hadria tamborilava seus dedos na mesa, silenciosamente, enquanto conectava os pontos mentalmente. Aestus observou todos, fitando Orkan por mais tempo, tentando decifrar sua expressão facial, até que o loiro disse:

— A gente precisa impedir o Baruc, — ele falou, sério, surpreendendo a todos. — O que ele fez, e ainda faz, com vocês é imperdoável! É bem difícil pra mim admitir isso, mas eu tava errado. Eu sempre admirei o Baruc. Eu queria ser poderoso como ele, rico como ele, legal como ele. Eu queria ser ele, na verdade. — O Ladino escondeu o rosto nas mãos, respirando fundo, sentindo-se um pouco envergonhado por se abrir desta forma. — Mas vida que segue. Qual a próxima etapa que a profecia viu?

Aestus, orgulhoso das palavras de seu amigo, apertou seu ombro e abriu seu mais sincero sorriso. Até Hadria ergueu levemente suas sobrancelhas, não esperando esse rompante de sinceridade de Orkan. Hakim, no entanto, só balançou a cabeça, dizendo em seguida:

— Eu não sei. Infelizmente, eu não consegui mais ter visões tão complexas depois que extraí a profecia. Caso contrário, eu teria feito o que podia para antecipar os ataques do Baruc. Eu só tinha alguns lampejos e sensações ruins, que nos permitiam fugir e nos defender de algumas invasões.

— Então, já que estamos trabalhando no escuro, — Anala tomou a palavra, apoiando-se na mesa, — eu tenho algumas sugestões. Scula, o nosso Engenheiro, vem lentamente montando uma aeronave, usando peças encontradas nas ruínas das nossas cidades e partes que conseguimos roubar dos acampamentos do inimigo. Pelo que ele me passou, faltam alguns componentes chave, que talvez possam ser encontrados no avião que trouxe vocês aqui.

— Então a gente pode se juntar e ir até os destroços da aeronave, que foi "comida" pelas Formigas-leão? — Lithor perguntou.

— Nós também precisamos de alguns suprimentos e materiais pro nosso acampamento. Acho que no caminho pra cá vocês viram o estado em que estamos vivendo. Eu sugiro nos dividir em dois grupos: um fica responsável por buscar as partes junto com Scula e o outro vai se infiltrar em um acampamento inimigo, pra roubar o que conseguir, chamando menos atenção possível. Depois disso, temos tudo o que precisamos pra viajar de volta pro continente de vocês e enfrentar o Baruc.

— Não só o Baruc, — interveio Orkan. — . Acho que é bom relembrar a todos o motivo pelo qual a gente começou essa jornada juntos. A gente também tem que ir atrás do Hiner.

— Sim, você tá certo, — Aestus falou, esfregando o queixo. — Por mais que ele supostamente tenha guiado a gente até aqui, ele precisa pagar pelos crimes que cometeu. Ou pelo menos se explicar.

Um murmúrio generalizado pela mesa parecia concordar com o que foi dito, porém Anala rebateu:

— Esse tal de Hiner é secundário, com todo o respeito. Acredito que Baruc e ele têm alguma ligação, portanto lidar com Baruc vai acarretar em lidar com o Hiner em certo momento.

— Assim, eu concordo com tudo o que tá sendo dito, mas... — Spes disse, levantando a mão para falar e abaixando-a logo em seguida, um pouco envergonhado. — Quando você diz "lidar" com o Baruc, o que você quer dizer exatamente?

— Ele precisa pagar por tudo o que fez, assumindo a responsabilidade dos seus crimes.

— Mas ninguém está falando em executá-lo, — Hakim complementou, emendando sua fala à da neta. — Muito sangue já foi derramado e mais violência não é a solução.

— Quando conseguirmos alcançar o outro continente vemos isso. Uma coisa de cada vez. Primeiro precisamos resolver a situação aqui, — Anala concluiu.

Todos concordaram, com palavras de apoio e anuência. Eles resolveram descansar pelo resto do dia, fazendo alguns planejamentos de como e quando agiriam. Os detalhes seriam definidos em reunião posterior, assim como a divisão dos grupos e as estratégias para cada uma das tarefas detalhadas. Uma sensação de determinação e vigor tomou conta de todos, sentindo que estavam no caminho certo, perto de grandes acontecimentos.

O grupo foi direcionado para algumas barracas montadas para eles que, por mais que fornecessem privacidade, não tinham nenhum conforto. Anala, no entanto, não parecia envergonhada de oferecer tais acomodações, uma vez que aquela era sua realidade e não havia nada muito melhor por ali. Explicando que precisava resolver outros assuntos, pediu licença e deixou os outros Guerreiros do Destino a sós. Eles se organizaram, escolhendo onde dormiriam, e, mais tarde, receberam comida dos moradores locais, que os tratavam como se fossem um misto de celebridades e deuses.

Depois de se alimentarem com uma sopa rala, porém gostosa, os cinco amigos resolveram encerrar o dia e dormir. Eles precisariam de muita energia para as próximas missões, mas nada os preparariam para a grande tragédia que os aguardava em pouco tempo.

Continue Reading

You'll Also Like

4.5K 168 4
[VENCEDOR DO PRÊMIO WATTYS 2019 - HORROR & SOBRENATURAL] Christopher Winter é um jornalista que usa seu dom de ouvir e falar com os mortos para ajuda...
4.6K 1K 22
Em um reino de encantos e desafios, "A Verdade Nas Cinzas" narra a envolvente história de Catherine, Beatrice e Lilly, três jovens unidas pelo anseio...
335 155 5
Eva, Gatlyn e Martim são os melhores amigos. Vivem as suas vidas de adolescentes no máximo, quebrando algumas regras pelo meio. Mas tudo se torna tur...
137K 9.1K 72
Paris nunca mas foi a mesma depois da aparição dos akumas e para lutar contra eles duas pessoas, uma delas tímida e sencivel enquanto a outra era ext...