Os Guerreiros do Destino

By felipe_gcz

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🧙 RPG 🦖 Batalhas ✨ Magia 💥 Aventura Seis improváveis companheiros são unidos pelo destino, aventurando-se... More

Notas e Avisos
Personagens
1 - As engrenagens começaram a rodar
3 - Uma lenda viva
4 - A dura realidade
5 - A cidade que nunca acorda
6 - Uma incursão perigosa
7 - A queda
8 - O Cristalário Colorido
9 - A manipulação
10 - Dunascas
11 - Custe o que custar
12 - Os Cristais do Poder
13 - Uma nova habilidade

2 - Um teste de habilidade

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By felipe_gcz

Hiner começou o dia como sempre: levantou da cama cedo, fez alguns exercícios em casa e preparou o café da manhã. Uma panqueca de banana e um suco preparados na hora. O segredo do sucesso eram rotina, treino e planejamento, ele sempre dizia. A parte do treino e planejamento ele tentava manter em dia, mas a rotina iria se tornar difícil dali pra frente.

Ele olhou o calendário que estava sobre a geladeira. Os próximos cinco dias estavam todos circulados. Ele nem precisava ter marcado esse lembrete, as datas estavam marcadas em sua memória como uma cicatriz, mas Hiner tinha uma atração pelo drama. Qual a graça de fazer algo se não puder ser um espetáculo?

O cheiro da panqueca o acordou de suas maquinações. Hiner a virou com uma espátula, ajustando a temperatura do cristal de fogo. Essa era uma boa analogia dos seus planos. Controlar a intensidade das suas ações, mudar o lado das pessoas envolvidas, ajustar o preparo de acordo com a situação... Tudo a seu tempo, manipulando as pessoas certas. O uso de violência, por mais que não fosse de seu agrado, seria necessário. Ele acabaria matando algumas pessoas no trajeto, mas era um preço que ele estava bem disposto a pagar. Não era como se ele nunca tivesse matado alguém antes.

Hiner terminou sua refeição e permaneceu sentado. Seu reflexo na janela o fez lembrar que ele já não era tão jovem. Sua barba cerrada e cabelos pretos penteados para trás davam um ar de seriedade, enquanto seus olhos verdes brilhavam tanto quanto sua acuidade mental. Hiner era uma pessoa atraente, com uma pele levemente bronzeada e um sorriso convidativo. Mas poucas pessoas o viam de perto, já que ele era extremamente recluso. Era o único modo de viver, já que Hiner era procurado por toda Kairos, com uma rica recompensa pela sua captura.

Hiner era a pessoa mais conhecida de todo o planeta, atrás somente de Baruc. Enquanto um era conhecido pelas suas invenções revolucionárias, tecnologias inovadoras e benfeitorias a toda a população, o outro era quase um ser mitológico. Nada se sabia ao certo sobre a origem de Hiner, mas as estórias contavam que se tratava de um Bruxo das Trevas extremamente poderoso, capaz até de manipular a energia dos cristais e Criaturas. Moradores de diferentes cidades contavam que ele aparecia aleatoriamente, atacando a população, sem motivo aparente.

Hiner olhou novamente para o calendário, levantando-se rapidamente. Ele terminou de se arrumar, antecipando todo seu planejamento diário. Ele colocou a mão na maçaneta da porta, fechou os olhos e disse:

— Aestus e Orkan, espero que estejam preparados para mim.

Aestus acordou no horário habitual, bem cedo, deitado de barriga para cima, abrindo seus olhos lentamente. Seu quarto estava uma penumbra agradável, até dava vontade de continuar dormindo. Mas, mesmo que quisesse, Aestus era uma pessoa de costumes rígidos, não sendo capaz de dormir um minuto a mais. Ele não se levantou, no entanto, repassando os acontecimentos da noite anterior na sua mente. Sua amizade mais antiga havia acabado e por sua culpa.

Ele se virou de bruços, colocando seu travesseiro enorme sobre sua cabeça, como se pudesse abafar seus pensamentos. O silêncio do seu quarto contrastava com a balbúrdia que eram seus pensamentos, sua culpa. Realmente achava que iria "consertar" Orkan, que iria "salvá-lo". E ele foi desmascarado ontem, da maneira mais estúpida. Orkan conseguiu ler suas atitudes em um instante. E ainda atribuiu tudo isso à morte de seus pais.

Não era como se ele estivesse completamente errado. Aestus ainda não tinha processado esse fato completamente, mas a verdade é que desde criança ele se importava com justiça, com fazer tudo certo. O mundo seria um lugar melhor se as pessoas fossem mais justas. Comanse era uma cidade predominantemente formada de Humanoides, mas havia outras raças pelo planeta. Kairos contava com cinco raças distintas, com suas rixas e dívidas históricas entre si. As relações entre elas podiam ser descritas por várias palavras, "pacífica" não era uma delas.

Aestus pensava sobre as relações interpessoais e interraciais quando ouviu um ruído ao longe. Ele retirou o travesseiro de sua cabeça, achando que poderia ser sua imaginação. Olhou ao redor no quarto, tentando achar a origem do ruído. Sua cama ficava bem no meio do quarto espaçoso. Era uma cama larga e muito macia, com lençóis bem brancos. À sua esquerda estava o armário de madeira escura fechado, com todas suas roupas dobradas e organizadas, e sua armadura pendurada, que estava necessitando urgente de reparos. À sua direita estava sua escrivaninha, simples, mas resistente, com tudo em seu lugar, com a porta do quarto, fechada.

Aestus ouviu novamente o ruído, tratando-se de duas batidas leves em sua janela. Ele conseguiu ver que a luz que vinha das persianas estava coberta por alguma forma, o que não fazia sentido, uma vez que seu quarto ficava no piso superior de um sobrado. Aestus se levantou, curioso, puxando seu lençol para o lado. Ele destravou a janela e a abriu, dando de cara com Orkan, pendurado no batente da janela, comendo uma maçã.

— Ah, você tá acordado, que alívio. Achei que eu ia ficar pendurado aqui a manhã toda, esperando você despertar da sua provável depressão.

Orkan disse isso já pulando para dentro do quarto, agilmente. Ele estava bem arrumado, com seus cabelos loiros bem penteados, repartidos no meio. Sua barba por fazer dava um certo charme, contribuindo para o ar de cafajeste que ele tanto cultivava.

— Você não vai se arrumar? Achei que você já ia tá pronto e alimentado essa hora, — Orkan disse, terminando de comer sua maçã. — Mas seu peitoral e abdômen estão sensacionais, amigo. Depois me passa seu treino.

Aestus só então se deu conta que estava só de short do pijama. Ele nunca esperava receber uma visita pela janela, ainda mais de Orkan. Mas o corpo de Aestus era realmente incrível, com uma massa muscular maciça e uma definição impressionante. Ele treinava, obviamente, mas seu grande porte era principalmente devido à sua Classe.

— Orkan, eu não tava esperando você... Eu...

— Você se arrepende do que disse e acha que eu sou uma pessoa incrível, eu sei, — Orkan interrompeu, pegando no ombro de Aestus com uma mão. — Tudo bem meu amigo, eu te perdoo. Agora vamos lá ganhar uns cristais.

Aestus estava atônito. Ele sabia que Orkan era uma pessoa rancorosa e sem paciência. Era pouco provável que ele tivesse resolvido sua raiva em tão pouco tempo. Além do mais, seu amigo havia dito palavras muito duras ontem. Não era como se só Aestus fosse culpado. Ele continuou pregado no lugar, tentando decidir o que fazer ou falar. Orkan pareceu decifrar os pensamentos do amigo.

— Olha, agora falando sério. Nós dois fomos bem idiotas ontem. A gente falou coisas sem pensar muito. Você me machucou bastante então eu falei o que achava que poderia te afetar bastante. Foi só um mecanismo de defesa, me desculpa.

— Eu também não acho que você precisa ser consertado, amigo, — Aestus respondeu, baixando a cabeça.

— Ah, não. Eu sou uma bagunça mesmo! Hahahaha — Orkan riu alto, abanando o ar. — Você só me pegou de surpresa. Eu sei que vemos o mundo de maneira diferente e tá tudo bem, — ele passou a mão na cabeça de Aestus.

— Você ainda quer ser meu companheiro de Caçadas então?

— Mas é óbvio, amigo. Quem mais me aguenta nessa cidadezinha? — Orkan se sentou sobre a cama, alisando o lençol por instinto. — Agora vai se arrumar que temos uma Corça Flamejante pra caçar.

Aestus havia criado uma esperança leve que seu amigo tivesse desistido dessa Caçada, mas era óbvio que esse não era o caso. Aestus se arrumou rapidamente, trocando de roupa e pegando um sanduíche para comer no caminho e oferecendo outro para Orkan. Eles saíram da casa de Aestus logo em seguida, sem perder muito tempo. O Cavaleiro precisava desabafar algo antes de continuar, no entanto.

— Ok, Orkan. Você me convenceu: vamos fazer essa Caçada. Só que eu quero que fique bem claro que eu ainda acho errado o que estamos fazendo. E também acho que corremos o risco de sermos expulsos da Guilda. Mas... -— Aestus parou, não sabendo se devia falar.

— Mas o desafio é bem atraente e você acha que é capaz de conseguir, — Orkan completou o raciocínio do amigo. Aestus só confirmou com a cabeça, com um movimento praticamente imperceptível. — Eu te conheço bem demais!

Os dois amigos andaram animados pelas ruas da cidade. Comanse era um vilarejo muito agradável, perfeito para morar quando se queria um lugar tranquilo, o que era o completo oposto do que os dois jovens sonhavam. Eles eram apaixonados por emoção e aventura, desde crianças.

O Ladino e o Cavaleiro saíram do bairro residencial, onde a casa de Aestus ficava, com casas bem cuidadas ostentando jardins amplos, alcançando um bairro mais comercial. Ali, os imóveis eram mais próximos uns dos outros, mas ainda assim conseguiam ser bonitos e acolhedores. Aestus entrou em um Ferreiro, que havia acabado de abrir o comércio. Orkan entrou logo atrás.

O interior do estabelecimento era bem típico de um Ferreiro tradicional, o que contrastava bastante com alguns equipamentos tecnológicos encontrados ali. As invenções e descobertas que Baruc trouxe a Kairos revolucionaram rapidamente o modo como as pessoas viviam, causando essa mescla de ambientes. O Ferreiro contava com ferramentas antigas e fornos de alvenaria, mas também possuía aparelhos modernos e umas geringonças que Aestus nem conseguia determinar a função. A energia dos cristais era responsável pelo funcionamento de muitas máquinas, com uma mistura de ciência e mágica.

— Dois jovens Caçadores, eu presumo, — o Ferreiro disse, ao ver os rapazes entrando em seu comércio, analisando suas vestes e armaduras danificadas. Ele era um homem baixo e muito forte, completamente careca e com um cavanhaque desenhado.

Os dois confirmaram, explicando por cima o que havia acontecido, pedindo um reparo, além de uma vistoria em suas armas. Orkan e Aestus materializaram suas armas, apresentando-as ao profissional. Ele examinou a espada longa e o par de adagas com atenção, testando as lâminas e empunhaduras. Em seguida, ele informou:

— Suas vestes e armaduras realmente precisam de um reparo completo, mas as armas estão em bom estado. Eu posso melhorar elas, se quiserem. Vão conseguir lutar melhor, derrotar Criaturas mais fortes. Pode ser?

Os dois confirmaram, depois de verificar o preço cobrado. Eles podiam pagar sem preocupações depois de todos os contratos do dia anterior. O Ferreiro então se concentrou, usando suas habilidades. Uma luz vermelha intensa saiu de suas mãos em direção às vestes e armaduras dos Caçadores. Em instantes, era como se os itens tivessem sido fabricados naquele momento. Até o cheiro era de novo. Ele então foi trabalhar nas armas, segurando primeiramente a espada de Aestus pelo cabo com a mão esquerda. O Ferreiro ergueu sua mão direita, fazendo surgir um martelo feito de luz vermelha. Ele bateu na lâmina da espada por duas vezes, fazendo sair fagulhas rubras do local de impacto. O mesmo foi feito com as adagas de Orkan. O homem então analisou as armas, orgulhoso de seu serviço.

— Suas armas são simples, mas muito bem feitas, parabéns. Eu achei muito interessante esse cristal aqui, — o Ferreiro disse, apontando para a base da empunhadura da espada de Aestus. — Ele tem alguma energia? Eu não consegui perceber nada.

— Na verdade, não. É uma herança de família, então eu quis ter sempre por perto, — Aestus explicou.

O Ferreiro pareceu decepcionado com a explicação, mas não disse mais nada. Ele só cobrou pelo trabalho e os rapazes saíram do local, felizes com a agilidade do serviço. Eles passaram também em uma loja de poções, estocando algumas de cura e algumas contra queimaduras. A caçada de hoje prometia muitos ferimentos. Eles agora estavam prontos para o desafio, o teste de suas habilidades.

Orkan checou o endereço da contratante, verificando se tratar de uma Sra. Dessine que morava em uma fazenda grande no leste da cidade. Orkan e Aestus correram até o local, em uma velocidade controlada, a fim de se aquecerem e preparar a musculatura. A propriedade era bem bonita e cuidada, com uma grande casa de dois andares ao lado de uma árvore imensa. Havia uma mulher de meia idade muito bonita saindo pela porta, usando um avental vermelho escuro e um lenço marrom na cabeça, combinando com seu cabelo amarrado em um rabo de cavalo impecável. Ela viu os rapazes chegando e se aproximou, limpando as mãos no avental.

— Bom dia! Pelas vestes vocês parecem ser Caçadores. Vieram pelo contrato que eu coloquei lá, né? — Ela falava muito rápido, sem dar a chance de os rapazes responderem. — Estranho, eu nem recebi um comunicado do Barthos. Mas longe de mim reclamar, vambora que eu quero esse bicho longe das minhas plantações o mais rápido possível.

Aestus controlava sua ansiedade, tentando não transparecer que estavam fazendo uma irregularidade. Mas, quanto mais ele tentava disfarçar, pior sua expressão ficava. Ele parecia até que sentia uma dor de verdade, franzindo o cenho e apertando os lábios. Orkan, percebendo o sofrimento físico e mental do amigo, tomou a frente da conversa:

— Sim, somos nós. A gente já é Caçador faz um tempo e essa caçada vai ser algo bem simples. Aqui está o contrato, — Orkan mostrou o papel subtraído da Guilda rapidamente, — e já vamos lá resolver esse problema para a senhora. Onde a Criatura geralmente fica?

— Calma lá, peraí, — Dessine disse, estendendo a palma na direção de Orkan, como se estivesse ordenando que ele parasse. — Eu posso ter nascido sem Classe, mas eu não sou burra. Esse contrato não parece ter a assinatura do Barthos. Eu reconheço aquele garrancho de longe. Vocês são mesmo da Guilda?

Aestus entrou em desespero, suando frio. Ele não antecipou enfrentar esse problema logo antes da Caçada. Ele deu um passo para trás, vendo só as costas de Orkan. O Cavaleiro tinha certeza que seu amigo estaria tão nervoso quanto ele, mas Orkan permanecia enraizado no lugar, sem aparentar qualquer abalo. Uma leve brisa levantou os cabelos de Orkan, levando um perfume almiscarado até Aestus. Seu amigo, mesmo de costas, parecia ter uma aura dourada bem sutil. Orkan se aproximou da Sra. Dessine, segurando a mão direita da senhora. Ele olhou diretamente nos olhos da mulher, que parecia tomada de surpresa.

— Foi tudo um mal-entendido, linda senhora, — Orkan disse, com uma voz aveludada que Aestus nunca tinha ouvido seu amigo usar. Um arrepio estranho subiu em sua espinha. — O Barthos estava muito ocupado e esqueceu de assinar o documento, mas pode confiar na gente. Estamos aqui para ajudá-la — e acariciou as costas da mão da mulher.

Dessine ficou com as bochechas coradas, levando sua mão esquerda ao rosto. Ela não tirava os olhos de Orkan, como se hipnotizada. Ela então concordou com um sinal de cabeça, apontando a direção onde a Corça Flamejante estava, atrapalhando-se nas palavras. Orkan soltou sua mão e foi na direção indicada, sem olhar para trás. Aestus o seguiu rapidamente, querendo sair de perto da Sra. Dessine o quanto antes. Quando estavam longe o suficiente, Aestus perguntou:

— O que é que você fez com aquela mulher?

Orkan olhou para seu amigo, com um sorrisinho de canto de boca. Ele claramente estava orgulhoso do que havia acabado de acontecer.

— Depois das batalhas de ontem, eu senti que eu tinha habilidades novas. Aí quando aquela linda mulher colocou a gente numa enrascada, eu percebi o que podia fazer. Não são só contratos que eu consigo roubar, se é que você me entende.

Aestus fez uma expressão confusa, tentando entender. Mas logo tudo fez sentido, ele não havia percebido que seu amigo tinha colocado suas habilidades de Classe em uso.

— Você roubou o coração dela?! — Aestus perguntou incrédulo. — Eu achava que era lenda que os Ladinos conseguiam fazer isso.

— Meu cabelo perfeito e meus olhos azuis colaboram muito, mas não nego que tive que usar um pouco do meu talento Ladino.

Aestus ficou impressionado de verdade com o amigo e o quanto ele havia evoluído de um dia para o outro. Novamente, não era o certo a ser feito, do seu ponto de vista, mas isso o ajudou demais. Agora que eles já estavam tão envolvidos na Caçada, desistir não era mais uma opção. Aestus parabenizou o amigo pela habilidade e raciocínio rápido, mas pediu para se concentrarem. Uma batalha difícil estava por vir. Eles andaram por entre a ampla plantação de grãos da Sra. Dessine, sentindo a vegetação acariciar seus rostos e corpos. O sol estava subindo rapidamente, aquecendo levemente o dia. Uma rajada de vento súbita trouxe um cheiro sutil de mato queimado, indicando que a Criatura estava próxima.

Os dois Caçadores chegaram ao fim da plantação, analisando o local. Era possível ver algumas plantas comidas, além de uma grande parte delas queimada. O prejuízo causado pela Corça era bem expressivo, sendo compreensível a pressa da Sra. Dessine. Um dos pontos estava ainda com uma nuvem de fumaça subindo. Próximo a esse local, Aestus visualizou e apontou um caminho de grama chamuscada que ia em direção à floresta, indicando o provável caminho tomado pela Corça. Os amigos seguiram as pegadas da Criatura devagar, entrando na mata fechada.

A diferença de temperatura era perceptível. A sombra das árvores criava uma atmosfera mais úmida e fresca. Seguir os vestígios deixados pela Corça era mais difícil agora, já que não havia um gramado definido, sendo o chão coberto primariamente de musgo e folhas. Orkan aguçou seus sentidos, agindo quase como que por instinto. Depois de poucos minutos, o Ladino fez um sinal com a mão para Aestus parar, seguido de um dedo nos lábios, pedindo silêncio. O Cavaleiro se aproximou do amigo, olhando na direção de seus olhos. A alguns metros estava seu alvo. A Corça Flamejante era um animal muito bonito, com uma pelagem acobreada, com a ponta dos pelos como se fossem pequenas chamas. Seus finos chifres brilhavam como brasas, como se seu interior fosse feito apenas de calor. Ela estava se alimentando de alguma planta pequena, com suas orelhas balançando, soltando pequenas fagulhas.

Os dois amigos nunca haviam visto uma Corça Flamejante e aquela era realmente uma visão fantástica. Aestus tentou se aproximar para ver a Criatura melhor, porém pisou em um graveto, causando um estalo seco. A Corça levantou a cabeça imediatamente, olhando na direção dos dois com um par de olhos amarelos brilhantes. Ao fazer isso, uma grande labareda subiu, sumindo tão rápido quanto apareceu. A Criatura correu muito rapidamente na direção oposta, sumindo entre as árvores. Uma revoada de pássaros levantou voo no mesmo momento, assustados pela movimentação brusca. Aestus se desculpou, mas Orkan só fez um aceno com uma mão, sem estar chateado.

Os rapazes seguiram novamente os vestígios deixados pela Corça, com o dobro de cuidado. Porém, mesmo assim, ao se aproximar do local onde estava a Criatura, a Corça já notou a presença deles e correu novamente. Eles nunca iriam alcançá-la deste jeito. Talvez o mais difícil nessa Caçada, pensou Aestus, seja conseguir batalhar com a Corça. Eles aproveitaram para fazer uma pausa, sentados em um tronco caído. Orkan retirou duas maçãs de sua bolsa na cintura e ofereceu uma a Aestus, pensando alto:

— Ok, a gente precisa de um plano pra poder pelo menos chegar perto dessa maldita. Não esperava que ela fosse tão rápida.

Os dois rapazes estavam sentados, comendo as maçãs e trocando ideias do que poderia ser feito. O local era muito bonito, com árvores grandes e frondosas, porém ainda deixando a luz do sol passar. Era possível ouvir pássaros cantando e voando de tempos em tempos, assim como um riacho passando ao longe.

Orkan falava bastante, dando sugestões não muito pensadas, enquanto Aestus ficava mais em silêncio, criando táticas mentalmente. Por esse motivo, talvez, a amizade dos dois dava tão certo. A união dos dois extremos gerava um equilíbrio. E fisicamente eles também eram bem distintos. Aestus tinha a pele negra sem marcas, um corpo robusto e forte, com uma expressão mais séria e sorriso mais simpático. Orkan, por outro lado, possuía algumas pintas na pele clara, um porte físico mais longilíneo e sempre com um risinho sarcástico (exceto quando estava esbravejando por nada.)

Depois de terminar as maçãs, os rapazes continuaram conversando por alguns minutos e por fim decidiram qual estratégia usar. Eles conferiram seus equipamentos e as poções que haviam comprado, testaram seus materializadores e partiram na direção da Corça, seguindo a vegetação chamuscada. Eles caminharam por um trecho mais longo dessa vez, até visualizar ao longe seu alvo. Eles, então, se separaram. Aestus partiu para um lado, tentando ser o mais silencioso o possível, enquanto Orkan circundava pelo lado oposto, sempre mantendo os olhos na Corça. Ele era naturalmente mais furtivo do que Aestus, já que sua Classe tinha essa predisposição. Ele estava torcendo para aquele plano funcionar e mostrar para todos, principalmente para Aestus, que ele era capaz. Depois de alcançar o ponto predeterminado, Orkan se agachou e esperou.

Enquanto isso, Aestus chegou no local planejado, perto de uma borda da floresta, e começou rapidamente a fazer a sua parte. Ele amarrou uma corda improvisada, feita de cipós, galhos e folhas, no tronco de uma árvore de médio porte. Ele se posicionou próximo a outra árvore que estava a uma distância razoável, por onde a Corça passaria. Ele calculou mentalmente o tempo que levou, ficando contente por ter sido o suficiente. Agora só restava esperar pelos barulhos que indicariam a aproximação da Criatura e de seu amigo.

Seus pensamentos estavam a mil, tentando antecipar como seria a batalha, quais golpes poderia usar, que habilidades seriam úteis. Por mais perfeccionista que Aestus pudesse ser, gostando de ter tudo planejado e ensaiado, ele sabia lidar em momentos de improviso. Sua personalidade não era a das mais marcantes, mas isso também fazia com que ele fosse uma pessoa de fácil convívio.

Antes que ele pudesse se perder nos devaneios, Aestus ouviu um barulho de mato sendo pisoteado, crescendo em uma velocidade incrível. Ele olhou para a origem dos ruídos, por detrás da árvore onde estava, sem entregar sua posição. Ele conseguiu ver a Corça fugindo rapidamente, por entre a vegetação. Logo atrás estava Orkan, correndo mais rápido do que Aestus havia visto ele correr. O Ladino arremessava suas adagas na direção de seu alvo toda vez que ele começava a mudar de trajeto, direcionando-o para o vão entre as árvores onde Aestus estava. O Cavaleiro se posicionou, segurando uma extremidade da corda improvisada nas mãos. No momento certo, ele puxou-a com toda sua força, segurando-a firmemente, criando um obstáculo na altura do peito da Corça.

A Criatura atingiu com grande ímpeto o obstáculo, arrebentando-o. Com isso, o oponente foi jogado ao chão, rolando várias vezes pelo gramado, onde havia menos árvores que o interior da floresta. Orkan, aproveitando o momento em que a Corça se levantava, arremessou as duas adagas, acertando uma perna traseira da Criatura. Ela soltou um barulho alto e assustador, uma mistura de um grunhido e um grito, diferente de qualquer som que um animal normal fosse capaz de produzir.

Ao mesmo tempo, aquele ser mágico ardeu em chamas mais fortes, parecendo ser feito completamente de fogo, tornando-se uma figura muito mais ameaçadora do que antes. Um cheiro de folhas queimadas permeou o local, por mais que a vegetação não tivesse sido afetada. A Corça olhou na direção dos dois Caçadores, com seus olhos brilhando. Era quase possível sentir o ódio transbordando de seu olhar, como se fossem flechas.

Aestus ainda estava ao lado da árvore, segurando parte da corda rompida, enquanto Orkan estava agachado, materializando de volta suas adagas. A luta iria realmente começar agora e o Cavaleiro já não tinha certeza se isso havia sido uma boa ideia. Ele materializou sua espada rapidamente, segurando-a com as duas mãos em frente ao corpo, com sua lâmina de lado, como se fosse um escudo improvisado.

O suor escorria por sua testa e tronco, causado tanto pelo seu nervosismo, quanto pelo calor que a Criatura agora emanava. Ele olhou de canto de olho para seu amigo, que estava se preparando para correr em direção à Corça. Antes que Aestus pudesse impedi-lo, Orkan partiu em disparada em direção ao oponente.

A Corça se ergueu nas patas traseiras, preparando-se para o ataque. Orkan ficou frente a frente com a Criatura, tentando não ser atingido pelas patas dianteiras, que balançavam freneticamente. Os movimentos da Criatura fazia com que pequenas labaredas fossem lançadas na direção do Ladino, que se afastou um pouco e se esquivou pela lateral, tentando atingir a barriga da Corça. Ela, mesmo ferida, ainda era extremamente ágil, conseguindo evadir qualquer tentativa de ataque. Orkan foi atingido nas costas por uma patada, sentindo uma dor leve, mas aguda, recuando imediatamente.

Enquanto isso, Aestus correu na direção do combate, soltando um grito de guerra, aumentando sua força e a de seu companheiro. Ele chegou desferindo um ataque de cima para baixo, na direção da cabeça da Corça. A Criatura defendeu a investida usando seus chifres, jogando Aestus com ímpeto para o lado, como se estivesse se livrando de um galho que havia se prendido. Orkan se aproveitou deste momento para atacar a Corça por trás, mas a Criatura moveu seu rabo em um arco, criando uma grande labareda. O Ladino se esquivou para trás, dando um salto mortal, por pouco não tendo o rosto queimado. O inimigo era muito ágil, prevendo qualquer ataque, em qualquer parte de seu corpo.

Os dois amigos ficaram parados a uma distância da Criatura, com suas armas em punho, sem saber exatamente como atacar. Eles se entreolharam, tentando não perder a Corça de vista, com medo de que ela pudesse fugir ou partir para cima de um deles. Pelo menos eles estariam a salvo se mantivessem certa distância, Aestus pensou.

Passaram-se poucos segundos, que pareceram durar horas, enquanto os rapazes tentavam criar uma tática para pelo menos se aproximar da Corça. Orkan fez um sinal para Aestus, indicando para avançarem juntos, atacando pontos diferentes. Assim, um deles poderia conectar um golpe, já que a Criatura não poderia se defender dos dois ao mesmo tempo. Aestus segurou sua espada só com a mão direita, colocando o braço esquerdo em frente ao corpo. Orkan virou a lâmina de suas adagas para baixo, preparado para desferir um ataque rápido. O silêncio na clareira era angustiante, quebrado apenas por um leve crepitar vindo dos pelos em chamas da Corça.

Com um sinal de cabeça de Aestus, os dois avançaram simultaneamente, correndo em direção à Criatura. A Corça aparentemente não sabia qual dos oponentes deveria encarar, alternando o olhar entre eles. Quando Aestus havia chegado na metade do caminho, a Criatura jogou a cabeça para trás e, ao voltá-la para frente, arremessou uma bola de fogo na direção do Cavaleiro, soltando um grunhido abafado. Aestus só teve tempo de trazer sua espada à sua frente, usando a lateral da lâmina como um escudo. O impacto foi mais forte que o esperado, arrastando-o para trás e deixando-o atordoado.

Orkan se espantou com essa habilidade inesperada da Corça, mas não parou de avançar, conseguindo acertar uma estocada no meio das costas da Criatura. Ela se contorceu instintivamente, acertando os chifres em Orkan, que caiu para trás. Ele sentiu seus frascos com poções se quebrando dentro de sua pochete.

Agora com sua atenção voltada ao Ladino, a Corça arremessou mais uma bola de fogo em sua direção. Orkan rolou para trás e se levantou rapidamente, evitando ser atingido. Antes que ele pudesse se recompor, a Criatura começou a lançar uma saraivada de bolas de fogo menores. Orkan correu tentando circundar a Corça, saindo do seu campo de visão. No entanto, ele não foi rápido o suficiente, sendo atingido no braço e na lateral do tronco, caindo sobre o gramado. Orkan sentiu sua pele queimar, fazendo-o sentir uma dor como nunca tinha sentido antes. Era lancinante e incapacitante. Ele não tinha forças para se levantar e continuar lutando e, sem as poções que havia levado, não iria mais conseguir ajudar seu amigo.

Aestus havia recém se recuperado do ataque que havia bloqueado quando viu seu amigo correndo da saraivada. O Cavaleiro já estava correndo na direção da Corça quando ouviu Orkan soltar um grito de dor ao ser atingido. Ele parou por um instante para ver o que havia acontecido e imediatamente voltou sua atenção para a Corça. A Criatura estava preparando uma bola de fogo maior para executar Orkan, que estava no chão. Aestus percorreu a curta distância que o separava do oponente em frações de segundo. Ele sentiu que acertar um golpe de espada não seria rápido o suficiente, já que sua arma era pesada, escolhendo por dar um chute desengonçado no pescoço do inimigo. A Corça lançou a bola de fogo mesmo assim, porém atingindo o solo a centímetros de onde Orkan estava caído.

Agora mais próximo da Criatura e ciente dos possíveis ataques, Aestus sentia que a única estratégia seria batalhar de perto. Só que ele não tinha ideia de como fazer isso. Seu cérebro trabalhava rapidamente, porém seu raciocínio era prejudicado pela preocupação com seu amigo. Ele não conseguia olhar para trás, mas sabia que ele estava vivo por conta dos gemidos de dor. A única opção era derrotar a Criatura para, então, poder prestar socorro a Orkan. Não tinha como recuar e tentar novamente em outro momento. Talvez Barthos estivesse certo. Eles não estavam prontos para um desafio dessa magnitude.

A Corça avançou na direção de Aestus, forçando-o a despertar de seus pensamentos. Ele deu um passo para trás, defendendo a investida com sua espada. A Criatura pareceu ter sentido o medo de seu oponente, tomando uma postura mais agressiva. Aestus agora só estava na defensiva, esquivando-se e se defendendo dos ataques, sendo atingido de leve em alguns momentos. Sua pele resistente e sua armadura estavam conseguindo protegê-lo adequadamente, pelo menos por enquanto. Ele tentava achar uma abertura para revidar os ataques, mas a Criatura estava implacável, atacando com seus chifres, patas e labaredas.

Aestus já estava cansado e começando a entrar em desespero, porém sem cogitar fugir e abandonar seu amigo. A Corça, então, subitamente recuou. Sem pensar muito, o Cavaleiro partiu para cima dela, pronto para acertar um golpe em sua lateral esquerda. A Criatura avançou novamente, sendo atingida de leve pela espada, porém acertando Aestus em cheio, que não conseguiu se defender devido ao seu próprio ataque. Ele caiu deitado com as costas no chão, expulsando o ar do seu pulmão por completo. Antes que ele pudesse se levantar, a Corça estava sobre ele, levantada nas patas traseiras, pronta para atacar sua cabeça com as patas dianteiras.

Aestus cobriu seu rosto com o braço esquerdo, fechando os olhos e atacando a Corça com sua espada da maneira que pôde. Seus olhos semicerrados e cobertos registraram um brilho azulado intenso, porém breve, no momento em que seu golpe conectou com a barriga da Corça. A Criatura soltou um grito agudo de dor, caindo para trás. Aestus rolou para trás, ficando agachado. Ele pôde ver, então, que as chamas da Corça haviam se apagado, como se ela tivesse sido mergulhada em um tanque de água. Ele nem tentou entender o que havia acontecido, aproveitando a abertura para atacar o inimigo.

O Cavaleiro segurou a espada com as duas mãos, atacando o pescoço da Corça com um golpe de baixo para cima. A espada atravessou a Criatura com facilidade, degolando-a. Antes que sua cabeça caísse ao solo, a Criatura já havia se desintegrado, produzindo um grande cristal vermelho vivo e vários cristais menores transparentes. Aestus ficou parado por cinco segundos, ofegante, sem acreditar que a vitória era sua. Ele foi trazido de volta à realidade por Orkan, que ainda agonizava ali perto. Aestus correu até seu amigo, já pegando poções de cura e para queimaduras de seu cinto.

Rapidamente, o Cavaleiro despejou o conteúdo dos frascos nos ferimentos de Orkan, que imediatamente se recuperou. Ele se sentou, analisando seu braço e tronco, sem nenhum sinal de queimaduras ou cicatrizes. Sua camiseta havia sido quase toda queimada, expondo parcialmente seu tronco extremamente definido.

— Acho que você que precisa me passar sua dieta e seu treino de abdominal, amigo — Aestus brincou.

Orkan deu um risinho sem graça, ficando em pé e limpando o quanto pôde suas vestes. Ele olhou o lugar onde a Corça estava, marcado pela vegetação mais queimada e pelos cristais deixados para trás. Quando ele registrou que haviam derrotado a Criatura, Orkan levantou os dois braços, comemorando com entusiasmo, cantando uma fanfarra improvisada e fazendo uma dancinha animada. Aestus balançou a cabeça, mas também estava bem contente com o resultado. Eles haviam trabalhado em conjunto e conseguiram derrotar um oponente formidável. Eles faziam uma dupla eficiente: um mais ágil e o outro mais forte. Mas Aestus sentia que eles precisavam de mais companheiros de caçada, com outras Classes.

Inesperadamente, Orkan abraçou o amigo com força, agradecendo por não tê-lo abandonado. A demonstração de afeto durou pouco tempo, já que não era do feitio do Ladino, mas foi apreciada por Aestus. Os dois amigos coletaram os cristais sobre o gramado chamuscado e retornaram na direção da propriedade da Sra. Dessine.

Orkan estava se sentindo frustrado e um pouco envergonhado por não ter participado do final da batalha, mas ainda assim estava bem feliz com o resultado. Aestus se sentia orgulhoso de si mesmo, por ter vencido a Criatura, protegido seu amigo e poder ajudar mais uma pessoa da cidade.

O caminho de volta foi mais demorado que eles anteciparam, chegando na fazenda no início da tarde, famintos. Dessine estava ajoelhada em uma horta com ervas aromáticas próxima à casa, trabalhando compenetrada. Ao perceber a chegada dos rapazes, ela se levantou, limpando as mãos sujas de terra no avental. Seu cabelo estava bem arrumado, com uma grande mecha caindo sobre seu olho esquerdo, saindo sob o lenço. Ela abriu um sorriso e cumprimentou os dois.

— Boa tarde! E aí, conseguiram derrotar a Corça Flamejante? — Eles responderam que sim, começando a contar detalhes da batalha, mas sendo interrompidos por ela. — Ótimo, ótimo. Pelo tempo que levaram eu achei que tivessem desistido ou até morrido. Eu já ia entrar em contato com o Barthos, mas achei melhor esperar. Eu ainda tô um pouco suspeita a respeito do contrato... Posso ver de novo antes de assinar?

Aestus olhou na direção de Orkan, já imaginando o que viria. Ele viu seu amigo ajeitando o cabelo e contraindo o abdômen, olhando fixamente nos olhos da Sra. Dessine. Até mesmo Aestus sentiu seu coração bater mais forte. Aquela habilidade era muito forte mesmo. Orkan então falou com uma voz muito sedutora:

— Com todo o prazer, senhora. Eu nunca iria enganar uma donzela tão bonita. — Ele entregou o contrato, alisando levemente a mão da Sra. Dessine, que ficou ruborizada. — Se puder assinar e indicar que o serviço já foi feito, eu ficaria extremamente grato. — E piscou.

Aestus ficou impressionado com a audácia de Orkan. Ele mesmo nunca conseguiria fazer algo tão ousado. Com rapidez, Dessine assinou o contrato, inclusive acrescentando um comentário abaixo, elogiando o trabalho dos rapazes. Ela entregou o documento, com um sorriso estranho, não muito natural, mas ainda assim muito bonito.

— Eu tenho comida pronta, se quiserem almoçar. Você deve estar faminto, — ela disse direcionada a Orkan, ignorando Aestus completamente.

Aestus já estava se direcionando para a saída, agradecendo pela consideração, quando Orkan respondeu:

— Ah, mas é lógico que a gente aceita! Eu tô morrendo de fome.

A Sra. Dessine puxou Orkan pela mão, levando-o para o interior da casa. Aestus tentou protestar, mas foi rapidamente silenciado pelo Ladino. Ele estava realmente faminto, mas aquilo era forçar demais a sorte. Depois de tentar argumentar mais algumas vezes, Aestus só aceitou o fato de que iriam comer por ali mesmo.

A casa era bem espaçosa, de madeira, com uma escada bem em frente à porta de entrada, levando ao piso superior. A cozinha ficava à esquerda, enquanto à direita ficava uma sala ampla, com um grande sofá e televisão.

A cozinha misturava elementos rústicos, como fogão a lenha e um filtro de barro, com equipamentos modernos, todos movidos a energia de cristais. As casas todas geralmente apresentavam essa decoração conflitante, mesclando simplicidade, tecnologia e magia. A cozinha estava muito limpa, perfumada com um aroma maravilhoso de comida caseira bem temperada.

Eles todos sentaram em volta da mesa de jantar, que ficava ao lado de uma grande janela por onde se via a grande árvore ao lado da casa. Aestus morava em uma casa parecida, mas não tão grande. Ele pôde ver Orkan olhando ao redor, maravilhado. Seu amigo havia tido uma vida mais simples, não estando acostumado a essa realidade. Aestus compreendia a ambição de Orkan, pelo menos parcialmente.

Eles fizeram uma refeição muito gostosa, mas o final foi um pouco apressado. O charme de Orkan já estava se dissipando e a Sra. Dessine estava com um olhar confuso, como se estivesse tentando focar a visão após acordar. Os Caçadores agradeceram pela cordialidade e se despediram rapidamente, saindo da casa e tomando o rumo da Guilda. Orkan ainda olhou para trás e lançou um beijo na direção de Dessine, que nem reagiu. Ela passou a mão no rosto e, quando levantou o olhar, não era mais possível vê-los.

Após se distanciarem, os rapazes caminharam em um ritmo mais calmo, em silêncio. Orkan já estava planejando como poderia gastar o dinheiro que iria ganhar e pensando o quanto ele foi útil para essa caçada. Já o Cavaleiro, por sua vez, estava digerindo tudo o que havia acontecido, envolvendo a quebra das regras, a batalha e a confiança de Orkan.

Um pensamento cruzou a mente de Aestus. Ele ainda não havia entendido o que tinha acontecido no final da luta. Como ele havia enfraquecido a Corça? Ele ficou na dúvida se perguntava ou não para Orkan, olhando para seu amigo. Decidiu deixar isso de lado, já que nem ele havia visto direito o que tinha acontecido.

Eles foram até o Ferreiro novamente, que consertou as roupas dos dois Caçadores, sem fazer nenhuma pergunta, já voltando para seu trabalho após o pagamento. Agora era só voltar para a Guilda e enfrentar Barthos. Ele ficaria furioso, com certeza, e nem o mais poderoso charme de Orkan poderia controlar a situação. O batimento do coração de Aestus foi aumentando o ritmo conforme eles se aproximavam da bonita construção. Quando fizeram uma curva e se depararam com as portas da Guilda, Aestus já estava suando em bicas, extremamente ansioso e hiperventilando.

— Amigo, calma. Você parece que vai ter um troço, que vai botar toda a comida da Sra. Dessine pra fora, — Orkan disse, segurando um ombro de Aestus. — Você tá bem?

— Eu não vou conseguir, Orkan. Eu não sei fazer as coisas assim, erradas. O Barthos vai expulsar a gente.

— Relaxa, eu tomo a culpa toda. Qualquer coisa eu sou expulso e você continua na Guilda. — Aestus olhou para seu amigo como se ele tivesse dito um palavrão profano. — Mas isso não vai acontecer, pode ficar tranquilo.

Aestus fechou seus olhos, controlando a respiração, reduzindo sua ansiedade. Orkan bateu em seus ombros e já foi em direção à Guilda. Não tinha volta agora. Eles entraram, com Orkan à frente, liderando o caminho e servindo como um escudo metafórico. O salão da Guilda estava bem vazio, com poucas mesas ocupadas. Aestus viu o Arqueiro de cabelo oleoso lançando um olhar de desdém para ele, cutucando uma Lanceira e apontando para os dois rapazes. Waru estava no bar, preparando um lote de poções de cor vermelha. Barthos estava ocupado no balcão, aparentemente tendo problemas com a tecnologia. Os dois novatos chegaram ao balcão e Orkan respirou fundo antes de chamar a atenção do homenzarrão.

— Ah, olha quem chegou. Dormiram até tarde hoje? Chegaram dois novos contratos de nível um, mas um já foi designado para um Guardião que veio mais cedo. Vocês vão querer o outro? Eu acho que é bem simples, vocês tiram de letra. — Barthos falou, com um tom de voz amigável.

— Então, a gente fez uma coisa hoje cedo... — Orkan disse, retirando o contrato assinado de seu bolso e colocando-o sobre o balcão. Aestus olhou para os próprios pés, coçando sua sobrancelha.

Barthos tinha uma expressão confusa no rosto. Ele olhou para o contrato, olhou para o quadro de avisos, retornou o olhar para o contrato. Dava pra quase ouvir as peças se encaixando no cérebro dele. Ele colocou as duas mãos no balcão e olhou para os dois rapazes. Orkan encarava Barthos com uma expressão neutra, enquanto Aestus não tirava os olhos de suas botas.

O Cavaleiro barbudo respirou fundo, pronto para esbravejar algo, quando parou e analisou o contrato de novo. Seu dedo grosso passou pela assinatura da Sra. Dessine e pelos comentários que ela escreveu, lendo com atenção. Ele alisou a barba, balançando a cabeça.

— Eu deveria punir vocês, mas não vou negar que estou muito impressionado, — Barthos disse, com sua voz mais grossa que o normal.

Todos presentes na Guilda pararam o que estavam fazendo e cessaram suas conversas, prestando atenção no que ocorria no balcão. Waru levantou a cabeça e arrumou os óculos, enquanto o Arqueiro balançava a cabeça, furioso, já tendo entendido o que havia acontecido.

— Como vocês conseguiram completar uma Caçada de nível 3?! — Barthos gritou, mais animado que irritado. — Eu trabalho na Guilda faz anos e nunca conheci ninguém capaz disso. E sempre tem algum novato que acha que é capaz e depois toma na tarraqueta.

O Arqueiro e a Lanceira se levantaram, visivelmente irritados, indo em direção à saída, deixando o companheiro Cavaleiro para trás. Barthos deu uma risada alta. Tinha alguma história por trás, com certeza. Aestus respirou mais aliviado, vendo que não seria expulso. Orkan ajeitou seu cabelo, não querendo transparecer, mas também mais calmo.

— Eu vou separar o pagamento de vocês, certo? — Barthos disse, ainda balançando a cabeça. Ele estava visivelmente se controlando para não elogiar muito os rapazes, porque eles fizeram algo errado, mas ao mesmo tempo algo incrível e jamais visto. — Vocês já alcançaram o nível dois com essa caçada, no mínimo.

Aestus e Orkan se olharam felizes, os dois com um sorriso de orelha a orelha. Talvez eles realmente tivessem nascido para isso. Barthos ainda repetia "nível um" enquanto calculava a recompensa, dando risada. Orkan estava inquieto, vendo a grande quantia que receberia pela caçada, enquanto que Aestus já estava analisando os contratos de nível dois. O Cavaleiro nem conseguia se concentrar, na verdade, pensando em como havia se livrado de uma punição e ainda havia sido elogiado.

Após poucos minutos, Barthos colocou um saco pesado sobre o balcão. A recompensa era realmente impressionante, mais que o triplo do que ganharam pelos contratos do dia anterior. Cada vez mais fazia sentido a pressa de Orkan em fazer essa caçada. O Ladino agarrou o saco antes mesmo que Barthos o tivesse soltado, abraçando-o como se fosse um neném indefeso. Aestus se aproximou do balcão para agradecer, quando teve seu punho segurado e puxado por Barthos. O jovem se debruçou forçadamente sobre o balcão, sem entender o que estava acontecendo. Barthos então falou com a voz mais baixa, para só Aestus escutar.

— Eu aconselho vocês a não ficarem aqui na cidade por uns dias. Os outros Caçadores estavam querendo muito esse contrato, o pagamento era bem generoso. Eles não vão ficar felizes de saber que dois novatos roubaram essa oportunidade deles.

Aestus piscava rapidamente, processando essa informação. Agora ele corria risco de morte pelos outros Caçadores. Isso ele não havia antecipado. Ele não queria brigar com ninguém, muito menos ter que defender a própria vida por conta de outros Caçadores. Mas Barthos tinha uma sugestão. Ele continuou:

— Chegou um contrato nível dois de um morador de Silvi, a próxima cidade pro leste. Ele diz que um Necrourso está rondando a área próxima da cidade e não tem muitos Caçadores por lá. Vocês dois peguem esse contrato e deixem a poeira baixar. Depois de uns dias vocês voltam.

Barthos soltou o punho de Aestus, que doía um pouco. O rapaz se afastou do balcão, massageando o local dolorido, agradecendo Barthos. Orkan ainda estava namorando o saco com os cristais, sem dar atenção a mais nada. Aestus queria mesmo viajar e conhecer o mundo. Talvez esse fosse o estímulo necessário. Ok, não necessariamente ESSE estímulo, mas já era um motivo. Barthos terminou suas anotações e registros, entregando o contrato dobrado para Aestus, de maneira discreta. Aestus se despediu de Barthos e Waru, saindo da Guilda e empurrando Orkan para acompanhá-lo.

Eles decidiram passar o resto do dia na casa de Aestus. No caminho, o Cavaleiro contou para o amigo o que Barthos havia dito. Orkan ficou furioso, querendo enfrentar qualquer outro Caçador invejoso, mas Aestus o lembrou que eles ainda eram inexperientes e eram só dois. Orkan concordou, contrariado. Porém, ao ouvir a próxima parte do plano, sobre ir até Silvi e caçar um Necrourso, Orkan ficou muito animado. Não era segredo para ninguém que o sonho dele era ir embora de Comanse. Silvi era um bom começo, sendo uma cidade próxima e não tão grande.

Eles chegaram à casa de Aestus, onde ele morava com seu irmão mais velho, situada entre outras casas similares, em um bairro residencial agradável e arborizado.

Aestus era o caçula, tendo uma irmã mais velha já casada, morando em outra casa com o marido, e um irmão do meio, que não tinha planos nem de se casar e nem de se mudar. Aestus era mais próximo da irmã, mesmo morando em casas diferentes. Seu irmão se afastou bastante depois da morte dos pais, afundando-se no trabalho. Com certeza ele achava que Aestus deveria ir atrás de um emprego de verdade, ao invés de ter esse sonho imaturo de ser Caçador. Deixa só ele ver o quanto dinheiro os dois conseguiram com uma Caçada! Ele iria mudar de ideia rapidamente.

A casa era de dois andares, bonita, mas precisando de reparos. O pai de Aestus era Marceneiro, conseguindo consertar a casa em instantes. Isso deixou os dois irmãos mal acostumados. Sua mãe não tinha Classe, porém era uma mulher muito habilidosa e trabalhadora. Quando abriram as vagas de trabalho nas minas de Baruc, a mãe e o pai de Aestus foram trabalhar lá juntos, para passarem mais tempo um com o outro. Um acidente, no entanto, iria encerrar a história deles mais cedo do que deveria.

Como Aestus e Orkan haviam voltado cedo, a casa ainda estava sem ninguém. Eles retiraram os calçados ao entrar, a fim de evitar que acumulassem sujeira. Eles ligaram a televisão para manter um som de fundo, sem prestar atenção, ficando conversando a respeito dos planejamentos para a próxima Caçada, para a viagem. Eles precisavam de mantimentos, mais poções e uma tenda confortável para dormir. Silvi ficava a um dia e meio de caminhada de distância. Como eles não possuíam qualquer veículo, teriam que ir a pé. Pelo que ouviram falar, o caminho até Silvi era tranquilo, sem muitas Criaturas perigosas ou terreno difícil de transpor.

Após algum tempo de conversa, Orkan resolveu sair para comprar o que faltava, levantando-se do chão e indo em direção à porta. Antes mesmo de abri-la, o irmão de Aestus, Korrek, chegou em casa. O Ladino o cumprimentou, já saindo, sem querer muita conversa. Korrek foi até a cozinha, onde Aestus estava preparando alguns lanches para a viagem.

— Preparando o jantar pro seu irmão, Aestus? — Korrek perguntou, examinando o ambiente, já sabendo da resposta.

Korrek era um homem feito, com um corpo normal, mais baixo que seu irmão. Seu cabelo bem cortado e uma barba aparada o deixavam com um ar sério e formal, combinando com sua roupa sóbria. Ele sempre cheirava a colônia amadeirada, pois achava que isso o tornava mais velho e, assim, respeitado. Korrek trabalhava no setor financeiro das minas da cidade, sendo um funcionário respeitado e muito produtivo. Os dois irmãos eram muito diferentes, mas nunca haviam brigado ou até mesmo discutido sobre o futuro profissional de Aestus. No entanto, o Cavaleiro sempre sentiu que seu irmão o julgava por suas escolhas. Aestus explicou o que estava fazendo, contando sobre os planos de viajar até Silvi e realmente viver das caçadas.

Os irmãos ficaram em silêncio, sendo possível apenas ouvir o som da televisão ligada no outro cômodo. Aestus não queria encarar o irmão, com medo de sua reação. Ele se concentrou no que estava fazendo, cortando ingredientes para montar sanduíches. Korrek andou pela cozinha, indo até a sala desligar a televisão.

Um tempo relativamente longo se passou, o que só serviu para aumentar a apreensão de Aestus. De repente, ele sentiu seu irmão se aproximar e abraçá-lo por trás. Aestus congelou, sem entender o que estava acontecendo. Ele se desprendeu do irmão, virando para encará-lo. Korrek estava com uma expressão estranha, com os olhos levemente marejados. O irmão mais velho segurou o caçula pelos braços, apertando os lábios. Em seguida, ele disse:

— Papai e mamãe ficariam orgulhosos. Você sempre foi atrás dos seus sonhos. Fico feliz que conseguiu.

Instantaneamente, Aestus abriu um sorriso, abraçando o irmão bem forte, agradecendo pelas palavras. Elas realmente significavam muito, já que Aestus estava muito inseguro em como sua família iria reagir. Ele soltou o irmão e contou sobre as Caçadas do dia anterior e a aventura que tinha vivido hoje. Korrek se sentou e ouviu com atenção, enquanto Aestus relatava com alegria e orgulho todos os detalhes.

Eles conversaram por um longo tempo, como não faziam há tempos, sobre o trabalho de Korrek, os valores que os dois Caçadores haviam lucrado e como os seriam os próximos dias. Enquanto falavam, os irmãos preparavam juntos os mantimentos para a viagem e também um jantar. No meio da conversa, Korrek esboçou uma expressão mais séria, se apoiando de costas na bancada da cozinha e olhando para o irmão.

— Só me prometa três coisas, Aestus. — Korrek levantou três dedos. — Primeiro: que você não vai se meter em encrenca. Segundo: que você vai voltar vivo para casa, em algum momento. E terceiro: que você vai aproveitar sua vida.

— Eu prometo, pode deixar. — Aestus disse, passando a mão na cabeça do irmão mais velho.

Nesse momento, Orkan chegou da rua, com alguns equipamentos e compras úteis para a viagem. Ele sentiu que o clima estava amigável entre os irmãos e se juntou a eles, mostrando tudo o que tinha comprado e contando o que havia planejado para a próxima etapa da aventura. Os três então terminaram de preparar o jantar e comeram, conversando animados sobre assuntos diversos.

A noite foi agradável e a comida estava muito saborosa. Korrek foi se deitar, despedindo-se dos rapazes e desejando boa sorte na Caçada. Orkan não demorou muito para ir embora, bocejando bastante na saída. Aestus arrumou a mesa e a cozinha, deixando tudo limpo, antes de se ajeitar para dormir. Após um banho breve, mas relaxante, Aestus se deitou e dormiu em questão de segundos.

A manhã seguinte estava ensolarada e mais quente que o dia anterior. Aestus acordou bem cedo, ouvindo os pássaros cantando por perto. Ele se espreguiçou e levantou rapidamente, sem enrolar muito. A sua ansiedade estava controlada, já que foram feitos planejamentos e preparos para a viagem. Após descer as escadas em silêncio, para não acordar o irmão, Aestus preparou algo simples para comer e, pouco tempo depois, saiu de casa. Ele levava uma mochila com comida, água, uma troca de roupa e a tenda onde iriam dormir.

A caminhada até a praça central, ponto de encontro com Orkan, foi rápida, parando para cumprimentar poucas pessoas no caminho. Uma feira local estava sendo montada na praça, para a venda de verduras e produtos animais. Aestus olhou em volta, pensando que sentiria falta daquele ambiente, caso fosse embora de Comanse de vez algum dia.

Orkan chegou pouco tempo depois, cutucando o ombro de Aestus, trazendo-o de volta à realidade. Os dois amigos se abraçaram brevemente e logo partiram. Eles checaram o caminho que fariam em um mapa, escolhendo os melhores pontos para descansar e passar a noite. Em poucos minutos, eles alcançaram o limite leste da cidade, parando momentaneamente e olhando para trás.

Aestus deu um suspiro profundo, enquanto Orkan parou com as mãos na cintura, tendo dificuldades para aceitar o que estava acontecendo. Um vento forte soprou, balançando os cabelos de Orkan. Uma revoada de pássaros partiu de uma árvore próxima, fazendo um coro com seus trinados. Era como se o planeta estivesse os encorajando a começar a viagem. Eles se viraram em direção à estrada e começaram a caminhar. O que nenhum dos dois imaginava era que, por um longo tempo, eles não voltariam a pisar naquele lugar. Afinal, toda grande aventura começa com um pequeno passo.

A caminhada seguiu sem muitos percalços. A dupla encontrou algumas Criaturas durante o dia, mas as batalhas estavam ficando cada vez mais fáceis de serem vencidas. Ambos os rapazes se sentiam mais fortes e mais à vontade para lutar. Conforme eles se distanciavam de Comanse, a paisagem ao redor se alterava.

Os amplos gramados davam lugar a árvores mais próximas, chegando finalmente a uma floresta bem fechada, com árvores altas e frondosas. A temperatura era mais amena e eles podiam ouvir riachos por perto. O caminho até Silvi era marcado por placas e uma estrada simples, porém muito bem cuidada, feita de pedras grandes. Os rapazes conversavam durante o trajeto, mas por muitas vezes Aestus se via cantarolando alguma música que inventou na hora, como se fosse sua trilha sonora particular. Orkan mantinha os olhos na estrada e os ouvidos atentos a qualquer possível ameaça, mas nada muito perigoso cruzou seu caminho.

Quando o fim do dia foi se aproximando, os rapazes começaram a procurar algum lugar adequado para montar sua tenda para passar a noite em segurança e com um pouco mais de conforto. Não demorou muito e encontraram um ponto próximo a um estreito riacho e não muito distante da estrada.

Aestus retirou um equipamento retangular de sua mochila e colocou-o no chão. Ele, então, inseriu alguns cristais energizados em um orifício lateral, se afastando em seguida. O objeto começou a vibrar e emitir um zunido baixo. Após alguns segundos, o objeto se abriu e expandiu para os lados e para cima, tomando forma de uma tenda de cor azul escuro, capaz de abrigar por volta de quatro pessoas. Orkan rapidamente entrou, maravilhado com toda essa tecnologia, rindo como criança. Aestus permaneceu no lado de fora, iniciando o preparo de uma fogueira. A luz do sol já estava quase ausente, sendo necessário alguma fonte de luz e de calor.

Orkan e Aestus lavaram as mãos no riacho próximo e depois se sentaram próximo à fogueira. Eles retiraram alguns alimentos de suas mochilas e começaram a comer, sem trocar palavras. A noite estava caindo rápido, o entorno estava cada vez mais silencioso. Aestus mastigava um sanduíche enquanto olhava o amigo, absorto em pensamentos.

— No que você tá pensando, Orkan? — Perguntou.

Orkan piscou os olhos rapidamente e balançou a cabeça sutilmente, olhando para Aestus. Ele ainda permaneceu alguns segundos pensando, antes de responder.

— Pra onde a gente vai depois que terminar as caçadas em Silvi? Eu não quero voltar pra Comanse por enquanto... — Orkan apoiou os cotovelos no joelho e juntou suas mãos, colocando-as no queixo.

— A gente pode começar a peregrinar, de cidade em cidade, tentando ajudar as pessoas com as Caçadas. — Aestus colocou seu sanduíche no colo e apoiou as duas mãos atrás do corpo, olhando para o céu. — O mundo está precisando de boas pessoas.

Orkan revirou os olhos teatralmente. Ele também queria partir em uma jornada, mas para ganhar dinheiro, ficar famoso e se tornar o Ladino mais forte e ágil que existe. Ajudar as pessoas era algo secundário. No entanto, ele havia se sentido bem ao ver a reação dos contratantes depois de terem completado as Caçadas. Orkan não estava acostumado a ser bem tratado e agradecido.

— E qual o roteiro? Já pensou em algum? — Orkan indagou ao amigo.

— Não sei. Em Silvi a gente pode se informar. O povo de lá é muito inteligente, com um tino pro comércio. Acho que você vai gostar.

Os olhos de Orkan brilharam com o prospecto de uma cidade cheia de comerciantes. A quantidade de cristais que deve circular por ali seria fascinante. Aestus voltou a morder seu sanduíche, imaginando como seria conhecer todos os cantos de Kairos, todas as culturas, todas as raças. Até mesmo os temidos Reptoides e os isolados Magnors. Aestus continuou imaginando toda sua aventura, enquanto Orkan ficou se imaginando como seria se tivesse todo o dinheiro que quisesse.

Os dois rapazes terminaram a refeição, conversando sobre o horário em que levantariam no dia seguinte e confirmando no mapa o restante do caminho. Eles haviam percorrido a maior parte do percurso, podendo chegar bem cedo na cidade vizinha. Sem enrolar muito, os dois se prepararam para a noite e entraram na tenda para dormir.

No dia seguinte, ao primeiro sinal de luz solar, os rapazes acordaram, praticamente juntos. A animação para continuar a viagem energizava os jovens Caçadores. Eles fizeram um desjejum breve e desmontaram a tenda. Ela retornou para a dimensão original, sendo guardada novamente na mochila de Aestus. Os dois confirmaram que não esqueceram nada e já partiram, encontrando novamente a estrada e seguindo o caminho.

Neste segundo dia de viagem, eles encontraram um número maior de Criaturas, um pouco mais ferozes e difíceis de derrotar. A floresta também estava mais fechada, com menos espaço para lutar adequadamente. Mesmo assim, os rapazes seguiram viagem em um ritmo adequado, se ferindo pouco e usando só algumas poções de cura.

No meio da manhã, Aestus sentiu uma lufada de vento carregando um cheiro podre, de algum animal em decomposição. Orkan também sentiu o fedor, logo em seguida, cuspindo no chão. Eles olharam ao redor, procurando a origem, porém sem sucesso. Eles continuaram em frente, mais devagar, olhando ao redor. O cheiro só piorava, deixando Orkan enjoado e os olhos de Aestus lacrimejando um pouco.

De repente, os dois jovens ouviram um rugido alto, mas rouco. Eles congelaram no lugar onde estavam, procurando a origem do som. Orkan cutucou Aestus, apontando para a esquerda. A uns 50m de distância, estava uma carcaça, de coloração verde escura. Aestus primeiramente achou que seria um animal morto, mas viu que a carcaça estava se movimentando. Então ele entendeu do que se tratava: o Necrourso. Ele já tinha ouvido relatos de outros Caçadores, mas não imaginava que seria uma visão tão horrenda e com um fedor tão forte.

A Criatura era muito grande, com mais de dois metros de altura. Seu pelo era cinza, com grandes falhas e feridas abertas, sendo possível ver boa parte de seus ossos e alguns órgãos internos. O Necrourso andava lentamente, mancando, com movimentos espasmódicos em sua cabeça. Sua boca babava muito, escorrendo uma saliva acinzentada, com dentes grandes demais para o resto da cabeça.

Pelo movimento lento e errático da Criatura, Aestus imaginou que seria uma luta fácil, já que provavelmente não haveria muita reação por parte do oponente. Ele até sentiu certa pena da Criatura, que parecia estar sofrendo só de cambalear pela floresta. Eles não haviam confirmado o contrato com o contato em Silvi, porém se aquela Criatura fosse realmente o alvo, eles já estariam no lucro. Se não fosse, seria um bom treinamento para a Caçada.

Orkan e Aestus se olharam, fazendo um sinal afirmativo com a cabeça. Eles não queriam conversar para não atrair a atenção da Criatura. Os dois deixaram suas mochilas na estrada e materializaram suas armas. Confiantes após vencer várias batalhas seguidas e sem muito esforço, os dois Caçadores partiram para cima do Necrourso sem qualquer planejamento, com o intuito de atacá-lo de surpresa e terminar a luta rapidamente. O Necrourso, no entanto, era um oponente formidável, não devendo ser subestimado. Essa seria uma lição importante que os dois Caçadores iriam aprender da maneira mais dura o possível.

Orkan alcançou a Criatura primeiro, conseguindo acertar um golpe na lateral direita do inimigo. O Necrourso, no entanto, nem pareceu sentir dor, se virando muito mais rápido que o esperado, acertando uma patada forte no tronco do Ladino. Orkan foi arremessado longe, batendo a cabeça em um tronco de árvore e caindo ao solo. Aestus pôde ver que seu amigo estava desacordado e sangrando muito. Ele não sabia nem dizer se ele estava vivo ou não. O Cavaleiro se concentrou, tentando afastar a imagem do amigo ferido de sua mente, se concentrando no Necrourso. A Criatura fez contato visual com Aestus, virando-se em sua direção.

Antes que Aestus pudesse tomar qualquer iniciativa, o Necrourso correu rapidamente para Aestus, alcançando-o em segundos e atingindo-o com uma cabeçada. O rapaz caiu no solo, perdendo todo o fôlego e perdendo sua espada, que caiu longe. Aestus começou a se levantar, tentando respirar, mas o Necrourso o alcançou, apoiando as patas dianteiras nos ombros de Aestus. Antes que ele pudesse materializar sua espada, a Criatura fincou os dentes em seu pescoço com muita força. Aestus só conseguiu pensar que sua aventura mal havia começado e esse seria seu fim. A escuridão tomou conta de sua mente, como se uma vela tivesse sido assoprada.

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O título já fala, então vamos para a melhor sinopse do wattpad "leia para saber mais" E claro, não podemos esquecer de mencionar que PLÁGIO É CRIME.