Cabra de Bigode - e outras hi...

By rebelarte21

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O que um cangaceiro, uma assombração, um marido infiel ou uma criança curiosa têm em comum? Nada, é claro! Me... More

Cabra de Bigode
A loira do banheiro
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A vez do cobrador
Dúvida de criança
O franco-atirador
Sobre o autor

Estrada a Peripoara

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By rebelarte21

– Coisas estranhas acontecem nessa estrada – o velho disse por cima da mesa do bar, como quem conta histórias de terror à noite sob a parca luz de velas.

Adriano apenas perguntara se alguém conhecia a rodovia estadual para Peripoara. Tinha carga pra levar, não conhecia o caminho nem a cidade. Mas foi só mencionar a rodovia para os risos e as piadas cessarem na mesa de imediato. Quis saber o que havia de estranho por lá. O velho, enigmático, apenas emendou:

– É um lugar para se desperdiçar a vida.

Adriano insistiu, dirigindo-se aos outros na mesa. Poderia ir pela rodovia federal, mas teria de dar uma volta enorme, seria prejuízo na certa. Por isso, quis saber o que essa estadual tinha de mais. Ela é tão perigosa assim? Tem buracos escondidos? Má sinalização? Curvas traiçoeiras? Muito roubo de carga? Mas ninguém quis responder. Viraram-se pros lados, encheram copos, esvaziaram copos, como se não fosse com eles. Foi o velho quem encerrou o assunto, dizendo:

– Esteja avisado. Não vá a Peripoara pela estadual.

Mas Adriano não podia abrir mão de trabalho, quem podia? O frete era bom, e mesmo se não fosse, qualquer dinheiro seria bem-vindo. Tinha de pagar as prestações do caminhão e sua parte na sociedade com o velho. Este, não podendo mais dirigir sua jamanta, um jacaré laranja que fazia mais litros do que quilômetros, rendera-se à vista cansada e às mãos trêmulas, dizendo adeus à boleia. Decidiu aplicar suas economias dando entrada em dois caminhões novos, um para seu filho, outro para Adriano. Estes pagariam ao velho uma gorda fatia dos fretes, além de arcar com as parcelas a perder de vista do financiamento, peso que vinha atrelado aos veículos feito caçamba carregada até a boca com sucatas. Adriano tinha de trabalhar para o velho e para o banco, mas não se importava: era sócio, tinha seu próprio negócio! Mas para cumprir sua parte na sociedade tinha de gastar os pneus, não podia ficar parado. O velho lhe avisara, mas isso não tinha sobre ele efeito prático, pois o acordo era claro: podia transportar o que quisesse e por onde quisesse, desde que não fossem drogas nem mercadoria roubada. Sua única obrigação era pagar a parte pela sociedade.

Assim, decidiu encarar a dita cuja da estrada. "Estrada nova se atravessa durante o dia", pensou precavido. Por isso acordou cedo, juntou a carga, suas tralhas também, sintonizou o rádio na sua estação preferida e partiu. O céu estava bonito, não fazia calor nem frio e o trânsito fluía. Ou seja, suave na nave.

Porém, quando estava a poucos quilômetros da malfadada rodovia, ouviu um estouro. Era o pneu que explodira feito balão em festa infantil, lançando tiras de borracha por toda a pista. Praguejou. Não podia andar com nenhum eixo erguido, o caminhão estava lotado! E assim viu-se obrigado a encostar, desperdiçando um tempo precioso na função de trocar o pneu. Seguiu em frente, mas logo empacou novamente num trecho em obras. Soube que a coisa ia demorar quando surgiram os vendedores, ofertando paçocas, jabuticabas, água mineral e pendrives de música. E depois de finalmente passar pela obra, encontrou diversos trechos de subida e descida. Na subida, o peso o forçava a ir devagar, e nas descidas, o receio de perder o controle com tanto peso também o forçava a ir devagar. Estava se atrasando, e muito.

Por fim, quando chegou na estadual, já era noite... Pra piorar, mal dobrou o trevo de acesso e o rádio chiou estática, dando adeus às músicas e ao locutor, adeus à companhia. Estava sozinho na cabine escura, ele e a estrada. Disseram-no para não ir lá, e ele não só foi como ia nesse horário. Mas qual era o remédio? Fez o sinal da cruz e prosseguiu. Com o passar dos quilômetros até achou boa a estrada. Era tranquila, razoavelmente bem sinalizada e não tinha mais buracos do que as outras estaduais. Mas à medida que o tempo foi passando, achou a estrada tranquila até demais, pois não encontrava nenhum paradouro para descansar. Nem ao menos encontrava uma sinalização indicando a distância até o próximo posto. Foi ficando cansado, mas como tinha medo de ser assaltado caso parasse pra dormir no acostamento, decidiu prosseguir. "Assim até chego antes", disse a si em consolo.

Então avistou, mais pra frente, uma mulher na estrada acenando por carona. Cabocla de cabelos negros longos e lisos, blusinha vermelha, saia de borracha, botas até os joelhos e cara azeda de quem queria que o mundo se explodisse. "É muita bandeira", pensou com seus pedais, "o que uma morena bonita assim faz na beira da estrada no meio da noite? Deve ser arapuca da bandidagem". Ignorou-a e prosseguiu, incomodado com o silêncio. Se ao menos tivesse comprado um daqueles pendrives de música... Felizmente, teve a precaução de trazer café. Abriu a garrafa térmica, estava quente ainda, deu uns goles. Sentindo-se melhor, acelerou.

Mais alguns quilômetros haviam se passado quando a neblina caiu. Adriano teve de prosseguir devagar, redobrando a atenção. Em certo momento, quando mal conseguia enxergar a pista, decidiu ligar o pisca-alerta para nenhum apressadinho desavisado acertá-lo na traseira. Mas isso fez-lhe cair a ficha: desde quando entrara na rodovia, não avistara nenhum outro veículo, nem atrás nem à frente. Também não viu casas, plantações ou cercas pra gado, nenhum sinal de vida. Que estrada estranha. Como disse o velho. Tomou mais um gole de café, ao menos assim não engoliria seco.

Então avistou em meio às grossas nuvens brancas uma silhueta no acostamento. Era uma mulher acenando por carona. Cabocla de cabelos negros longos e lisos, blusinha vermelha, saia de borracha, botas até os joelhos e cara amarrada de quem pouco se lixava pro que achassem do seu visual. Era a mesma de antes! "Devo estar vendo coisas", pensou. Achou aquilo sinistro, mas decidiu parar. Podia passar o resto da vida se perguntando por que parou, mas, ainda assim, o fez. A mulher entrou, carrancuda, e seguiram viagem em silêncio. Quase imperceptível ao seu lado, a cabocla parecia uma assombração de tão quieta e imóvel. A ideia de estar dando carona a uma morena do além deixou-lhe arrepiado. Teve medo de perguntar-lhe onde ia e ouvi-la responder que ia ao cemitério ou coisa do tipo. Antes do medo impregnar-se de vez na boleia, decidiu puxar conversa. Perguntou o que uma belezura assim fazia sozinha no meio desse nada.

No mesmo instante, ela puxou da bolsa uma faca de cozinha e anunciou assalto. Adriano reagiu sacudindo o volante, fazendo-a balançar enquanto partia pra cima. Puxou os cabelos dela e tentou agarrar a mão da faca, mas o caminhão desgovernou de vez. No meio da confusão, sentiu a faca acertar-lhe a barriga. Viu estrelas com a dor, e então tudo escureceu.

Quando abriu os olhos estava sozinho na boleia, o caminhão indo a toda na direção de uma vaca. Freou com força, controlou no volante a carreta revoltando-se atrás, tirou o pé do freio e desviou do bicho fazendo uma curva longa, até o acostamento da pista contrária. A carreta fez que ia virar, mas suas rodas voltaram à pista por um triz. Sua rapidez e habilidade impediram-no de bater ou tombar! Prosseguiu aliviado, enchendo seu escapulário de beijos. Foi tudo um sonho. Não fosse seu anjo da guarda, não teria acordado a tempo de desviar do animal.

Mas a neblina não era sonho, nem o vazio perturbador da estrada. Sentia-se só naquele nada, uma solidão que o arrepiava. Tomou mais um gole de café, e mais uma vez lembrou-se do alerta do velho. O que mais haveria de estranho lá fora, escondido pelo breu? Com o rádio ainda sem sinal, chiando como se a civilização tivesse desaparecido, ou como se ele tivesse desaparecido da civilização, a luz dos faróis e o ronco do motor seguiam como os únicos sinais de normalidade a protegê-lo do escuro perturbador.

Prosseguiu. Depois de vencer uma baixada na marcha lenta e deixar as nuvens de neblina para trás, avistou outro vulto no acostamento. Era uma mulher acenando por carona, cabocla de cabelos negros longos e lisos, blusinha vermelha, saia de borracha, botas até os joelhos e cara zangada de quem não queria nem saber. "Não, né", exclamou. Teria de ser maluco para parar novamente, mas como já fizera besteiras piores na vida, parou mesmo assim. Porém, só deixou a mulher entrar depois de mostrar o que tinha na bolsa. Ela resmungou, mas abriu a bolsa pra ele: não havia faca nem nada. Foram em frente, ela séria e silenciosa, ele preocupado. Como podia tê-la visto três vezes na estrada? Isso era pior que estranho, era assustador. Por fim, juntou coragem e decidiu falar com a cabocla. Mas dessa vez achou bom ser mais comedido, por isso começou perguntando seu nome. Imediatamente, ela puxou uma faca de cozinha da bota e anunciou assalto. Adriano reagiu dando uma ombrada nela, a seguir partindo pra cima. Puxou os cabelos dela e tentou agarrar a mão da faca, mas o caminhão desgovernou. No meio da confusão, sentiu a faca acertar-lhe a barriga. Viu estrelas com a dor, e depois de um estrondo, o breu lá de fora invadiu a boleia.


---


– Bom dia, doutor – disse o policial rodoviário – Como está nosso paciente hoje?

O médico estava ao lado do leito de Adriano, medindo sua pulsação. Observou por baixo da pupila com uma lanterninha.

– Olá, tenente. Ele segue inconsciente. E pelo jeito, vai demorar pra acordar.

– Pena. Tinha umas perguntas a ele.

– Que tipo de pergunta?

– Por exemplo, o que diabos ele andou tomando enquanto dirigia. Testemunhas viram-no circulando pela rodovia ontem à noite. Pelo jeito, não percebeu que contornava a rotatória da estrada velha, e passou pelo mesmo lugar no mínimo umas três vezes. Pode essa? Tudo bem que a neblina estava forte, mas também não era pra tanto.

– Hm. Posso fazer exame toxicológico, mas pelo que me conta é quase certo que ele tomou rebite, e não deve ter sido pouco.

– Ou coisa pior. Estranho, pois não encontramos nada no caminhão.

– Ele deve ter tomado tudo. Misturado com café provavelmente, tem uns que adoram adoçar seu café com essas porcarias... Mas diga-me tenente, não havia mais ninguém envolvido no acidente? Antes de perder a consciência, ele perguntava sem parar sobre uma morena que estaria com ele.

– Não doutor, não havia mais ninguém quando chegamos. O caminhão virou sem bater em nada, e pelo estado da boleia, se tivesse mais alguém lá dentro, não conseguiria sair sem o auxílio dos bombeiros.

– Então está explicado. Ele teve um delírio provocado pelos remédios e pela privação de sono, o que o levou a tombar nalguma curva.

– Sim, foi isso.

O policial virou-se para sair, mas parou para coçar o queixo, tentando lembrar de algo. Então o médico, continuando com seus exames, levantou os lençóis. Vendo o curativo na barriga de Adriano, o policial levou o dedo indicador aos ares, fisgando a ideia no ar.

– Ah sim, doutor. Quase esqueço de lhe perguntar, como acha que ele se feriu na barriga? Nem nós nem os bombeiros achamos qualquer fragmento cortante na boleia.

– Ora... Boa pergunta. Também não sei dizer.

Os dois se entreolharam, e voltaram-se a Adriano. Calado no seu sono profundo, no rosto um sorriso ligeiro, ele parecia pouco disposto a compartilhar segredos.

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Algumas dessas histórias são experiências de algumas pessoas que quiseram compartilhar comigo pra postar aqui, outras são só da minha cabeça mesmo😅