Kit desliza pelo banheiro cheio de sabão, as bolhas voando ao seu redor ao passo que ela dança ao som da música animada que ela colocou na caixa de som no último volume.
Ela solta sua magia pelo banheiro, e as esponjas e escovas ganham vida e começam a limpar as paredes e chão sozinhas, enquanto o balde joga água para tirar o excesso de sabão, fazendo mais bolhas flutuarem ao redor de Kit.
Limpar a casa nunca foi mais divertido.
Ela sai do banheiro, deixando os objetos de limpeza fazerem seu trabalho sem ela, e vai até a sala, secando suas pernas molhadas com uma toalha.
Normalmente, Jade e ela deixam que a empregada que elas contrataram limpar a casa, mas hoje Kit estava se sentindo triste, então ela resolveu fazer o trabalho ela mesma, ocupar sua mente com outra coisa que não fosse seus pensamentos depressivos.
Ela já havia terminado a maior parte da casa, e agora só faltava o porão.
Kit ainda não entendia porque casas antigas assim precisavam ter porão, era um cômodo tão inútil, mas ela achava que, se não o tivessem, não teriam espaço para todas as coisas que Jade colocava lá.
Ela suspira, ela mesma havia escolhido morar aqui, então ela não podia reclamar.
Ela e Jade haviam se mudado de volta para a capital de Tir Asleen no último ano, depois de ter passado um ano inteiro morando em uma cabana nas florestas de Gallardon, a mesma cabana que séculos antes elas costumavam viver.
Elas precisavam de um tempo só pra elas mesmas, ambas estavam de luto por seus pais, e Kit não estava civilizada o suficiente para viver em meio a sociedade ainda, seu primeiro ano como vampira foi incrivelmente difíceis para elas, às vezes, Kit acordava de manhã jogada no meio da floresta, envolta de uma poça de sangue, com alguma vítima morta ao seu lado, a maioria das vezes, eram apenas animais, mas as vezes que ela acordava ao lado de um rosto humano desfigurado eram as mais difíceis.
Levou muito tempo e treinamento para que ela pudesse aprender a se controlar, mas ela conseguiu, e logo em seguida, ela e Jade decidiram que estavam prontas para serem colocadas de volta na sociedade, perto de outras pessoas.
Então elas voltaram pra capital, e Jade assumiu a liderança do coven de Agnar, que havia permanecido sem líder, esperando pela volta dela, todos eram surpreendentemente gratos a elas por o que fizeram.
Eles queriam que ambas morassem com eles na mansão de Agnar, mas até mesmo Kit achou que estava cedo demais pra isso, havia lembranças demais ali para que ambas pudessem sequer ficar por algumas horas, imagina viver ali.
Então escolheram viver numa casa dentro de uma calma vizinhança à leste da cidade, tendo Airk como seu vizinho.
Graças à isso, o irmão de Kit praticamente vivia com elas, Airk estava sempre por perto, e nenhuma dela se incomodava com isso, principalmente por causa do seu estado nos primeiros meses em que elas se mudaram pra cá, por causa de tudo o que ele viveu durante a guerra, o irmão gêmeo de Kit desenvolveu transtorno de estresse pós-traumático, ele tinha pesadelos e sons de pessoas chorando ou gritando engatilhava tiques e tremedeiras nele, e toda vez que ele via Kit em dor, ele começava a chorar e às vezes até desmaiava.
Kit não conseguia não se sentir culpada por isso, ela sabe que não é sua culpa, mas ela sente que o trauma de Airk é porque ela não teve mais cuidado com ele.
Então ela deixava que ele fizesse o que quisesse, e graças aos deuses, Airk não era sufocante, ele era o tipo de pessoa que você queria por perto, e ele respeitava muito a intimidade e privacidade dela e de Jade.
Kit suspira ao sair de seus pensamentos, ela tinha que terminar essa faxina até o meio da tarde.
Ela abre a porta para o porão, pulando os degraus ao descer no escuro, ela bate a mão no interruptor e é abençoada com a visão da bagunça do porão, poeira e cheiro de coisas velhas.
Ali dentro, Jade havia guardado tudo o que sobrou de seus tesouros, objetos e cartas e roupas que pertenceram à ambas durante os séculos, havia também uma sessão só para as coisas de Agnar, ao qual Kit às vezes pegava Jade sentada ali, abraçando uma das jaquetas dele ou lendo um dos diários de bordo que ele escreveu na época em que ambos se conheceram.
A couraça kimeriana também estava ali, dentro de uma vitrine de vidro para que não juntasse pó.
Kit hesita, ela sente que ela devia fazer isso com Jade, pra saber o que ela podia jogar fora ou não, havia muitas memórias naquele cômodo e ela não queria ferir sua amada ao jogar fora algo que fosse importante a ela.
Ela se aproxima de um dos armários, há dezenas de caixas ali, com cartas e jóias que pertenceram à ela a muitos anos, ela não tinha interesse em nenhuma delas, elas já sabia todas as cartas de cor, e nenhuma pedra preciosa valia mais do que ela já tinha.
Ela franze o cenho ao ver uma pequena caixa cinza escondida atrás das outras, ela nunca havia visto essa.
Kit pega a caixa e limpa a poeira em sua tampa antes de abri-la, o cheiro de papel velho fazendo-a espirrar.
Ela reconhece as caligrafias nas cartas no mesmo instante, apenas algo muito poderoso a faria esquecer das letras de seus pais.
Eram cartas de Madmartigan para Sorsha, de quando ele foi atrás da couraça kimeriana, antes de desaparecer.
Kit se senta para ler uma das cartas, e ao passo que ela lê, seus olhos se enchem de lágrimas.
"Querida Sorsha, tudo está indo bem, Boorman e Allagash e eu encontramos uma pista sólida de onde a couraça pode estar, dentro de um túnel secreto dentro de Skellin!
Nós acabamos de passar pela Wildwoods, onde nós encontramos alguns velhos amigos que nos deram essa informação valiosa.
Enfim, pulando tudo isso, eu queria dizer que sinto muito sua falta, meu amor, eu tenho sonhado em acordar ao seu lado novamente, com suas ondas douradas em meu travesseiro, meu coração tem se angustiado com a sua falta...
Eu também sinto tanta falta das crianças! Sinto falta de Airk e a risada alegre de bebê dele, de abraçá-lo e beijá-lo e de cavalgar com ele...
E sinto falta de Kit, minha pequena guerreira mau humorada, eu até sinto falta dos tapas ardentes que ela dá quando está estressada ou frustrada, ela é a bebê mais fervorosa que eu já conheci! E eu digo que ela puxou isso um pouco de você, eu posso ver que ela vai se tornar tão teimosa e certa de si quanto você e estou tão orgulhoso disso.
Eu fico triste ao saber que estou perdendo vê-los crescer, mas eu sei que minha missão é importante e irá ajudar a salvar todos nós.
Eu só gostaria que o tempo passasse mais rápido, estou ansioso para retornar pra minha família, tudo o que eu desejo agora é estar com vocês.
Com amor, Madmartigan"
Kit seca suas lágrimas, ela não tinha percebido que ela também sentia falta de Sorsha e Madmartigan, ela já teve tantas mães e pais diferentes, e cada um deles marcou tanto sua vida...
Ela não via os pais que a trouxeram a esse mundo nesta vida a quase três anos, ela percebe, seus nomes são Leon e Inya, e viviam numa pequena fazenda longe dali.
Eles mereciam alguma explicação sobre seu sumiço.
Ela podia não ter mais Cherlindrea ou Sorsha ou Madmartigan, mas ela ainda tinha Leon e Inya, e eles logo partiriam também, ela se odiaria se não aproveitasse cada momento restante que ela tem com eles.
Kit guarda a caixa e sai do porão, esquecendo-se de sua faxina e indo buscar seu telefone, ela disca o antigo número com pressa e espera, ansiosa.
Seu coração quase sai pela sua boca quando o telefone é atendido e uma voz cansada e grave responde:
— Aqui é Leon, quem é esse?
— Oi pai — Ela diz — Sou eu, Kit, posso falar com você?
+++
Jade para o carro em frente à casa de Elora e Graydon, ambos viviam no centro da cidade, perto de Boorman e Scorpia.
Hoje é o chá de revelação deles, a notícia de que Elora ia ser mãe foi uma das grandes surpresas desse ano para Jade.
Kit pega sua bolsa e tranca as portas do carro, impedindo ambas de sair.
Jade se vira para Kit.
— Você está bem?
— Uhum — Kit diz e respira fundo — Eu tenho algo pra te dizer.
— Você também está grávida? — Jade brinca
— Não — Kit ri dando um empurrãozinho nela — Você é tão boba.
Jade se vira pra ela.
— Eu sou toda a ouvidos.
Kit toma fôlego e diz:
— Eu... convidei meus pais pra vir morar aqui na capital — Ela desvia os olhos — É claro que eles vão ter a própria casa deles, mas eu... — Ela dá de ombros — Eu quero eles por perto, sabe? Eles já estão velhos e eu sinto que não vai demorar muito antes que eles estejam mortos também e eu quero... — Ela olha pra Jade — Quero ter certeza de que pelo menos eu fiz o certo por meus pais em pelo menos uma das minhas vidas.
— Ei — Jade pega a mão de Kit — É claro, seria maravilhoso tê-los por perto, mas não diga algo assim, eu tenho certeza que todos os que vieram antes deles também foram muito orgulhosos da filha que eles tiveram, Cherlindrea... — Ela hesita, a emoção a atinge — Eu tenho absoluta certeza de que ela foi a que mais se sentiu orgulhosa de você.
Kit assente a abraça Jade forte.
— Eu amo você.
— Eu também te amo — Jade diz e sorri beijando o rosto de Kit — Acho melhor a gente ir, Elora tem estado um ninho de nervos com essa gravidez.
Kit sorri e assente, ambas saem do carro.
Scorpia é quem abre a porta, e ela as cumprimenta com um grito alto e alegre, sufocando Jade num abraço.
— Ela já está bêbada? — Ela pergunta a Boorman que tem em suas mãos uma garrafa de cerveja.
Ele dá de ombros.
— Ei eu não controlo sua irmã, é ela quem me manda, o que eu posso fazer?
Jade revira os olhos e leva sua irmã pra longe da porta, Airk está largado no sofá,comendo bolos, há mais algumas pessoas conhecidas ali, amigos da instituição onde Graydon e Elora trabalham, alguns vizinhos e seus familiares.
— Eu não tinha percebido que eles eram tão populares — Kit sussurra para Jade, sorrindo — Senhorita muffin é uma estrela, uau.
Jade franze o nariz e ri.
— Isso foi tão azedo de você — Ela diz .
— Eu sei, desculpe — Kit ri
— Vocês chegaram! Ainda bem! — Elora surge de trás delas, dando um abraços em ambas, sua barriga redonda se colocando entre as duas namoradas — Eu achei que vocês tinham esquecido, o que levou tanto pra chegarem aqui?
— Eu fiquei presa com um conflito no clã — Jade diz, acariciando as costas de Elora — Desculpe, como você está?
Elora estica seus braços sobre sua cabeça e faz uma careta.
— Dolorida — Ela diz — Minhas costas doem tanto, parece que estou carregando gêmeos — Ela arregala os olhos.
Kit solta uma gargalhada.
— Bem então eu te desejo uma boa sorte — Ela acaricia a barriga de Elora e se inclina pra falar com o bebê — Se você vier em dois, eu vou roubar um de vocês só pra mim.
Elora dá um tapinha na mão de Kit que ri e se afasta.
— Elora! — Graydon chama — Vem! Já está na hora!
Ela sai correndo, chamando todos pro lado de fora, Kit e Jade aproveitam que a casa se esvazia pra escapar até a cozinha, para abrir a bolsa de Kit e tirar uma das bolsas de sangue de lá, ela derramam o sangue dentro de copos de plásticos coloridos e com tampa pra que ninguém visse o que elas estavam bebendo, tudo o que elas não precisavam era uma crise na festa de Elora.
Depois disso, ambas vão ao lado de fora, onde Elora e Graydon estão ao lado de uma bola de cristal sobre uma mesa, a bola é do tamanho de um microondas, e dentro dela brilha uma névoa branca.
Ambas observam enquanto Elora e Graydon fazem um encanto para dar uma espiada no futuro.
Logo, a névoa se dissipa e o rosto de uma menininha surge, ela está correndo por um longo quintal, que Jade reconhece ser o quintal da casa de Elora e Graydon no campo, ela veste um par de calças largas e seu cabelo cacheado e ruivo se balança no vento, atrás dela, correm Kit e Elora, brincando com a garotinha.
Os convidados gritam e estouram rojões, a cor rosa explodindo pra todo lado ao passo que Elora e Graydon comemoram, ambos teriam uma filha muito em breve.
— Parece que você vai ser uma tia babona — Jade provoca Kit, que revira os olhos e tenta segurar um sorriso.
Elas dão parabéns para o casal, Elora não consegue parar de chorar nem por um minuto, até que Graydon precisa levá-la pra dentro pra se recuperar.
Todos acabam retornando pra dentro da casa, e apenas Kit e Jade ficam do lado de fora, olhando o céu estrelado e bebendo o sangue em seus copos.
Kit pega Jade a observando com olhos brilhantes, ela parece ter corações no olhos, o que faz Kit rir.
— O que foi?
— Você é tão linda — Jade suspira.
Kit cora e desvia os olhos, milhares de anos poderiam se passar, mas ela nunca não se tornaria vermelha com qualquer elogio de Jade.
— Eu tenho um presente pra você — Jade diz, pondo a mão em seu bolso e tirando de lá duas caixinhas uma chata e longa e a outra, simples e antiga — Eu pensei em te dar uma outra hora, mas estou ansiosa demais pra isso.
— Hm — Kit diz — Jade Claymore ansiosa? Eu nunca vi isso.
Kit abre a primeira caixa e abre um enorme sorriso ao reconhecer seu antigo colar de jade, aquele que ela havia feito para que pudesse ter Jade sempre consigo.
— Você o guardou — Ela diz pegando o colar em suas mãos e o passo por sua cabeça, o cordão de corda fina fora refeito — Obrigada meu amor.
Jade sorri e põe as mãos em suas costas ao entregar a outra caixa para Kit.
Kit demora um minuto pra reconhecer a caixa familiar, a mesma que ela pegou quando Jade a levou para seu escritório pela primeira vez, o que parecia ser eras atrás.
Os dedos de Kit tremem quando ela abre a caixa e vê os dois anéis lá dentro, as antigas alianças delas.
— Eu suponho que apesar de essa ser uma vida diferente, nossos votos ainda estão valendo — Ela pega a mão de Kit e entrelaça seus dedos com os dela — Então... você estaria interessada em renovar nosso casamento?
Kit abre um enorme sorriso.
— Sim — Ela puxa Jade e envolve seu rosto com suas mãos — Eu adoraria.
Elas se beijam, ternura e consolo às envolvendo como um cobertor quente, elas finalmente se encaixam, como se tudo o que elas viveram tivesse sido por causa daquele momento bem ali, Kit não consegue parar de sorrir e ela sussurra "Eu te amo" repetidas vezes entre os beijos de Jade.
Elas são interrompidas quando um grito alegre ecoa de dentro da casa, trazendo-as de volta à realidade.
— Eu acho melhor irmos pra dentro — Jade diz contra os lábios de Kit.
Kit assente e põe a caixa com os anéis no bolso.
— Seria melhor que Elora não soubesse disso ainda — Ela se explica — Hoje a noite é dela, não quero roubar a luz dela com essa notícia, ela merece tê-lo.
Jade assente e a puxa para um último beijo antes de ambas entrarem pra dentro, não apenas para a festa e a comemoração, mas para seu final feliz merecido, para o futuro pacífico que as aguardava de braços abertos.
Nenhuma das duas amantes viu a bola de cristal brilhar uma última vez, dando glitches do futuro que ninguém pediu, e apenas o vazio do quintal recebeu a visão de um conhecido portal ser aberto, como se as portas do inferno tivessem sido abertas e dezenas de monstros saírem de lá, e atrás de todos eles, uma figura envolvida em escuridão caminha para dentro do mundo, o próprio Wyrm camuflado como uma réplica idêntica de Kit.
A bola de cristal falha e se apaga, encerrando a visão do que o futuro alternativo podia ou não os aguardar.