The Last Sunset • JIKOOK

By Ambruela

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[EM ANDAMENTO] Observação de Horngren: "O mundo real é uma exceção" Jungkook sempre odiou rotinas. Mesmo sen... More

PRÓLOGO
PRELÚDIO
[1] Seja Mal-Vindo
[2] Lei de Murphy
[3] Bolhas e Calos
[4] Os 7 Instintos : ESCAPE
[5] Os 7 Instintos : COMBATE
[6] Os 7 Instintos : CURIOSIDADE
[8] Os 7 Instintos : AUTOAFIRMAÇÃO
[9] Os 7 Instintos : PARENTAL
[10] Os 7 Instintos : INTUIÇÃO

[7] Os 7 Instintos : SUBMISSÃO

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By Ambruela

O instinto da submissão e a emoção da mesma

PARK

— Jungkook! Eu já disse que tenho medo de altura!

— É mais fácil do que você imagina, vem!

E como sempre, eu não consigo resistir aos seus chamados. Com as mãos entrelaçadas, ultrapassamos a barreira da janela de seu quarto e colocamos o primeiro pé em cima do telhado, sentindo todos os meus pêlos se arrepiarem com o contato da fina brisa de chuva que caía na madrugada fria.

Com uma coragem que nem eu sei de onde consegui, fiquei de pé nas calhas da casa. Meu corpo se endureceu por inteiro quando Jeon segurou minha cintura e me fez dar o primeiro passo em direção ao lado esquerdo, onde aparentemente havia uma região muito mais tranquila onde poderíamos ficar em segurança e sem o risco do restante da família Jeon nos notar ali. Seria um show de horrores se minha sogra descobrisse que subimos em cima da casa deles, na chuva e em plenas quatro horas da madrugada.

Não foi culpa nossa se o sono demorou para vir e o tédio se fez presença. Quando um casal está entendiado eles só fazem duas coisas: sexo e merda. Como já havíamos feito a primeira opção mais de uma vez, decidimos partir para a outra, que até então estava indo conforme o planejado.

Agradeci à todos os deuses que nunca acreditei quando finalmente chegamos numa parte que claramente era segura. Sem pensar duas vezes, sentei no telhado e mantive firmeza nos pés, enquanto Jungkook parecia se divertir em passear por ali e correr risco de vida. É inacreditável que aquele garoto me fez colocar tênis esportivos e moletom apenas para fazer uma peripécia daquelas. O pior de tudo é que eu aceitei.

Depois de muitos segundos do moreno indo para lá e para cá em cima das calhas, Jeon finalmente sentou ao meu lado e se manteve de pernas cruzadas, controlando a respiração enquanto os chuviscos deixavam pequenas gotas em nossas roupas.

— Olha ali, com luzes amarelas. — Apontou para um ponto no horizonte de nossas vistas, onde uma iluminação se mesclava com o céu noturno de Jinhae. — É o campo de cerejeiras.

— Uau, parecia bem mais perto daqui quando fomos.

— Precisamos voltar lá, inclusive. — Meu namorado apoiou a cabeça em meu ombro, me fazendo inconscientemente acariciar seus fios negros. — Foi tão bom, você lembra?

Foi necessário apenas aquele singelo questionamento para que meu cérebro retornasse há mais de um ano atrás, quando eu estava com um sorriso gigantesco no rosto, cercado por um aroma doce que escapava das árvores rosas do parque.

Numa surpresa, Jungkook me levou até aquele campo, sem que eu soubesse. Ainda que morássemos consideravelmente perto do parque, eu havia apenas visto aquelas árvores por fotos e vídeos, então nunca escondi a vontade gigantesca que tinha de conhecer o local. Assim, num dia de férias escolares, Jeon me colocou vendado dentro de um carro por aplicativo e só fui descobrir onde estávamos quando o cheiro perfumado invadiu meu olfato. Naquele dia nós brincamos, comemos, rimos, nos divertimos e nos declaramos debaixo de um pomar de cerejas, onde grafamos no tronco o nosso apelido como casal, do qual inventamos naquele mesmo dia: Jikook.

Essa foi nossa senha para absolutamente todas as redes sociais, até hoje.

Então me pego sorrindo nesse exato momento.

— E como não lembrar? Foram as melhores férias da minha vida. — Constato o fato. Realmente nenhuma férias conseguiram superar aquela em específico.

— Foi porquê era sua primeira vez lá, não é?

— Não. Quer dizer, isso também. — Pouso minha mão na perna do meu namorado e aponto para o acessório que reluzia na luz da lua, um pouco ofuscada por conta das nuvens de chuva. — Foi por causa disso aqui, amor.

E o sorriso de Jeon vai crescendo, se alargando, aumentando... Junto à ele eu também sorrio, só por vê-lo naquele estado. Sua mão encobre totalmente onde a aliança está posicionada e ali começa um carinho, sem retirar os olhos e o sorriso da joia.

E enquanto ele admira o anel, eu o admiro.

Jeon Jungkook é lindo demais e acho que nunca vou me cansar de dizer isso.

— Espero que a gente nunca acabe.

Solto meus pensamentos em voz alta, atraindo a atenção do moreno que ainda parecia imerso no acessório de prata.

— Acabe no sentido de terminar? — Assinto, sem tirar meus olhos dele. Jeon dá um sorriso de canto e começa a brincar com meus dedos. — Juro, eu não vejo nós dois separados. Eu sequer imagino minha vida sem você, Ji. Ainda vamos casar, nos formar, morar juntos, viajar, ter filhos e, com toda certeza, não vamos 'acabar'.

— Se depender de mim, isso acontece o mais rápido possível.

Seus olhos grandes de jabuticaba se arregalam.

— Jura de dedinho!? — Seu dedo mínimo é estendido para mim, inesperadamente. — Então que tal começarmos com o casamento?

É impossível não rir alto. Imagine só, eu e Jeon nos casando antes mesmo de completarmos vinte anos! Que loucura!

Com meu famoso jeito muito delicado de ser, dou um tabefe no braço magro do meu namorado, quase me desequilibrando e indo telhado abaixo. Por uma gigantesca sorte, Jungkook é rápido em me agarrar pela cintura e manter-me estável em cima da casa. Mesmo quase me transformando em estatística, não deixo com que a risada vá embora, ainda pensando num casório de nós dois.

— Seu bobo! — Agora sou eu que encosto minha cabeça em seu ombro, quase fundindo nossos corpos quando o abraço de lado.

— Não. — Seu dedo toca a ponta do meu nariz. — Seu bobo.

Meu namorado deixa um beijo na minha bochecha, que esquenta meu corpo por inteiro.

— Meu bobo. Só meu.

E foram horas tranquilas até retornarmos para dentro de casa. Só se tornou impossível de se continuar naquele telhado quando o sono nos invadiu com tanta força que seria capaz de despencarmos dali se déssemos bobeira. Com piscadas graúdas e o corpo aquecido apenas por nossos moletons e abraços, voltamos para casa com o corpo e a mente leve, uma calmaria sem explicações. Naquele momento eu não entendia direito porquê isso acontecia, mas foi aos poucos que compreendi o motivo do meu relaxamento instantâneo.

Minha paz estava em Jungkook.

[...]

Vejo Jungkook distante de mim, levando Renegada pelas ruas vazias do bairro que estamos. Ele não nota que estou o olhando mais tempo do que deveria, porque parece mais concentrado em cantarolar alguma música. Yoongi segue na nossa frente, com o mapa em mãos. Eu sou responsável apenas por levar as nossas coisas, sem o risco de serem extraviadas.

Mas vamos voltar ao tópico Jungkook...

Não vou admitir isso na frente dele, mas é inegável que ele mudou muito nos últimos anos. Eu arrisco em dizer que se o visse na rua, não reconheceria. O garotinho magro e com cabelo de tigela é totalmente diferente desse homem tatuado que vejo na minha frente, com os fios bem maiores que o normal. Já não é a primeira vez que me pego pensando se aquele cabelo ainda tem a maciez de anos atrás, da qual eu era viciado em fazer cafuné.

— Jeon. — Minha boca é mais rápida que meus pensamentos. Se não fosse por isso, não o teria chamado. O mais novo me encara com os olhos murchos, parecendo que não dormiu a noite inteira. Eu não duvido disso. — Você conseguiu se formar em ciência da computação?

Desapressando um pouco os passos até manter uma caminhada na mesma velocidade que a minha, Jungkook vem ao meu lado, com a moto.

— Eu desisti no primeiro semestre. — Sou surpreendido, sem conseguir disfarçar a intensidade com qual recebo a notícia. O moreno dá um sorriso de lado, olhando para frente. — Me formei em nutrição e estava cursando pedagogia até o mundo começar a desandar.

Eu jamais pensaria que o garoto que conheci há anos atrás e que era completamente fissurado em coisas tecnológicas e digitais, fosse se tornar nutricionista. Jeon não se cansava nem por um segundo de falar sobre hardware, software, montagem e desmontagem de peças de eletrônicos e qualquer tipo de robótica. Na minha cabeça ele não teria outro destino na vida que não fosse baseado em alguns desses assuntos.

E de repente, nutrição e pedagogia.

Se antes tinha dúvidas, agora tenho certeza: Eu não conheço o homem que está caminhando ao meu lado.

— Uau, eu nunca imaginaria. — É a única coisa que consigo falar sem parecer emocionado demais. No fundo eu estava com a boca boquiaberta e querendo saber cada motivo que o levou até a decisão de se tornar nutricionista e pedagogo. — Não se passou pela minha cabeça que você se interessaria por algo desse tipo.

— É... Nesses últimos anos eu descobri que tenho talento com crianças. Por muito pouco não me tornei professor na base de Incheon. — Mesmo concentrado no caminho que Yoongi guiava na nossa frente, eu vi os olhos do moreno caírem em mim, repousando por um belo tempo. — E você? Conseguiu cursar dança?

Eu queria alargar o maior sorriso do mundo e dizer com orgulho que sou oficialmente um bacharel em dança e bailarino profissional, mas isso não é a realidade. Um dos maiores tormentos que todo esse apocalipse pode ter me trazido, foi a quebra de expectativas no meu futuro. Na minha metodologia já estava previsto que eu iria concluir meu curso, me aprimorar em Paris e concursar alguma vaga na National Swedish Dance Academy, garantindo meu futuro artístico fora da minha terra natal.

Mas daí, bum! Fim do mundo.

Agora eu não sou e nunca vou ser bacharel, formando ou licenciado em coisa alguma. Falar isso é bem mais dolorido do que apenas ler, acredite.

Com um falso sorriso no rosto que não conseguia enganar nem à mim mesmo, respondi:

— Ah, sim! Eu viajei por alguns meses para aprimorar minhas técnicas em Seul, mas estava fazendo meu último período antes de tudo isso acontecer.

— Puxa... eu não sei se fico feliz ou triste por tudo isso.

— Acho que feliz, não é? — Nossos olhos se encontram sem intenção, buscando alguma resposta um no outro. — Nós conquistamos o que queríamos, terminamos o ensino médio, entramos para a faculdade, conseguimos uma renda estável...

— É... conquistamos o que queríamos — Um suspiro anasalado sai de Jeon, que não consegue fingir sua felicidade num mero sorriso torto. — ou pelo menos conquistamos quase tudo.

E então o silêncio se impôs entre nós. Aquele mesmo silêncio sufocante que me leva há alguns anos atrás, quando só havia eu, Jungkook e uma foto em meu quarto. Aquela sensação de ter milhões de coisas para falar e simplesmente não conseguir.

Será que ele ainda não come azeitonas?
Será que ele costurou a meia de estrelinhas que estava furada bem no dedão?
Será que ele tirou a pequena verruga das costas que tanto o incomodava?
Quantas tatuagens fez pelo corpo?
Seus pais realmente se separaram?
O cachorro dele ainda está vivo?
Será que bolo de laranja ainda é sua comida favorita?
Ele parou de comer miojo de carne depois que se formou em nutrição?

São dúvidas específicas que surgem na cabeça e me fazem pensar no longo tempo que passamos longe, vivendo numa distância amarga. Um dia sabíamos até o cheiro do nosso hálito matinal e de repente não fazíamos ideia de onde o outro estava morando. Acho que isso foi coisa demais para duas pessoas que estavam prestes a se tornarem adultas e eram apenas adolescentes apaixonados que não sabiam nem metade do que a vida realmente era.

Felizes para sempre não existem para quem nunca acreditou em contos de fadas.

O sol ainda nem havia chegado no topo das nossas cabeças quando Yoongi avisa que finalmente chegamos no bendito galpão que ele tanto falou. Pelas poucas informações que foram ditas, era ali onde a gangue de assassinos estava  guardando suas coisas antes de ir embora da cidade e o Min era responsável de ficar com a chave do cadeado. Como ele se distanciou do grupo, não havia chance deles entrarem, a não ser que explodissem a porra toda, o que parece que não aconteceu.

E então é assim que eu e Jungkook vemos o loiro abrir o portão de ferro, numa distância mediana. Jeon fez questão de ficarmos em um lugar estratégico caso qualquer coisa acontecesse, então agora nós dois estamos atrás de um arbusto, vendo o outro ter dificuldade em abrir a fechadura.

— Acha que pode ser uma cilada? — O mais novo pergunta num tom mais baixo que o necessário. Não havia absolutamente ninguém em volta de nós. Quem ele estava com medo que escutasse, o asfalto?

— Você realmente não confia nele, tipo, de verdade? — Minha pergunta é genuína, mas Jungkook me olha com uma expressão de "Tá falando sério?"

— Você confia?

A palavra confiança é um tópico complicado para nós, imagino que já deu para perceber. Sei que não faz tanto tempo assim que estamos com Yoongi, mas ele não ter nos matado até agora – mesmo sabendo que não temos nada a oferecer –, é uma boa prova de que não tem más intenções.

— Acho que ficar a madrugada inteira vigiando enquanto dormíamos é um ótimo exemplo de confiança.

Jeon me olha de soslaio, sem esboçar uma única reação.

— Seus achismos são estranhos. — Comenta. — Sempre foram.

E juntos nos levantamos de trás do arbusto para seguir em direção ao galpão que Yoongi entrou sem nem ao menos nos esperar. Com um cuidado que ele julgava ser necessário, Jungkook engatilhou a pistola e foi na frente, só abaixando a arma quando entramos no local que, de fato, não havia perigo.

Era totalmente o oposto da palavra perigo. Yoongi estava agachado no chão, cuidando de alguma planta no canto do depósito. O local em si era enorme, um verdadeiro galpão industrial com direito a hastes metálicas, chão de concreto e uma porção de carros e motos velhas estacionadas, além da mesa de granito que havia no meio do local, com tudo que era tipo de coisa.

Todo tipo mesmo. De cocaína até brinquedo de pelúcia.

Como sou o último a entrar, fecho a porta com o trinco grosso no lado interno, agora podendo vasculhar mais tranquilamente aquele lugar gigantesco e vazio.

— Eu vim aqui umas duas vezes, no máximo. Geralmente era para elaborarmos planos, pegarmos mantimentos ou só enchermos a cara mesmo, como de costume. — Yoongi explica. — Podemos passar dois dias aqui, para não arriscar muito.

Meus olhos se arregalam e até me desconcentro do que estava fazendo quando escuto aquilo.

— Dois dias? Achei que íamos embora hoje.

— Então seria inútil vir até aqui, não acha? — Percebo o tom retórico na pergunta, por isso não respondo. — Gyeongsang é gigante, ainda falta longos quilômetros até chegarmos no endereço dessa tal pessoa misteriosa. Precisamos ir com calma para não sermos pegos de surpresa e acabarmos mortos. Não é, Jungkook?

Meus olhos escorrem para o moreno tatuado assim que seu nome é proferido. Jeon está imerso nas anotações de uma folha em cima da mesa citada anteriormente, mas agora seus orbes grandes nos encaram, com um bico nos lábios entreabertos.

Adorável, devo admitir.

— Só dois dias, Jimin. — É a única coisa que sai da sua boca.

Eu não deveria me intrometer nesses assuntos, nem de longe. Acabei de começar a andar por esse mundo depois de dois anos dentro de casa e não tenho moral alguma para palpitar sobre qual é a melhor maneira de sobreviver, a não ser que seja sobre viver comendo enlatados ou congelados. Sei que possivelmente estou me precipitando para caralho em tentar chegar nesse tal lugar o mais rápido possível, mas é o único objetivo que me fez sair de Jinhae e não vai ser agora que ele vai deixar de ser importante. Não posso esquecer que minha vida ainda gira em torno dessa missão e, quando ela acabar, eu simplesmente não tenho rumo.

Então para quê a pressa, não é mesmo?

Suspiro profundamente e sigo até Yoongi. Jeon Jungkook concordou com algo que aquele homem disse e isso deveria ser motivo de surpresa, mas nesse momento eu só vejo aquela decisão como algo que não tenho controle, apenas devo obedecer para continuar vivo.

Direciono meu dedo para o centro do rosto do Min e no tom mais grave que consigo, repito:

— Só. Dois. Dias.

[...]

Às vezes eu sinto falta do capitalismo.

Por favor, não me leve a mal. Simplesmente me bate uma genuína saudade de precisar trabalhar a semana inteira e me embebedar o fim de semana completo, voltando para as obrigações com muita ressaca e história para contar. Sinto falta de entrar nas livrarias só para reclamar dos preços absurdos que eles taxavam em livros que eu conseguia por três mil wons na internet, com brinde e tudo.

A falta que sinto do capitalismo também é pelo fato de que antes eu podia comprar uma pipoca, sentar numa praça e comer tranquilamente, sabendo que aquilo foi pago com o meu suor de proletariado e desde o momento em que paguei,  posso usufruir da maneira que eu quiser, já que é de total propriedade minha.

Ok, eu sei que esse é um pensamento de direita, elitista, conservador e errôneo. O capitalismo foi – e ainda é – um sistema econômico que fodeu com a vida de muitas pessoas e é conhecido como um dos grandes pivôs para as guerras na sociedade. Eu concordo completamente com tudo isso e essa forma de economia deveria ser exterminada o mais rápido possível.

O capitalismo falhou, falha e falhará.

Mas só consigo pensar no quanto ele estaria me ajudando nesse momento que dois mortos de fome devoram a única carne enlatada que havia na despensa daquele galpão, enquanto eu fiz a gentileza de ficar com as salsichas e evitar que a quarta guerra mundial se instalasse nesse lugar. Yoongi ainda termina sua mistura de proteína com alguns grãos enquanto Jungkook lambe os dedos, com sua refeição já finalizada. No sofá empoeirado e velho, eu observo em silêncio.

— Tem água encanada aqui? Preciso de um banho. — Questiona o mais novo entre nós três.

Yoongi aponta para uma porta de metal no lado esquerdo e segue com sua alimentação, não dando a mínima para o garoto que segue até lá e some no outro cômodo.

Levo um pequeno sobressalto quando estou quase pegando no sono e ouço a voz grave do loiro que estava no mesmo ambiente que eu, com apenas o som de suas mastigações.

— A gente vai precisar se organizar para dormir por aqui. Tem alguns sacos de dormir dentro da despensa, podemos usar os que não estiverem  rasgados. Você pode ir lá buscar? — Assinto sem pensar duas vezes. O tédio já havia se espalhado por cada parte do meu corpo e a mais fútil das ações seriam capazes de me tirar daquele ócio. — Aproveita e pega uma toalha para entregar pro Jungkook, esqueci que não tem lá no banheiro.

Como esclarecido, levanto-me e sigo até a porta que sabia muito bem o que havia por trás. Vasculhando cada parte do cômodo que mais se assemelhava à um closet rústico, busco o que me foi pedido e volto para o saguão com três sacos de dormir e uma toalha de banho azul, que parecia conservada e cheirosa demais para ser usada por um monte de gangstêrs fedorentos e assassinos.

Deixo nossas "camas" num canto ao lado da mesa e sigo até o banheiro, dando duas batidas singelas na porta. Depois de alguns segundos que não obtenho nenhuma resposta, bato novamente e abro vagarosamente a abertura, só então escutando um baixo assobio por detrás da cortina personalizada do sanitário.

Não era nada muito complexo mas nem tão desleixado. Uma simples privada, uma pia média e um box comum, sem parecer um banheiro de botequim mas também sem parecer o toalete de uma suíte master.

— Jeon...? — Chamo, ainda na esperança de ser escutado. Esse garoto perdeu a audição junto com a vergonha na cara? — Jungkook.

No último chamado, ponho minhas mãos na cortina, apenas para sinalizar minha presença ali. A intenção era ser algo simples e discreto, mas eu posso ver a alma de Jungkook fugindo de seu corpo quando seus olhos miram os meus numa velocidade tão rápida que toda sua história de vida se passa pela mente.

Os mesmos olhos que agora estão vermelhos e com a espuma do shampoo que escorria do seu cabelo.

— A-ah, que susto, porra! — Seus pés resvalam no piso molhado e ele quase se esborracha no chão, se não houvesse buscado firmeza na parede do próprio box. JK tenta cobrir todas as partes possíveis de seu corpo e eu ainda permaneço imóvel olhando para seu rosto, sem reação. — Meu Deus, desculpa, é que você me assus-

— Tá' tudo bem. — Interrompo, parecendo um robô. Sem saber muito o que fazer diante daquela situação constrangedora para um cacete, pigarreio e estendo o que justamente me levou até aquele lugar. — E-eu vim só trazer a toalha.

— Ah, tá'. Valeu. — Ele segura o tecido e a primeira coisa que faz é cobrir suas partes íntimas. Eu tinha simplesmente esquecido a existência delas naquele momento, mas ainda assim cicio um 'desculpa' e sigo para a porta o mais rápido possível. Era para ser o fim daquele espetáculo, entretanto, minha caminhada é interrompida assim que ouço mais uma vez a sua voz: — Caralho, que merda...

— O que foi?

Eu merecia um prêmio por ser um fofoqueiro descarado, não é possível! Quem em sã consciência atrapalha o banho de alguém para perguntar sobre algo que não lhe interessa? Eu merecia uma resposta muito rude, sério!

— Não é nada. No susto acabou caindo shampoo no meu olho, tá' ardendo.

Continuo sem reação ao ver Jeon entrar num mini desespero enquanto tenta tirar o sabão dos olhos e falhando miseravelmente. Quanto mais molha o rosto, mais shampoo escorre do seu cabelo e ele esfrega os olhos, quase os arrancando fora.

Essa é uma das piores sensações que podem existir durante o banho, atrás apenas de tomar banho de chinelo e imaginar assombrações enquanto seus olhos estão fechados.

— É... hm, você quer ajuda? — Com dó, ofereço. Abaixa a cabeça, eu posso ensaboar seu cabelo.

Sem dizer nada, ele vira o corpo na minha direção e joga o cabelo pra frente, já que minha altura não favorece na hora de ajudá-lo. Entendendo aquilo como um "por favor, me socorre", pego o shampoo que havia em cima da pia e coloco um punhado na palma da minha mão, até adentrar meus dedos nos fios negros de Jungkook.

A mesma maciez de anos atrás.

Eu creio que não preciso mencionar isso porque já é algo meio óbvio e desnecessário de se comentar, mas fiquei um tanto surpreso pela reação de Jeon ter sido de cobrir suas partes íntimas apenas nos primeiros dez segundos, depois colocando a toalha na haste que segura a cortina e deixando suas regiões baixas totalmente avulsas. Tudo bem que eu já cansei de ver, tocar – de todas as maneiras – e interagir com a sua intimidade, mas não deixa de ser estranho de vê-las depois de anos. É tipo "oh, ele ainda está aí!"

E é completamente bizarro eu estar pensando no pau do meu ex-namorado enquanto massageio o cabelo dele e busco uma pequena terapia em acariciar seu couro cabeludo.

Depois de cerca de dois minutos, quando Jeon parece ter voltado a enxergar, afasto minhas mãos da sua cabeça e aponto para o chuveiro.

— Pronto, pode molhar.

E assim ele faz. Com o corpo ereto, Jungkook dá as costas para o chuveiro e entra de corpo inteiro. Mesmo com noventa por cento do corpo dentro da água, ele ainda faz a benção de deixar as orelhas todas cheias de sabão.

Incomodado, puxo seu braço até que ele saia debaixo da água e seguro seu rosto com minhas duas mãos, passando os polegares nas curvas da orelha e descendo até a cartilagem.

Seu rosto continua macio, assim como sempre foi.

Num gesto impensado, meus dígitos descem até seu queixo e o indicador se repousa na pintinha que ele tem logo abaixo do lábio inferior, onde agora há uma joia de aço bem do lado esquerdo. Nunca fui tão fã de piercings, mas não pude evitar de tocar no metal gelado e molhado, ousando cuidadosamente brincar com a peça e ver tudo o que ela podia fazer, o que não era muita coisa.

É estranho tocá-lo. Quando eu falo com Jeon, ainda parece que falo com meu namorado de anos atrás. Quando o toco, parece ter a mesma sensação que sempre teve, uma pele cuidada, macia, livre de espinhas e lisinha. Sua boca permanece a mesma coisa; vermelha, bem desenhada e os mesmos pequenos risquinhos que sempre existiram.

Eu sei que esse que vejo é um Jeon Jungkook diferente, mas quando o toco, é o mesmo Jeongguk de anos atrás. O mesmo que está fazendo meu coração bater mais rapidamente, minha boca secar e meu corpo inteiro se arrepiar, mesmo sem ele tocar nenhum centímetro da minha pele.

Ele ainda estava ali, o meu Gukkie.

— Jimin? — Desperto do transe apenas quando ouço o meu nome. Eu só noto que estava olhando para a boca de Jeon quando meus olhos se movem rapidamente para seus olhos, que me visualizam de cima à baixo, estatelados. — É... você está se molhando todo.

E então só agora eu sinto o primeiro de muitos pingos de água que haviam escorrido pelo meu braço e umedecido minha camisa.

Deus, se tu existe, me leve agora!

— Puta merda! — Meu corpo se afasta mais rápido que meus pensamentos. Tropeçando nos meus próprios pés, vou andando de costas até bater na porta, abrindo-a novamente. Meu desespero é tanto que nem percebo minhas mãos molharem metade do banheiro. — Ai, droga... e-eu vou voltar para lá. Qualquer coisa é só chamar!

Não espero que ele me responda e apenas fujo dali antes que eu morra de nervosismo naquele banheiro abafado e com cheiro de sabonete. Com todos os pêlos arrepiados e o corpo inteirinho tremendo, fecho a porta do cômodo e caminho o mais rápido possível até o sofá, me jogando no estofado como se houvesse acabado de correr uma maratona.

Ao longe, Yoongi ainda está sentado na mesa, parecendo pulverizar algum tipo de substância – e Deus queira que não seja o que estou pensando – com um cartão de crédito, despreocupadamente.

Se sóbrio ele já é um perigo, imagine drogado.

— Demorou, hein. Reataram o namoro?

É incrível a habilidade desse homem de tocar em assuntos delicados sem saber que está fazendo isso, céus.

Eu poderia explicar tudo o que ocorreu naquele banheiro e todas as sensações que invadiram meu corpo quando pareceu que eu retornei há quatro anos atrás, quando uma chama de paixão ainda existia em mim e Jungkook transmitia todas as sensações boas que poderia me proporcionar. Mas ao invés de esclarecer as coisas, eu faço algo bem mais simples e que resolve toda uma questão que poderia surgir por detrás disso tudo.

Eu apenas o xingo.

— Vai se fuder.

E é assim que o assunto se encerra. Sem mais questionamentos, provocações ou pedidos, nós permanecemos em silêncio até Jeon surgir do banheiro. O moreno tem os longos fios molhados caídos pelos olhos, vestido com uma camisa de banda de rock, bermuda de moletom e a toalha por cima dos ombros, com o cheiro doce de frutas vermelhas que escapava de seus poros.

Troca um rápido olhar comigo e logo se senta à mesa, ao lado de Yoongi. Sem dizer nada, eu os observo enquanto Jungkook abre o mapa e começa a rabiscá-lo com um lápis. Assim como eu, o loiro permanece calado, apenas vendo o que o tatuado faz.

Até que de repente ele solta o grafite em cima do móvel e aponta para um lugar específico no mapa, me obrigando a levantar pra ver do que se tratava. Só assim ele começa a explicar:

— Estamos em Jisa-dong, bem aqui. Jinhae ainda havia energia elétrica e vocês viram. Para a eletricidade continuar operando depois de dois anos de colapso, alguém precisa estar fazendo a usina funcionar. Mesmo que Jinhae seja gigante, a usina elétrica fica ao oeste de Busan, que é exatamente onde estamos agora.

— Tá' dando a ideia de irmos nessa tal usina?

Yoongi questiona e logo exponho meus pensamentos:

— Uma usina elétrica é gigante. É impossível que apenas uma pessoa esteja operando, deve haver um grupo.

— Uma vez Chowan falou algo sobre uns 'pacifistas' ao sudeste do país que tentavam retomar a paz e a normalidade do mundo, era um pensamento positivo, mas a maneira deles agirem é terrível.

Assim como eu, Jungkook também arqueia as sobrancelhas ao ouvir a informação dita por Min.

— Tipo...?

— "Se não pode derrotá-los, junte-se a eles." — Essa frase soa clara e confusa ao mesmo tempo. — Era algo como se adaptar ao mundo atual, só que totalmente sem noção. Eles tentam "reeducar" os infectados, comem carne dos mortos-vivos e convivem com eles como se fizessem parte da família. Eu não sei se é só um mito ou não, mas pode ser uma chance de ser eles.

Eu não sou nenhum expert sobre infortúnios, fim do mundo apocalíptico e vida após a morte, mas com o mínimo de conhecimento dos poucos filmes e séries que vi sobre esse tema, esse método de pensamento nunca deu certo. Essas "pessoas" nem tem mais neurônios interligados no cérebro, não há como voltar à vida, é um pensamento óbvio.

Comer a carne deles ainda por cima... Urgh, me embrulha o estômago só de pensar.

— Se Chowan sabia disso, porque não foi lá? — Pergunto, tentando fazer esses pensamentos sumirem da minha cabeça, antes que o enjôo venha aparecer.

— Esse não é o plano dele. — Yoongi responde, imerso no tanto de linhas e informações naquele mapa. — O princípio da gangue sempre foi saquear e instalar o caos, não matar pessoas. Eles já rodaram quase a Coreia toda, menos Seul e Incheon, pois dizem que há grupos fortes demais, então até agora preferiram não arriscar. Chowan chegou a mencionar que tinham planos para ir até essas bases fortificadas e se instalarem, mas é um grande processo. Alguns grupos se abrigaram em grandes construções famosas e por isso muitos temem ir até lá, por não saberem como realmente são.

— Eles devem estar falando da LUV. — Jungkook comenta.

Yoongi solta uma risada anasalada e nega de prontidão, fazendo um ponto de interrogação surgir na cabeça do meu ex-namorado.

— LUV é um mito. Nunca existiu. — Explica.

Dessa vez é Jungkook quem ri anasaladamente, mas isso dura poucos segundos antes de sua expressão voltar à seriedade.

— Não, ela existiu e ainda existe. — Persiste o moreno.

— Isso é só um pretexto para levar as pessoas para a cidade grande. Os próprios militares do exército que revelaram quando as coisas começaram a piorar. — Yoongi explicou num tom indiferente, como se aquela informação fosse ser facilmente aceita e todos acreditassem nele.

E é aí onde eu posso ver nitidamente quando a face de Jeon se transmuta de neutra para impassível, em segundos.

Sempre pense duas vezes antes de insistir algo para alguém, mas se esse alguém for teimoso, pense três, quatro ou até cinco vezes se precisar.

Yoongi nitidamente não fez isso, sua teimosia prova nitidamente essa constatação.

— Não há pretexto nenhum, isso é mentira.

— Não é. — O loiro persiste.

— É sim. — Jungkook retruca rápido, extremamente sério. — A LUV foi feita com a intenção de abrigar a população e mantê-la segura do caos do mundo exterior, criando uma nova comunidade que acredita na restauração do mundo.

— Aí você acredita nessa história, chega lá e eles te matam.

Uma lufada de ar escapa dos lábios de Jeon. O moreno penteia os fios do cabelo para trás com os próprios dedos e troca o peso das pernas.

— Não matam. — Meu ex insiste, com os olhos semicerrados. Dá para perceber a quilômetros que ele está se segurando para não surtar e eu, como um bom espectador, apenas assisto.

— Matam sim!

O caos vai se instaurando, pouco a pouco... É com expressões debochadas e frases curtas que a energia daquele lugar se torna um mundaréu de coisa ruim. Eu não acredito nessas coisas de energias, mas é a melhor forma que tenho para demonstrar o quanto as coisas estão "pesadas" por aqui.

É quando eu estou refletindo internamente sobre a tensão entre os brothers que acontece neste exato momento, meu corpo solavanca com o estrondo da palma de Jungkook na mesa de metal:

— Yoongi, qual o seu problema, porra!?

Depois de quase tombar da cadeira, fecho a boca – da qual nem eu sabia que tinha aberto – e continuo estatelado na mesma posição de minutos atrás, todo paralisadinho, tal qual uma pedra. Eu devo estar mais branco que uma folha de papel, mas vamos fingir naturalidade e apenas permanecer em silêncio, okay?

— Você virou defensor dessas comunidades de merda?! Por que tem tanta certeza nessa mesma historinha de "restauração do mundo"? Acorda cara, o mundo foi para o caralho! Ninguém mais acredita em um futuro, quanto mais num grupinho hippie que quer dar uma de super-herói.

Jungkook franze o cenho, parecendo querer descobrir se Yoongi estava realmente falando sério.

— Você não sabe nada do que tá' falando! Não é porque você é um fodido sem esperanças, que as outras pessoas também têm que ser! Eu também não acredito numa revolução, mas não fico acabando com as esperanças das pessoas que só tem isso como motivação para continuarem vivas, seu babaca!

E assim como Jungkook, Yoongi alterou o tom de voz, tornando aquela discussão em uma disputa de quem falava mais alto.

— Eu só quero mostrar a realidade! Se você prefere continuar iludindo seja-lá-quem-for e deixar alguém criar falsas expectativas num grupo de vinte pessoas que querem mudar o mundo, fique à vontade. Eu vou sentir muita pena quando a verdade vir à tona e for comprovado que essas pessoas não existem!

— Elas existem! — Não surpreendendo, JK insiste.

— Não existem!

— Eu faço parte da LUV! — Jeon praticamente berra, fazendo o ambiente cair num silêncio sepulcral. Assim como eu, a boca de Yoongi também se entreabre. — O que foi, vai falar que eu não sou real?

Jungkook é um grande sem-noção, sem escrúpulos e inconsequente, mas desde a primeira vez que nos encontramos e ele me disse que veio de uma base em Incheon, eu acreditei nele. Por incrível que pareça, eu não pensei em duvidar nem porque minuto sequer.

Agora com ele falando as mesmas coisas que disse à mim, para Yoongi, eu tenho certeza que não errei em confiar na minha intuição.

— Tá de brincadeira, né? — Dava para se ver a descrença nos olhos do loiro. — Porque alguém que mora numa das maiores fortificações apocalípticas iria parar em Changwon a troco de nada?

Acredite Yoongi, eu também me perguntei isso no primeiro segundo em que Jungkook me contou que veio de Incheon à pé.

Por favor, bastante ênfase no à pé.

Antes mesmo do mundo se tornar o que se tornou, eu não atravessava de um bairro para o outro à pé.

Ele atravessou quase a Coréia do Sul inteira. O mais assustador: ele não parece arrependido. Nas primeiras duas horas de caminhada eu já havia dado o contorno e voltado para o aconchego de meu lar. Ele teve essa opção e não a fez.

— Eu tive meus motivos. — Justifica o mais novo entre nós, agora num tom mais baixo aos berros que dava segundos atrás.

— Eu não acredito.

Inferno de loiro teimoso.

— Ah, puta merda... — A reclamação sai como um resmungo da boca do moreno. — Dá para você acreditar numa única coisa na sua vida?

— A LUV não existe e eu só vou acreditar na sua palavra quando eu vê-la com meus próprios olhos.

— Por que caralhos eu iria mentir sobre isso? Não tenho nada a perder, muito menos a ganhar!

— Ninguém é otário o suficiente para sair do lugar mais seguro do país e ir se arriscar até a costa. Eu conheci dezenas de pessoas nesses últimos dois anos, Jungkook. Nenhuma delas sequer viu alguém da Liga Única da Vórtice, quanto mais ver a base física.

Eu estou enganado ou ele acabou de chamar o Jeon de otário? Enfim...

Eu acreditei até os treze anos que Gotham City existia e as pessoas não falavam sobre lá por ser um lugar terrível. Só fui descobrir que não passava de uma ficção quando sofri bullying na escola depois de responder que a cidade dos sonhos que eu queria morar quando fosse mais velho, era Gotham.

Foi depois de algum tempo que fui aceitar a realidade e até hoje não suporto qualquer coisa que envolva o Batman ou essa maldita cidade.

Então sim, se alguém viesse me falar à essa altura do campeonato que Gotham existe, eu não acreditaria. Porém, se eu morasse lá e precisasse provar com minhas palavras que essa cidade existe, também me revoltaria facilmente.

É compreensível a versão dos dois, admito.

— Você quer ver? — O indicador de Jungkook mira num espaço específico do mapa, bem distante de onde estamos. — Aeroporto Nacional de Incheon. Quando chegar à cinquenta metros da entrada, jogue um objeto vermelho, para mostrar que foi em paz. Não esquece de dizer meu nome por lá, eles vão se lembrar de mim.

Yoongi sorri em tom de deboche, sem se dar ao esforço de disfarçar. Pelo contrário, ele queria mostrar.

— Você é lunático. — Fala, puxando o mapa para fora da mesa e dobrando-o como estava anteriormente.

— E você é cético demais. -— Jeon devolve, aumentando o tom de voz. — Parece aquelas pessoas que não acreditam em horóscopo, destino, religião, sorte, astros e todos essas paradas.

— Pode ter certeza, é mais provável eu acreditar que estou com dor de cabeça por causa do mercúrio retrógrado, do que a LUV exista.

Eu podia ver fogo queimando os olhos do meu ex-namorado. Faltava pouco para ele começar a espumar de tanto ódio.

— Yoongi, sabe o que te falta? — Seu tom abaixa, olhando fundo nos olhos castanhos e felinos do Min. — Esperança.

E na imensidão escura e inexpressiva de Yoongi, ele espreme o mapa por entre os dedos e se levanta, deixando uma última frase antes de seguir para longe daquela mesa:

— A esperança sempre é o início da catástrofe.

[...]

Meus dedos tremelicam ao tocar na maçaneta, mas não demoro meio segundo para girá-la e colocar a cabeça dentro daquele lugar que eu sabia exatamente que Yoongi havia ido se refugiar depois da discussão recente.

— Eu posso entrar?

Pergunto, preparado para receber uma resposta ríspida e sair daquela despensa com o rabo entre as pernas, tão rápido quanto entrei. Mas, depois de um tempo e totalmente diferente do que pensei, Yoongi apenas resmunga um 'pode.'

Respiro aliviado e nem sei o porquê.

Adentro calmamente no cômodo minúsculo e me tranco junto com o Min. Yoongi estava sentado com as pernas cruzadas e a cabeça apoiada em um pacote de arroz de cinco quilos. Sem me encarar, ele fita o teto com infiltração da despensa.

Assim como ele, também sento no chão e ao seu lado, permaneço em silêncio.

"Você nunca sabe quando uma pessoa precisa desabafar, mas quando ela precisar, é melhor ter alguém lá."

Sabe quem me disse isso numa tarde enquanto fazíamos um lanche comendo bolo e tomando chá? Sim, Jungkook. Aquele pirralho de dezenove anos dizia umas coisas que me faziam refletir por semanas e, de certa forma, levar como aprendizado.

— Eu vi todas as pessoas que eu amo, morrerem. — Permaneço em silêncio enquanto Yoongi insiste em enxugar as lágrimas que não deixam de escorrer de seus olhos. — Eu presenciei minha mãe devorando o meu irmão de oito anos de idade e vi meu pai enfiar um garfo de churrasco no meio da cabeça dela para que ela parasse. Eu vi meu pai se matar na minha frente depois de dizer que não aguentava mais nada disso e vi meu cachorro ser destroçado pelo meu vizinho. Como ele quer que eu tenha esperanças? Sei que tem muita gente viva porque se segura nessa expectativa, mas eu não consigo. A minha vida ruiu diante dos meus olhos, de pouco à pouco. Ainda que haja um futuro promíscuo, eu não me vejo sem meu pai, sem minha mãe, sem meu irmão e sem o Holly... Eu não quero ter um futuro sozinho, Jimin. Eles eram tudo o que eu tinha. Nada vale a pena sem eles, eu nem sei porquê caralhos ainda tô' vivo...

Eu incrivelmente o entendo.

— Ei, Yoongi. — Pela primeira vez há um contato físico entre nós dois que não foi feito sem querer. Eu que inicio, tocando sua perna. — Por que você acha que eu pedi para você vir com a gente?

Ele balança os ombros, ainda fixo no teto da despensa.

— Sei lá, nunca pensei nisso.

— Então pensa agora. Por quê?

O silêncio se estende por mais tempo que devia.

— Porque eu conheço o caminho e devo agregar em alguma coisa... talvez?

Precisei sorrir, incrédulo. Aquela frase é da mesma semelhança que o Jimin de alguns poucos anos atrás diria, sem perceber o quão problemático é. Eu nunca achava que era merecedor o suficiente para encarar à mim mesmo e pensar que algo acontecia por puro mérito meu. Sempre havia alguma coisa, sempre tinha alguém... nunca era apenas eu. Nada nunca era sobre mim.

Agora me dói internamente ver Yoongi assim. Ele simplesmente não percebe no quão suficiente, importante e merecedor é. A presença dele é necessária, com ou sem ajuda.

Ele precisa de alguém. Todos nós precisamos de alguém e todos nós merecemos alguém.

Yoongi também merece.

— Você não sabe da importância que tem, isso me incomoda. — Exponho. — Mesmo sendo sem-noção na maioria das vezes, você é alguém admirável. Isso parece meio precoce vindo de alguém que te conheceu há muitas poucas horas, mas a sua intensidade combinou com a minha, por isso te digo isso. Se esse tal futuro revolucionário existir mesmo, você merece estar nele, Yoongi. Você precisa ver que não lutou em vão durante esse tempo inteiro. Eu sei que não acredita em quase nada, mas acredite em si mesmo pelo menos uma única vez.

Meus olhos se encontram com os seus, ambos embargados de lágrimas. Nós somos diferentes tanto fisicamente quanto mentalmente, mas naquele momento eu me vejo encarando um espelho. As perdas, as dores, os medos... Yoongi é apenas eu.

— É difícil pra caralho... mas eu posso tentar, algodão-doce.

E é justamente esse 'eu' que sorri fraco e dá um soquinho em meu braço, secando os olhos antes de levantar e pegar os ingredientes necessários para preparar nossa janta, que ele se ofereceu para fazer.

Min Yoongi nunca foi uma má opção, eu sempre soube disso.

Jeon Jungkook ainda está sentado na mesa, limpando algumas armas brancas que havia naquele galpão. O moreno parecia balbuciar algo para si mesmo, como um verdadeiro velho reclamão. Sem pedir licença, arrasto a cadeira em sua frente e me sento de braços cruzados, fitando meu ex.

— Idiota. — Digo.

Seus olhos abandonam o canivete higienizado e me encaram, sem mover a face em minha direção.

— Quem é idiota?

— Você. — Respondo de imediato.

Sua sobrancelha se arqueia.

— Por quê eu?

É nesse momento que eu iria começar uma série de insultos e esgotar meu vocabulário de xingamentos e ameaças verbais que já fui capaz de proferir na vida, porém, entretanto, todavia, o meu lado racional e não-animalesco me fez recordar que naquele momento eu sou o único lúcido naquela situação e que poderia amenizar a tensão que havia se instalado entre aquele dois energúmenos.

Park Jimin sendo mediador de uma briga, quem diria. Geralmente eu quem sou o pivô delas.

Então respiro fundo e lembrando perfeitamente com quem estou lidando – o teimoso, chato e resmungão do meu ex –, inicio:

— Como fala para alguém ter esperança num mundo cagado desse? Tudo bem ter, até eu tenho, mas é meio fodido pedir isso para uma pessoa que você não sabe metade do que passou. É complicado, ainda mais se essa pessoa for... o Yoongi.

Um riso debochado sai de Jeon, que nega com a cabeça.

Deus, me faça ter forças para não voar no pescoço desse homem nesse exato momento.

— Lição de moral nessa hora da tarde, Jimin? Se veio buscar um pedido de desculpas da minha parte, eu sinto muito. Sou idiota o suficiente para manter minha palavra.

— Não vim dar lição de moral e muito menos exigir desculpas, tá' achando que sou sua mãe ou o quê? — Ele eleva as sobrancelhas, sendo pego de surpresa. Pelo jeito o bonitinho percebeu que estava sendo infantil, finalmente. — Só presta atenção na maneira que fala com as pessoas. Agora pouco você estava parecendo aqueles religiosos que querem provar à todo custo que Deus existe, cruz credo.

— Ele que começou.

— E você continuou. — Retruquei. — Pode acreditar em sapos voadores, bases fortificadas, revolução... tanto faz. Mas nunca, em toda a sua vida, obrigue alguém a aceitar as mesmas coisas que você. Isso é fanatismo e problemático para caralho.

— Eu não obriguei ele a acreditar em mim.

Puta que pariu, como alguém pode ser tão insistente dessa forma? Tenho pensado seriamente se sou estressado demais ou Jungkook que é insuportável mesmo.

E lá vamos nós... Mais uma vez eu inspiro e expiro profundamente, antes de agir como se estivesse explicando algo para um adolescente de quatorze anos de idade.

— Desde o momento em que você tenta mudar os ideais de uma pessoa para que ela se acomode nos seus, é problemático.

— Então eu estou errado por defender minha tese?

— Você não defendeu, você impôs. Quando ele defendeu a dele, você não aceitou. Isso é fanatismo.

— E o que você quer que eu faça? Peça perdão?

— Foda-se seu perdão, Jungkook, ninguém quer ele. Só vim tentar abrir sua mente para o que acabou de acontecer e não manter um clima de velório nesse lugar. — Levanto, já deverás irritado. Se não sair agora daqui, enfio esse canivete na garganta dele. — Tenta entender a dor do outro antes de tentar curá-la.

E assim dou as costas, com a intenção de poder finalmente tomar um banho digno e descansar decentemente, mas meus passos se interrompem quando ouço um pigarreio baixo, seguido do tom grave da voz de Jungkook:

— E você... — Sua frase morre por alguns segundos enquanto estou de costas. Quando novamente me viro para ele, o moreno continua: — Acredita na LUV?

Jeon, em todos os nossos anos de relacionamento, sempre foi esperançoso para qualquer tipo de coisa. Até hoje eu lembro perfeitamente quando o levei para assistir a estreia do novo filme dos seus super-heróis favoritos e faltando menos de dez minutos para o fim do longa, seu personagem preferido morreu. Acreditem, ele assistiu os créditos até o final porque tinha esperanças que ele apareceria nas cenas extras e traria sua alegria de volta. Adivinhem? Ele não apareceu.

Foi naquela noite que eu não consegui dormir direito porque Jungkook ficou a madrugada inteira chorando e vendo edits feitos pelos fãs do personagem.

Então posso dizer com convicção que ele é bastante esperançoso.

Deixando aquela lembrança numa pequena gaveta da minha mente, relembro a pergunta que foi-me  feita e respondo com a maior sinceridade que tinha e que grande parte dela, foi graças à ele:

— Sim. Eu acredito no que você disse. Acredito num futuro em que ainda vou sentar numa praça, tomar um sorvete, ir à praia, sair com os amigos para uma balada no fim de semana e assistir Riverdale no domingo à noite. — O silêncio se estende por pouco tempo, terminando quando deixo um sorriso mínimo escapar do canto de meus lábios, para Jeon. — Espero que você esteja nesse futuro também, Jungkook.

Ele crispa os lábios, concordando com a cabeça.

— Eu vou estar.

Ali, constato: ele vai fazer de tudo para que isso se torne uma promessa.

CONTINUA ●

Oi... (Te dou um buquê de flores)
Como você está? (Entrego uma caixa de bombons)
Gostou do capítulo? (Abro uma caixinha com anel)

Veio aí mais uma atualização fresquinha, acabou de sair do forno!

E os Jikook, hein...
Sei não, viu...
Vem aí, será...?
Sei de nada, sabe...

Nesse desentendimento de Yoongi x Jungkook eu tô do lado do Jimin, porque acho que sou parcial demais e consigo entender a lógica dos dois, me julguem! 😭

Ainda assim, como já é de se imaginar, eles ainda terão um looongo processo até se tornarem íntimos um do outro. Dentre os três, acho que eles são a dupla com as personalidades mais semelhantes e ao mesmo tempo, distantas. E é exatamente assim que se culmina o caos que adoramos ver!

Volto logo, beijocas!

Perdão qualquer erro, confesso que revisei com a atenção de uma mula.

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