A TARDE COMEÇOU muito mais ativa do que nos seis dias anteriores. Durante o almoço, Gabriel frisou para que todos comessem depressa, pois seria um dia bem diferente e que teriam muito trabalho a fazer. De início, a maioria das crianças não deram tanta atenção, mas quando Gabriel repetiu, mudando o tom de voz, foi como se todas lhe encarassem com outros olhos, mais temerosas e obedientes.
Assim que terminaram de comer, o plano foi explicado por Girafa, que não estava contente com os esboços que fizera e nem com os cálculos. A ideia apresentada foi utilizar as tábuas das torres destruídas e construir uma espécie de escada. Simples, mas funcional, criando apenas uma grande tábua, na qual seriam pregadas as tábuas menores, que serviriam de degraus. A ideia era evitar o desperdício da madeira disponível e dos outros materiais.
O único problema era, como Girafa viria a comentar depois:
— Estamos indo muito devagar.
— Eu sei, mas nós somos crianças, não temos muita opção — Beca comentou, enquanto ajudava-o a tirar algumas tábuas melhor conservadas entre as pilhas de madeira e juntando com a peça única e comprida que Macaco e os outros uniam, usando fita e pregos — Olha, Girafa... essa história...
— Eu sei, é maluquice, mas você conversou com ela.
— É, eu conversei. Ela sabia exatamente o que iríamos almoçar hoje... sobre como eu fiquei quando acordei, da Nati... é assustador. Se ela... se ela estiver certa...
— Então a gente vai tentar sair desse lugar o quanto antes — Nati disse, passando por eles, carregando alguns pedaços menores de madeira — Sai da frente que eu não tô a fim de morrer!
— Fala baixo, Nati — Girafa resmungou, olhando ao redor nervoso — As outras crianças não precisam saber.
— Tá, tá, eu sei. Pânico, medo, blá, blá, blá. Eu só estou tentando não pirar com essa informação. Monstros vindos do horizonte, tentáculos gigantes... argh, odeio polvo — Nati comentou, fazendo careta. Ela olhou ao redor, mantendo um sorriso sarcástico no rosto e se aproximou de Girafa — Mas, cá entre nós... eu tô morrendo de medo, Girafa... eu não quero ver esses monstros... e eu fui a primeira a morrer nesse sonho maluco da Leoa... — as palavras foram sumindo aos poucos de sua boca.
— Nati, presta atenção — Beca disse, pousando a mão sobre seus ombros — Você não vai morrer. Se esses bichos forem de verdade, nós todos vamos sair daqui e correr para o mais longe possível, longe deles. Se não for verdade, a gente só vai ter uma noite assustadora de sono, antes de voltar pra rotina.
...
Gabriel e Leoa pegavam mais alguns materiais na casinha de serviço, ficando na lateral da casa principal. Na "visão" anterior, Leoa não havia entrado naquele lugar, o que lhe deu um certo alívio e a distraiu dos pensamentos terríveis que lhe sondavam. O lugar era bem menor do que a casa onde acordou e tinha apenas dois cômodos, separados apenas por um meia-parede.
O cômodo maior possuía uma série de ferramentas como martelos, serras, pés-de-cabra, pás, pistolas de prego, entre outros inúmeros materiais, como cola de madeira, pregos, parafusos, vários tipos de fitas, entre outros. Era curioso como tudo se encontrava perfeitamente organizado. Livros de marcenaria se encontravam nas gavetas de uma bancada de trabalho.
Já no outro cômodo, não tinha nada que valesse a pena, de acordo com Gabriel. Revistas velhas, calendários, um relógio de parede quebrado e algumas caixas cheias de tralhas inúteis.
— Como eu disse, não tem muito aqui que nos ajude a acelerar o processo. Talvez essa outra pistola de prego, mas só isso. As crianças mais novas não têm força para martelar e nem para manusear essas ferramentas. Se tentarem, vão se ferir feio — Gabriel explicou, pegando mais alguns pregos antes de sair — Hey, vem logo. A gente precisa adiantar, esqueceu? Foi você que veio falando que vai todo mundo morrer hoje — Gabriel chamava, vendo Leoa entrar no segundo cômodo e mexendo nas coisas.
Como Gabriel mesmo dissera, o cômodo não passava de um amontoado de tralhas e "lixo". Com cuidado, Leoa pegou alguns dos jornais e começou a ler algumas das notícias. Muitas falavam sobre uma tragedia que acontecera no estado do Rio Grande do Sul, onde mais de 240 pessoas morreram num incêndio de uma casa noturna, cerca de um ano atrás.
Outro jornal relatava sobre a morte do candidato à presidência da República numa queda de avião e como a história chocara todo o país.
Outras informações se espalhavam de forma irrelevante nos jornais, mas apesar dos dias e meses serem diferentes, o ano era o mesmo: 2014.
— Gabriel... estamos em 2014 — Leoa murmurou.
— Ah... tá... isso ajuda a gente em alguma coisa?
— Não, é que... não sei, tem alguma coisa aqui de importante... e esses calendários? — comentou, pegando os papeis soltos a esmo e olhando.
— São calendários velhos. E nem adiantaria usarmos, a gente nem sabe que dia, semana ou mês estamos. E talvez nem estejamos mesmos em 2014.
— É, mas... Gabriel... — Leoa cochichou, enquanto encarava as páginas dos calendários, curiosa.
Resmungando, o garoto se aproximou e se ajoelhou ao lado dela. Antes que ele disse algo, ela apontou para as páginas e esperou. De início, Gabriel não notou nada demais. Porém, enquanto observava, começou a ver uma coisa: todas as páginas eram do mês de Julho e, diferente do que seria um calendário normal, tinham quatro linhas para cada semana do mês, mas todas começavam na segunda-feira como dia primeiro e terminavam no domingo como último dia. Não só isso: as datas não seguiam do número 01 ao número 31 do último dia: era sempre de 01 à 07.
— Mas que estranho...
— Vocês não tinham percebido isso antes? — Leoa perguntou.
— A gente chegou a olhar essas coisas aqui, mas passou totalmente desapercebido. E olha... tem sete desses calendários impressos errados.
— Sete nas páginas, todas as semanas são de dia um ao dia sete...
— Hoje foi o sétimo dia em que as crianças despertaram — Gabriel continuou, com os olhos arregalados — E... e 2014. Se somar os números...
— Dá sete também — Leoa respondeu, mexendo em mais algumas das caixas.
— Tá, isso tá ficando um pouco estranho. O que significa?
— Eu não sei, mas eu tenho certeza de que vamos descobrir.
— É, claro. Depois a gente resolve isso. Vamos logo, precisamos ajudar os outros a terminarem a escada.
...
O final da tarde se aproximava e, com ele, a comemoração das crianças que, em meio à dedos machucados por martelos, farpas de madeira, cortes e muito suor, haviam terminado de construir a tal escada.
— A gente pode comemorar? — Ovelhinha perguntou para Nati que, sorrindo, assentiu.
— Claro que podemos. Mas depois. Antes, precisamos...
— Precisamos garantir que a escada não vai nos eletrificar quando colocarmos na cerca — Girafa disse, fazendo um sinal para que Macaco e as outras crianças erguessem a escada.
Fizeram duas escadas, de acordo com o projeto de Girafa.
Não eram bonitas e, pela aparência, qualquer um pensaria duas vezes antes de subir nelas. Mas estavam prontas e pareciam funcionar.
Com a escada em pé, soltaram-na, ao sinal de Girafa. Como proteção extra, pegaram um pedaço de plástico e enrolaram na parte que ficaria em contato com a cerca, apenas para garantir que a eletricidade não os atingiria.
— Muito bem gente! — Gabriel disse — Agora... precisamos testar de vez... eu vou subir na escada. Todos fiquem afastados.
Engolindo seco e sentindo as mãos suarem, Gabriel se aproximou da escada e a ficou encarando durante longos segundos. Rangendo os dentes de tensão, colocou a mão num dos degraus e fechou os olhos, com medo.
Mas nada aconteceu.
Suspirando aliviado, começou a subir a escada, que tremia a cada avanço que ele fazia, mas não cedia. Um ponto positivo.
Finalmente, no último degrau, Gabriel se via ligeiramente acima da cerca. Com um sorriso no rosto, esbravejou vitorioso para as crianças, que aplaudiam lá embaixo.
Agora, bastava apenas elas erguerem a segunda escada até ele, que tentaria fazê-la descer pelo outro lado. Ao verem um sinal de positivo, as crianças começaram a erguer a segunda escada, tão rudimentar quanto a primeira, mas provavelmente funcional.
Um grito ensurdecedor fez todos congelarem no mesmo instante.
Não era um grito normal.
Não era humano.