Código Abstruso

By JessicaFaustino

27 4 0

Em "Código Abstruso" entramos em um mundo onde as pessoas não precisam fazer escolhas. Aqui tudo é selecionad... More

ᨒ Sinopse
ᨒ Capitulo 2
ᨒ Capítulo 3

ᨒ Capítulo 1

10 1 0
By JessicaFaustino




                Houve uma época em que o ser humano não tinha domínio próprio até que um ser — do qual não podemos mencionar o nome — lhe mostrou uma alternativa além da única que possuía. O homem a escolheu e desde então lhe foi concedido o desejo do livre arbítrio.

— O que foi uma péssima ideia acreditar que seríamos capazes de, por nós mesmos, fazer boas escolhas. — Minha professora gesticula em direção a lousa. — Foram as nossas escolhas que quase nos destruíram. Foram as nossas escolhas que levaram o mundo ao colapso. Tanta pobreza, tanta violência e injustiças que existiram. A perda das tradições...

Na escola nos foi contado que um dia o nosso criador colocará ordem no mundo novamente, mas até que isso aconteça, para que ainda existisse um mundo, o homem precisou estabelecer a ordem por si mesmo. É para mantê-la e para nos poupar das consequências de escolhas ruins que tudo já vem previamente escolhido e selecionado para nós.

— Poupar-nos das escolhas também é um gesto de amor, pois poupa a nossa saúde e bem estar. Garante a nossa realização pessoal e coletiva! Não ficamos em dúvida, preservamos os nossos neurônios e preservamos o nosso tempo!

Coloco a aula no mudo. Minhas têmporas estão pulsando mais que o normal. Sinto como se meus olhos estivessem inchados. Estou tonta e sonolenta. Talvez a Rosa me recomende um café preto esta tarde.

— Olá, Hannah. Vi que você silenciou a sua aula e gostaria de ressaltar o quão importante ela é para o seu desenvolvimento como pessoa e indivíduo em nossa cidade.

A assistente virtual chama a minha atenção à medida que vou ficando cada vez com mais sono.

— Eu estou me sentindo um pouco sonolenta essa manhã, Rosa. — Olho para o holograma da professora passeando ao meu redor. Sua boca mexe, mas não a escuto. As atividades da pós-graduação estavam dominando todos os meus pensamentos nesses últimos dias. — Talvez um pouco de café vinhesse a calhar.

— Você já ingeriu sua dose recomendada de café esta manhã. — A voz asmr e feminina de Rosa só me faz querer dormir mais. — Acredito que uma dose extra não irá fazer bem ao seu sistema nervoso.

— Nem cem ml de café?

— Não, senhorita. Você sabe o quão prejudicial a cafeína pode ser?

— Sei, sei sim. Não precisa explicar novamente. — Interrompo-a antes que ela ative o modo enciclopédia.

— Ok. Eu recomendo que faça uma pausa de cinco minutos, beba um pouco de água e vá caminhar. Após isso poderá retornar a aula.

— É. Você tem razão. — concordo com ela. Se não fosse pela Rosa acredito que eu não teria chegado até onde cheguei hoje.

Em um mundo beirando o apocalipse, quando a sociedade alcançou seus maiores níveis de violência, desastres ambientais, consumismo, desperdício e escassez elevados, corrupção de poder e ameaças cada vez maiores de guerras envolvendo todos os países, a Inteligência Artificial surgiu para nos trazer a paz, evitando a consumação completa do apocalipse e um novo estilo de vida para que possamos viver em paz e harmonia.

Hoje o mundo reina com serenidade e para isso, bastava que as escolhas ruins fossem anuladas e as boas fossem devidamente recomendadas. Há séculos atrás a minha cidade foi a primeira cidade modelo. Nova República foi criada para testar os novos métodos e estilo de vida desenvolvidos e geridos por meio da IA. Levou muitos anos e muitas guerras foram travadas para que a paz prevalecesse após a confirmação de que o novo governo operando nela era a única saída para salvar o planeta e a humanidade de si mesmo.

Eu estava certa da vida que levava, de acreditar no poder em que a IA proporcionou ao mundo e da vida que eu tinha e teria até o dia em que a mãe de Alex, minha ex sogra, me ligou avisando que as coisas do Alex — as que haviam sido levadas pelo governo para inspeção e purificação, segundo eles "para a segurança delas mesmas de que os externos não haviam depositado conteúdo terroristas nos pertences", foram devolvidas e enviadas ao antigo endereço do Alex, a casa onde eu e ele haviamos morado.

Onde noivamos...

A senhora May perguntou se eu poderia acompanhá-la até lá, então marcamos para às nove da noite quando eu estaria livre depois das aulas EAD. Como era meio de semana daria para retornar antes do toque de recolher às dez e assim foi feito.

                Dirigi do centro de Nova República até as extremidades norte da cidade onde May passou a morar após a morte de Alex e seguimos em direção ao centro novamente. A nossa antiga casa ficava alguns km antes do meu apartamento atual e era um percurso que eu costumava contornar e evitar de passar. Mas naquele dia eu tinha uma missão importante e talvez seria a última coisa que eu fizesse pelo Alex.

A casa como eu imaginava estava toda escura, exceto pela iluminação pública da rua.

— Você ainda guarda a chave? — perguntou May.

— Sim. — respondi, aproximando-me da porta.

Encosto o relógio na maçaneta e após leitura do QR code a tranca retorna para dentro e a porta retorna a parede em um deslizar suave. Naquele momento eu estava sendo invadida de emoções e quando achei que era coisa da minha cabeça, meu relógio bipou com uma notificação dos meus batimentos cardíacos elevados e respiração acelerada. Aquele sentimento era tão familiar quanto horrível. Era como estar de volta às sessões de terapia após a morte do Alex.

Um soluçar me puxou do transe como se submergindo ao ar após um longo período debaixo d'água. Passo um dos braços sobre os ombros da senhora May que tenta segurar o soluço. Seu relógio também bipava pequenos alertas. O movimento fez o efeito contrário, fazendo com que a mulher madura chorasse cada vez mais. Meus próprios olhos encheram-se de lágrimas.

— Eu sei como é difícil, senhora May. — A senhora apenas movimentou a cabeça, afastando-se e enxugando o nariz com o lenço. — A senhora precisa que eu pegue algum medicamento?

A senhora May afastou-se e balançou a cabeça.

— Não querida, obrigada. — seus olhos piscaram até encontrar foco. — Eu... só preciso ir ao banheiro.

— É a penúltima porta no fim do corredor. — Informo automaticamente.

Estar ali era como se tivessemos voltado no tempo novamente. Alex insista que queria morar em uma casa e não em um apartamento. Ele gostava de estar ao ar livre, de morar em um ambiente com mais cores do que um apartamento moderno e minimalista poderia lhe oferecer, além de poder definir onde a própria mobília ficaria ou não. Caminho livremente pela sala agora somente com um sofá de dois lugares coberto, uma mesa de centro marrom de formato curvilíneo e um rack, onde ficava a antiga TV deles. O governo também a tinha levado para inspeção, talvez a tenham devolvido.

— Aonde será que eles colocaram as coisas do Alex?

— No quarto de cima, senhorita Hannah.

Esperando pela resposta da senhora May, assusto-me ao perceber que fora Ana, a antiga assistente virtual da casa, que me responde. Olho ao redor para onde estavam instaladas as caixas de som. Um pequeno led piscava próximo a lâmpada sobre minha cabeça. May retornou do banheiro olhando para o mesmo lugar que eu.

— Eu achei que a tivessem desativado ou reiniciado o sistema.

— Talvez o façam quando conseguirmos vendê-la. — respondo. — Vamos subir? A assistente disse que as coisas estão no quarto. Ana, acenda as luzes, por gentileza.

Nós duas subimos os seis degraus até o primeiro andar. Não era muito grande como meu atual apartamento, mas era confortável e na época bastante acolhedor. Havia dois quartos, um que era nosso e o segundo que funcionava como homework a noite para Alex e sala de estudos durante o dia para mim. Em algum lugar no futuro um dia funcionaria como o quarto que nossos dois filhos viriam a dividir.

— Como anda o processo de venda da casa? — pergunto. Tinha deixado tudo para a senhora May, desde a propriedade até a decisão de vendê-la.

Ambas percorremos o corredor cor salmão, antes decorado com quadros de artistas clássicos que o próprio Alex tinha impresso pelo site de domínio público, moldurando e magnetizado a parede. Nós duas paramos em frente à primeira porta.

— A maioria dos jovens hoje estão buscando por apartamentos. São mais modernos, práticos e com uma melhor segurança. — disse ela. A mão segurando firme na maçaneta. — Ainda assim, tive algumas pessoas interessadas em visitá-la, mas nenhuma me pareceu adequada para morar aqui. Você quer abrir?

A senhora May se afastou perguntando. Imaginei que talvez ela não conseguisse fazer aquilo, nem sobre a porta do quarto do filho e nem sobre a casa.

— A senhora sabe que se quiser se mudar para cá e morar aqui eu estou completamente de acordo.

May acenou com a cabeça.

— A senhora não fica me devendo nada. — Achei necessário ressaltar. — Sabe disso.

— Eu não conseguiria. — disse. Um flash de dureza brilhou em seu olhar. — Não sem o meu Alex aqui.

O relógio bipou no pulso de ambas.

— Falta pouco para o toque de recolher. Vamos só pegar as coisas e irmos embora. — completou May.

Eu sentia como se minhas mãos estivessem coladas na maçaneta e antes que a coragem se esvaísse do meu corpo como a água do choveiro dentro do box, girei-a e empurrei a porta.

          O quarto ainda tinha a mesma tinta de todos aqueles anos, mas estava preservado como o resto da casa. Eu e a senhora May zelavam pela manutenção mesmo que só uma de nós retornasse ali de vez em quando. A última vez em que eu havia pisado os pés alí tinha sido no dia do assassinato quando ainda moravamos juntos e eu estava fazendo o nosso jantar e no dia do velório. Como a senhora May, não consegui continuar ali sem o Alex. A terapia me ajudou e muito a lidar com tudo, mas para a mãe do Alex mesmo com todo o tratamento, infelizmente, era uma dor que a seguiria para sempre.

Ela sentou na cama de casal coberta por lençóis e para a nossa surpresa, de tudo que foi levado da casa para inspeção, nos enviaram de volta três caixas. O suspiro, não se de alívio ou desesperança, saindo da senhora May foi quase palpável. Cinco anos depois e finalmente eles haviam liberado os pertences do Alex. Era quase como se estivéssemos o enterrando outra vez. Ou até mesmo retirando-o da cova.

— Pelo horário acho que não vai dar para abrirmos tudo aqui. Podemos levar para minha casa e abrirmos juntas amanhã se você quiser.

— Certo. Eu vou carregando as caixas para o andar de baixo. — Eu só queria sair daquele quarto o mais rápido possível.

Me doía imaginar que se aquele Externo não tivesse o matado, Alex ainda estaria conosco. Poderia ter sido qualquer outra pessoa, em qualquer outro lugar e horário, mas não. Tinham levado o Alex. Arrancado ele de nossas vidas sem aviso prévio. Não tinha noção do quanto isso ainda era capaz de me afetar.

Apoio a segunda caixa no porta-malas e enxugo os olhos. Retorno para o antigo quarto que compartilhei com Alex, onde sua mãe ainda se encontrava de pé na sacada, olhando para além da mureta. O céu noturno se estendendo como um véu negro além de onde suas vistas fossem capaz de alcançar. Dos prédios modernos as casas aconchegantes, o que mais chamava a atenção eram os quatro arranha-céu, onde se localizavam os quatro poderes governamentais e a Casa Governamental — morada do governador e seus familiares. Como se fossem quatro torres gêmeas tocando o céu, elas se destacavam bem no centro da cidade, cheias de luzes, jardins florais verticais, todas em uma única cor branco gélido. Eram como um parafuso de chumbo e vidro dando voltas em si mesmas. Fascinante. A própria luz prateada que saíam pelas milhares de janelas refletiam no lago onde o mesmo foi erguido.

— Alex adorava essa vista. — digo. — Ele podia passar horas bem aqui de pé encarando o mundo lá fora.

Mais uma lágrima escorreu pelo rosto da senhora May.

— Eu sinto muito.

— Sente menos do que eu.

— Como assim? — pergunto, petrificada com as mãos na varanda.

— Você parece ter superado tão rápido. — Sinto o olhar pesado da mãe do Alex.

— Eu... — Preciso respirar fundo. — Não acho que superei rápido. Ainda estou superando. Não pense que porque tenho um novo relacionamento que eu apaguei o Alex da minha vida e esqueci o que vivi com ele.

Quando a senhora May não me diz nada, a observo. Seus olhos parecem mais duros e sofridos do que da última vez que a vi.

— Eu fiz o que o governo nos recomenda. Buscar tratamento. A senhora tem ido a terapia?

— No início sim.

Espero que ela dê continuação, mas a frase paira no ar.

— Eu fui desde o enterro do Alex até receber alta. Foi de grande ajuda. — digo, os dedos das mãos espalhados sobre o parapeito, como Alex costumava fazer. — Eu ainda tenho os meus problemas. Não é porque não os deixo transparecer que eles não existam.

O alarme do relógio toca notificando que faltam 15 minutos para o toque e nós duas ainda não estamos em nosso endereço de residência.

— É melhor irmos, senão seremos multadas e eu levarei pontos na minha carteira. — Volto para o quarto deixando a senhora May sozinha na sacada. Pego a última caixa no chão e viro-me para a porta. — A senhora vem?

Antes de segui-la escada abaixo olho uma última vez para a porta fechada do segundo quarto. Queria que tivéssemos mais tempo para dar uma última olhada nele. Era o lugar onde eu mais compartilhava do tempo com Alex.

           O percurso até a casa da senhora May foi silencioso. Eu estava ciente de que restavam apenas cinco minutos para conseguir chegar na minha própria casa.

— Qualquer coisa telefone. — digo a senhora May. — Sabe que para o que precisar estou aqui, desde uma xícara de café até buscar mais caixas como estas.

— Obrigada, querida e me desculpe por mais cedo. Eu sei que você ainda sente muito. O que eu quis dizer é que sinto ainda mais. Eu sou mãe... Não tenho como procurar no blend um outro Alex para colocar no lugar.

— Eu entendo. — Hannah aperta o volante e liga o carro. — As coisas entre nós não mudaram para mim.

— Para mim também não.

            No meio do caminho recebeu uma vídeo chamada de Oliver, ele estava em sua casa e queria lhe encontrar. Havia suas vantagens em ser o filho da desembargadora.

Continue Reading

You'll Also Like

42.9K 4.5K 16
| DANNA, uma JOVEM DESTEMIDA e IRREVERENTE, cresceu em um ambiente de opulência, onde vestidos caros e conforto eram a norma. No entanto, sua vida...
371K 21.1K 61
E se Klaus e Hayley não tivesse apenas um bebê? E se Hope Mikaelson tivesse uma irmã? E se essa irmã fosse rejeitada por quase toda família? Katrina...
9.4K 695 39
"Depois de muito relutar, de muito brigar e de muito desdenhar, me vejo aqui, completamente entregue à loucura que é amar ele."
5.5K 246 6
✿︎| 𝙻𝚒𝚟𝚛𝚘 𝚍𝚎𝚍𝚒𝚌𝚊𝚍𝚘 𝚊 𝚒𝚖𝚊𝚐𝚒𝚗𝚎𝚜 𝚙𝚛𝚘𝚝𝚊𝚐𝚘𝚗𝚒𝚣𝚊𝚍𝚘𝚜 𝚙𝚎𝚕𝚘𝚜 𝚙𝚎𝚛𝚜𝚘𝚗𝚊𝚐𝚎𝚗𝚜 𝚍𝚊 𝐬𝐨𝐧𝐬𝐞𝐫𝐢𝐧𝐚. Sᴏɴsᴇʀɪɴᴀ...