A VIDA NO MORRO COMEÇA CEDO

By DeaMatre

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Prêmio: 🥈Concurso Cerejeiras em Flor Traumas podem virar sonhos? Dalena e Dominic se conhecem na adolescênci... More

MURAL DE INFORMAÇÕES
︻╦╤─
Capítulo dos Troféus
▓ CAPÍTULO UM ▓
▓ CAPÍTULO DOIS ▓
▓ CAPÍTULO TRÊS ▓
▓ CAPÍTULO CINCO ▓
▓ CAPÍTULO SEIS ▓
▓ CAPÍTULO SETE ▓
▓ CAPÍTULO OITO ▓
▓ CAPÍTULO NOVE ▓
▓ CAPÍTULO DEZ ▓
▓ CAPÍTULO ONZE ▓
▓ CAPÍTULO DOZE ▓
▓ CAPÍTULO TREZE ▓
▓ CAPÍTULO QUATORZE ▓
▓ CAPÍTULO QUINZE ▓
▓ CAPÍTULO DEZESSEIS ▓
▓ CAPÍTULO DEZESSETE ▓
▓ CAPÍTULO DEZOITO ▓
▓ CAPÍTULO DEZENOVE ▓
▓ CAPÍTULO VINTE ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E UM ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E DOIS ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E TRÊS ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E QUATRO ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E CINCO ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E SEIS ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E SETE ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E OITO ▓
▓ CAPÍTULO VINTE E NOVE ▓
▓ CAPÍTULO TRINTA ▓
▓ CAPÍTULO TRINTA E UM ▓
▓ CAPÍTULO TRINTA E DOIS ▓
▓ CAPÍTULO TRINTA E TRÊS ▓
▓ CAPÍTULO TRINTA E QUATRO ▓
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS

▓ CAPÍTULO QUATRO ▓

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By DeaMatre




Caminho escondida pela noite por um bom tempo até o começo da madrugada, seguindo a borda de uma grande vala que fica no limite da comunidade com a mata. Nessa área do morro, dificilmente há alguém. Entro em uma rua estreita que me levará até o bar.

Tomando cuidado para não ser vista, paro no escuro a uma distância segura quando chego ao meu destino. O meu coração continua palpitando forte e o suor frio mantendo a minha temperatura baixa, ao mesmo tempo em que ainda tento controlar as mãos trêmulas.

Eu matei alguém...

A morte de Pampa também será minha culpa.

Se Dom morrer, também será minha culpa.

Enquanto esses pensamentos se repetem, será impossível conseguir me acalmar. Então, começo a apagar essas imagens de Coalhada sendo morto por mim focando somente no ódio que eu senti, o ódio que Sandoval me ensinou a ter. Deixo isso ser maior do que o medo de ser morta pelo tráfico, porque, com certeza, é o que vai acontecer. Se tudo for descoberto, eu não terei tempo de ser presa.

O crime que cometi pode me ferrar de mil maneiras diferentes, o que está em andamento também. Pior, podem ferrar Dom. Mas estou confiante no sucesso do meu plano, ele vai dar certo, não posso ser o elo fraco. Pampa é um criminoso sem escrúpulos. Coalhada me mataria e ainda me violentaria. Eu me forço a lembrar o que a Nina passou, isso faz o meu estômago se revirar. Estive muito perto de viver o mesmo terror.

Tenho que ser como os protagonistas de filme de ação, agir movida pela minha justiça sem que a culpa ou o medo me controlem, apesar que para eles, parece bem mais fácil do que realmente é. Acontece que não tenho como mudar o que já foi feito, o meu único destino agora é o lugar à minha frente, onde vou comercializar o meu corpo para a minha subsistência.

Não adianta adiar mais o meu futuro. Infelizmente, só existe esse lugar para eu me criar sozinha. Preciso ser como Dom, aceitar a realidade e saber para quem baixar ou levantar a cabeça, assim como identificar quem eu posso olhar nos olhos. Ele é como o protagonista de um filme de ação, movido pela própria justiça e, acima de tudo, alguém de verdade em quem posso me inspirar.

Mais controlada, encaro da calçada a pequena entrada do grande prédio de esquina com um paredão pintado de preto, tomado por mulheres sorridentes e uma música alta. Olho para a rua estreita atrás de mim e vejo um amontoado de casas, todas espremidas umas em cima das outras. Vasculho com os meus olhos se há uma porta diferente daquela para bater, porém, a resposta é mais óbvia do que eu gostaria.

Tenho quatorze anos e um dia, matei um homem e planejei a morte de outro. Não posso me acovardar. Vou engolir o choro até não precisar de mais ninguém, esse é o meu novo plano de vida. Não quero viver igual a minha mãe, esquentar a cama de um homem em troca de um lugar para morar e um prato de comida, muito menos fechar os olhos para quem realmente o sujeito é. Prefiro ser usada e receber por isso. Nem de longe foi o que esperei do meu futuro, independentemente disso, a melhor opção é encarar como um negócio, um atalho.

Aqui estou eu, Dalena Rosa de Oliveira. Prestes a vender a minha juventude, o meu sonho de ser destaque no atletismo, a minha sanidade mental e muito mais. Só que não será por um amor mentiroso, ou sacrificando o corpo de outra pessoa. Será pela minha sobrevivência.

Pisando firme e com uma cara simpática me aproximo da entrada, enquanto tenho as minhas narinas invadidas pelo cheiro de cigarro e perfume forte. A maquiagem forte no rosto das mulheres é tão marcante quanto as roupas curtas que usam. Conversas animadas e estridentes contrastam com conversas ao pé do ouvido e floreiam o lugar com o ar que o ambiente transmite.

Tentando parecer o mais normal possível, ando pelo pequeno hall até colocar os meus pés por completo no bar. A sensação é que me distancio do resto do mundo. Imediatamente, os presentes interrompem por um momento o que fazem e me estudam, tentando entender a minha presença ali. Devem se perguntar se eu estava perdida de casa ou coisa do tipo, embora eu acredite que, no fundo, sabem que chegou carne nova no açougue de Lourdes.

— Oi, eu queria falar com a Lourdes — informo a uma jovem, com prováveis dezenove anos, que está mais próxima da entrada, olhando o movimento do bar.

— Queria... não quer mais? — desdenha.

Um sorriso desconcertado se contorce no meu rosto. Olho apreensiva para a moça. O meu medo volta à tona, me bloqueando. Comprimo os lábios dentro da boca, uma simples pergunta me coloca novamente em pânico com a carga que tem o ambiente em que estou.

Me apavora o ruído das pessoas, o cheiro de cigarro e a sensação de estar em uma vagina com paredes de concreto. Essa impressão vem do vermelho que aparenta o tom de carne fresca cobrindo o salão do teto ao chão. A luz, os adornos, cortinas de cetim e o piso de cerâmica esmaltada, todos na paleta de variações rubro, reforçando ainda mais essa ideia. Apenas as mesas simples de madeira, rodeadas por variadas formas de cadeira, quebram o exagerado ambiente escarlate saturado.

— É só brincadeira — avisa de um jeito simpático.

Vendo que estou em pânico, ela segura a minha mão, que ainda está suando frio, sem chamar a atenção dos outros. Enquanto não me solta, começo a me acostumar devagar com o lugar. Seu toque aquecido esquenta os meus dedos, me transmitindo calma e conforto. A música alta e a bebida alcoólica são elementos que estão por toda parte no morro, e ali não seria diferente.

Eu posso viver com isso.

Homens salivando, mulheres com sorrisos maliciosos, contatos íntimos entre os casais estão espalhados pelo salão.

Eu posso viver com isso.

Todos estão aqui por livre e espontânea vontade, ou necessidade.

— Está tudo bem? — ela me pergunta. A jovem sempre fala de um jeito espevitado. É impaciente e enérgica em seu jeito de ser.

— Está — respondo ao me sentir recuperada do meu ataque de pânico, e ela solta os meus dedos.

— Fizemos uma aposta para saber se você viria trabalhar aqui ou voltaria para a casa do seu padrasto. — Estranho o comentário da moça. — Ah, todo mundo sabe quem é você. Aqui foi o primeiro lugar onde o tal Sandoval te procurou — esclarece ao notar minha expressão confusa.

— O que ele disse quando me procurou? — Fico preocupada.

Voltar para casa não é uma opção.

Aqui será o meu novo lar.

Eu sou dona de mim.

— Acho que você imagina. — Não entra em detalhes. — Eu me chamo Josy — ela se apresenta, movendo a boca com batom vermelho e os lábios extremamente carnudos de um jeito risonho.

— Eu me chamo Dalena. — Apertamos as mãos. Retribuo o sorriso simpático.

certo. — Estende as palavras na boca, como se guardasse para si uma piada interna em relação ao meu nome. — Vem, vou te levar até Lourdes — chama, e entro ainda mais no bar.

Atravesso o salão até um corredor com várias portas e, por trás delas, me deparo com gemidos encorpados e sussurros eróticos. Eu me sinto constrangida por estar ouvindo a intimidade dos outros, como se estivesse bisbilhotando, o que me leva a me perguntar se quando estiver com um cliente, as pessoas ali vão me ouvir também.

— Olha, você não correu — diz Josy quando finalmente chegamos à sala como a de uma casa comum. — Já aproveita que esse é o nosso curso rápido de como gemer.

A garota tem uma feminilidade ríspida, parecendo que o ato de se enfeitar é muito mais uma obrigação do que algo desejado. Seu corpo tem o formato de ampulheta, e seus cabelos compridos possuem cachos alongados, diferentes dos meus fios sem formato definido. Eles não se entregam a um liso extremo nem a uma ondulação bem desenhada. Já nosso tom de pele é idêntico, pretas menos retintas.

Andamos até a uma enorme cozinha, com uma mesa para prováveis vinte lugares, duas geladeiras, além dos armários apinhados de utensílios domésticos. Estranhamente, Josy bate na porta que provavelmente é do quintal. Logo, surge Lourdes, a dona da casa de prostituição mais famosa do morro de Tia Ondina. Ela me dá um sorriso simpático, que correspondo. Tragando o cigarro entre seus dedos, fazendo uma espécie de vácuo nas bochechas magras, me encara. Em seguida, sopra a fumaça para longe.

— Demorou, mas chegou — Josy avisa, reforçando que eu já era esperada ali.

— Quantos anos? — Lourdes pergunta de forma direta.

— Quase dezoito. — Minha voz sai praticamente sumindo devido a mentira, e então pigarreio.

— Hm — vocaliza com certa incredulidade, sorrindo. — Se você diz. — Estende o som das palavras, desviando o olhar. — Fugiu com um namorado e deu errado? — questiona como se fosse da polícia.

— Não, fiquei escondida na casa de uma amiga — minto ainda mais. — Eu sou virgem — aviso como se me desculpasse por nunca ter feito sexo na vida, sentindo a necessidade de deixar isso claro, mas pronta para negociar um bom valor.

— Virgem...? — Surge um homem bem vestido por trás de Lourdes e me olha dos pés à cabeça.

— Sim — confirmo com mais segurança. Eu já o encaro como um possível cliente. Noto pela sua aparência que pode me pagar um bom preço. Minha barriga gela de nervoso só de me imaginar num quarto com ele.

— Uma garota de quase dezoito, virgem? — Lourdes dá outra tragada no cigarro, com um olhar ainda mais desconfiado.

— Sempre foquei mais no esporte e nos meus estudos — esclareço para ser convincente, o que não é uma total mentira da minha parte.

Embora seja realmente espantoso encontrar alguém no morro que ainda seja virgem aos dezoito anos, não se pode generalizar. O fato é que tem muitas garotas na minha idade com uma vida sexualmente ativa. Inclusive, na escola que estudo, pelo menos duas esperam o primeiro filho.

— Não sei se é o esporte ou a genética, mas que deusa! — O homem parece pensar alto. Lourdes e Josy se entreolham com o comentário, enquanto eu fico atenta ao seu interesse.

— Tirou a sorte grande, novata! — Josy dá um toque de ombro no meu e sai para o salão do bar, parecendo saber que ali não teria mais nada para assistir.

Em meio a luz baixa do quintal, percebo que o estranho tem um rosto confiável e cabelo pouco ondulado, não muito curto. Seus olhos pequenos são aguçados, como se um raio-x pudesse enxergar. Ele não é muito velho nem jovem, o que parece um bom começo, já que não é repulsivo como imaginei os homens que pagam garotas de programa. Embora não chegue aos pés de Dom, é bem simpático e charmoso, como o professor por quem me apaixonei.

— Não sei se ela tem perfil para ficar aqui — Lourdes reflete, ajeitando o seu cabelo loiro e entortando os lábios pintados por um batom marrom escuro. É uma mulher muito bonita, mesmo desgastada pelo tempo e a vida da noite ao que parece.

— Que isso... ela só está procurando um lugar para ficar — argumenta o homem, me deixando menos apreensiva por estar do meu lado.

— Então está no lugar errado, aqui não é só um lugar para ficar, é para trabalhar no salão.

— Estou aqui para trabalhar onde quiser, dona Lourdes, até no salão — garanto a mulher, sem conseguir disfarçar a tensão nos meus olhos.

— Não sei... — diz com incerteza. — E sua mãe?

— Se ela não veio atrás de mim por todos esses dias, não virá mais — digo, insatisfeita por lembrar da minha mãe. Em suas palavras, me falou que não se incomodaria caso eu saísse de casa. Eu até imagino que isso é o que realmente queria, se ver livre de mim.

— Ela ficou com ciúmes de você e Sandoval? — Lourdes me pergunta.

— Né ciúme não. Eu não tenho nada com Sandoval, mas com certeza ela preferiu ele — respondo um pouco mais aborrecida, apesar de por dentro me sentir magoada. Sinceramente, não quero falar sobre essas coisas.

— Bem que eu sabia qual era a razão da sua fuga — comenta ao tirar as próprias conclusões.

Lourdes dá um trago no cigarro, joga a bituca no chão e pisa apagando a brasa com a ponta da sandália de salto alto que usa. Ao soltar um longo suspiro cansado, a mulher me avalia com certa insatisfação. Eu não saberia dizer se é por achar minha presença um incômodo no seu estabelecimento ou pelo que pensa da minha situação.

— Muitos motivos levam uma garota a fugir de casa. Houveram algumas especulações aqui no bar, mas todos descartaram ser por causa de namorado, já que ninguém nunca te viu de namorico por aí. Olha, eu conheço bem o tipo de gente como Sandoval e sua mãe. — Abaixo a cabeça ao ouvir aquilo, como se tudo fosse culpa minha eles serem quem são. Não sei porque me sinto assim. — Você está certa, sabe?! Não é obrigada a abrir as pernas sem querer e muito menos de graça.

— Por isso estou aqui, para fazer o que todas daqui fazem — tento convencê-la a me deixar ficar.

— Eu não sei... e, infelizmente, não posso arcar com uma despesa extra caso você não dê conta — justifica. — Se estiver com fome, posso te dar um prato de comida — oferece.

— Não estou com fome, preciso de trabalho e um lugar para ficar — reforço a minha intenção.

— Deixe ela aqui Lourdes, eu arco com as despesas — determina o homem sorridente ao entrar na cozinha e se aproximar de mim. A iluminação do ambiente, me permite que o veja melhor.

A cor dos seus cabelos é predominantemente escuro em meio a alguns grisalhos. Seu rosto possui um maxilar escondido por uma barba rala, com algumas linhas de expressões bem marcadas. É daquelas pessoas bem cuidadas e com uma presença elegante, diferente de alguém comum. Tem um sorriso social agradável e o olhar é realmente perspicaz. Lourdes o observa duvidosa, parecendo estudar a oferta feita, quando então se vira para mim.

— Ela quem diz se quer ser bancada por você. — Deixa a decisão nas minhas mãos e me sinto confortável por não ser forçada a nada. Não é assim que sempre deve ser?

— Eu teria que fazer com ele? — pergunto tentando não demonstrar o meu desconforto. O homem solta uma risada estrambólica ao me ouvir, ele parece o único a se divertir com a minha presença.

— O que você acha? — Lourdes lança uma pergunta retórica.

— Vamos fazer o seguinte... Não sou um homem apressado, e não tenho a intenção de te deixar traumatizada. Digamos que estou comprometido em sustentar você. Sem miséria, claro. Sua única obrigação comigo será quando se sentir confortável em ter a sua primeira vez. Em termos claros, a sua virgindade é minha e somente eu posso desfrutar esse momento, só então iremos rever os termos do nosso acordo amigável. Também não quero que fique circulando no salão para outros homens, nem que tenha namorado e coisas do tipo, mesmo que proteja a sua castidade. Você continua com seus estudos, com seu esporte, até segunda ordem. O que me diz? — pergunta após sua proposta, e fico desconfiada.

— Olha, garota, é um bom acordo. Não vai ter liberdade para ir com quem quiser, mas vai ter segurança. Além de quê, o deputado tem uma carinha de bom moço, mas soube que é um bom amante, não vai te machucar ou fazer coisas estranhas. Com o bônus de ser um homem charmoso — Lourdes me incentiva.

— Eu aceito — digo ao tomar coragem, realmente acreditando ser um bom negócio, ainda que apreensiva.

— Como você se chama? — ele pergunta.

— Dalena.

— Dalena... — degusta o meu nome em sua boca. — Me chamo Otávio Primmaz, prazer. — Estende a mão. Retribuo o aperto tentando absorver a situação e entender se eu realmente estava no caminho certo.

— Prazer... — digo, enquanto sinto uma algema invisível ser colocada em meu tornozelo.

— Lourdes, está na minha hora, a campanha está a todo vapor e meu tempo é curto. Conto com o seu apoio aqui no morro. Você é a dona das mentes dos homens de Tia Ondina e continuará sendo uma aliada com um valor inestimável para mim, caso eu seja reeleito com sua ajuda. — Finaliza o assunto que provavelmente estavam conversando antes da minha chegada, isolados no quintal. — Confio Dalena em suas mãos, vamos nos acertando conforme as coisas fluírem.

— Não se preocupe, doutor Otávio, conte com o meu apoio e com os cuidados da valiosa Dalena — Lourdes sela a negociação.

Otávio se aproxima de mim e beija o meu rosto rapidamente antes de sair, saindo por outra passagem que não precisa atravessar o salão do bar.

— O que sentiu? — Lourdes me pergunta curiosa sobre o beijo depois que ele fecha a porta da sala ao ir embora.

— Nada — respondo com sinceridade.

— Isso é um bom começo — elogia. — Uma boa garota de programa não sente nada, seja repulsa ou paixão. O único foco é o dinheiro. Não é por isso que está aqui? — Assinto em resposta. — Bom..., tédio será uma coisa que não vai encontrar nessa vida e também pode se abrir para ser algo mais prazeroso. — Ouço tudo atentamente.

Lourdes se encarrega pessoalmente de me instalar em um dos quartos individuais. As acomodações compartilhadas, são destinadas para garotas com menor retorno para o estabelecimento, ela me informa. O prédio possui dois pavimentos: no térreo, está localizado o bar, juntamente com os apartamentos destinados aos atendimentos. Nos bastidores do bar há uma sala, cozinha e quintal. Já no primeiro andar estão os quartos.

Com uma fachada de um bar mais reservado, semelhante a uma boate sem letreiro, não existe nada que identifique o que acontece por trás do grande paredão preto, ainda que todos que moram na comunidade saibam. Apenas as partes que funcionam para atender ao público, possuem um acabamento melhor na propriedade, o resto do lugar é uma construção inacabada.

Após Lourdes me deixar sozinha em um dos quartos com uma janela para o quintal, confiro no espelho os machucados espalhados pelo meu corpo. Agora, com o sangue mais frio, sinto que doem até quando respiro. Parece que fui atropelada ou algo do tipo. Em cada local que toco, relembro os golpes que levei.

Engole o choro, engole o choro. Repito a mim mesma.

Desmancho a minha mochila. Em meus pensamentos, o som da lâmina apunhalando o peito do garoto, enquanto eu era consumida por um ódio vivo, me acompanha. Quando vejo as revistas que Dom me comprou no fundo da bolsa, esse sentimento se dissipa. Fico com saudade de ouvir a voz dele, apesar das poucas horas que nos afastamos. É triste saber que as lembranças do que vivi com Coalhada e Sandoval são mais nítidas do que os bons momentos que passei ao seu lado nos últimos dias.

Longas horas se passam, é tarde da noite, beirando a madrugada, eu continuo preocupada em como as coisas estão se desenrolando para Dom. Fico frustrada por não poder fazer nada, por só me restar esperar. Depois de organizar as minhas coisas na cômoda simples do quarto e num pequeno armário do banheiro, deito sobre a cama de solteiro feita de alvenaria, com meus pensamentos fervilhando. Torcendo para que o meu plano corra bem, adormeço exausta.

︻╦╤─

Acordo cedo após algumas horas de sono. O silêncio absoluto reina na casa, acredito que todas estão dormindo. Minha mãe vem à mente e me incomoda o fato de estar fazendo exatamente o que condeno nela: depender de um homem para ter teto e comida. Embora minha intenção seja viver nesta condição temporariamente, reconheço que Otávio pode ser exatamente a chave para eu conseguir o que quero.

Inquieta por não ter notícias de Dom, passo a limpar o bar, como também a casa. Uma das garotas que acorda, conversa um pouco comigo, mas logo vai para a cozinha ao dizer que é o seu dia de fazer o almoço. Aos poucos vou conhecendo todas, ficando mais à vontade, principalmente com Josy e Lourdes.

No almoço, as meninas já sabiam que o Pampa havia sido morto pelo tráfico e que eles esperavam represálias do grupo de extermínio. Uma delas tem um cliente que é membro da facção, por isso está sabendo de tudo. A morte de Coalhada permanece oculta. Como imaginei, a ArCrim não iria querer estar ligada a um assassinato dentro de uma escola onde escondem ouro.

A casa de Lourdes é como o banheiro do ginásio, eu acabo ouvindo muita coisa, ainda que não esteja interessada, o bom é ter informações sobre o principal. O nome de Dom não foi citado nas conversas, tampouco que morreu alguém do lado do tráfico. Sabendo disso, fico mais tranquila com a segurança dele.

Os dias foram passando, pelas notícias que corriam, meu plano funcionou. Dom não foi descoberto e estava bem, apesar das circunstâncias. Meu coração ficava aliviado por cada dia que ele conseguia manter o nosso plano. Da minha parte, permaneci muda sobre os dias em que estive escondida na escola, mantendo uma rotina que não levantasse suspeitas, controlando os meus sentimentos.

Otávio não apareceu. Tia Ondina por esses dias não oferecia segurança para quem não é morador enquanto durasse o embate. O conflito não foi vantajoso para Lourdes, já que diminuiu o fluxo de clientes. O grupo de extermínio só decidiu cessar o embate quando matou um dos gerentes do tráfico e um familiar do dono de uma boca, mas acabou perdendo dois dos seus integrantes.

Sandoval ou minha mãe sequer deram sinal em minha busca, mesmo que eu soubesse ser do conhecimento deles a minha estadia na casa de Lourdes. Acredito que isso foi um dos benefícios de me tornar uma protegida de Otávio. Fui orientada a manter a discrição sobre isso, mas sei que a informação passou de boca em boca pelo morro, até notei como as pessoas me olhavam diferente. Estou sendo tratada melhor que antes, inclusive na escola, parece que todos querem ser meus amigos. Não me deixo levar e me mantenho reservada.

Durante esses dias, procurei discretamente entre os alunos quem era Nina, encontrei somente a sua amiga, Paty. A garota que tomou tanto os meus pensamentos foi morar no interior com a avó, imagino que por causa de toda a situação com Pampa.

Na escola, não existem comentários sobre o caso. O único sinal do que tinha acontecido com Nina, era os olhos tristes de Paty pelos corredores. Tentei me aproximar em algumas situações, mas ela não demonstrou interesse em conversar. Achei melhor dar espaço e a deixar entre os amigos que já conhecia. Talvez, por ser um ano mais velha, não quisesse se enturmar comigo.

Aos poucos, assumi a responsabilidade pelas compras da casa. Lourdes me confiou o seu dinheiro e a lista de itens do mês a mim. Eu prestava conta dos gastos à risca, por temer qualquer mal entendido. Sempre preferi realizar a tarefa quarenta minutos antes de fechar o supermercado, é o momento que os corredores ficam vazios e os caixas livres. No fundo, eu também não queria correr o risco de encontrar a minha mãe, ela jamais estaria por ali nesse mesmo horário.

Caminhando no corredor de produtos para limpeza, enquanto coloco os itens da lista no carrinho, vejo Dom surgir vindo em minha direção. Imediatamente meu corpo fica eletrificado. Ele está tão diferente, os cabelos estão praticamente raspados, possui um aspecto mais magro e uma feição abatida.

Faz tanto tempo que não o abraço, que minha vontade é de pular sobre ele, principalmente por ver com meus olhos que está vivo. Imediatamente, lembro do meu acordo com Otávio e seguro a minha onda, sei que qualquer deslize, chegará rapidamente aos seus ouvidos. Eu não posso arriscar perder a sua ajuda.

Dom para ao meu lado fingindo que está olhando um produto, enquanto controlo a minha felicidade de o encontrar. Eu mal consigo respirar. Começo a chorar sentindo uma mistura de gratidão ao universo e alívio, com o meu nariz automaticamente congestionando. Ele sorri ao me encarar, parecendo tentar controlar a emoção que também sente.

— Você está tão diferente — digo, enxugando os olhos com o dorso da mão.

— Você está do mesmo jeito de quando te vi pela última vez... — diz de um jeito afetuoso.

— Porque cortou o cabelo? — pergunto um pouco decepcionada, não que isso tivesse o deixado feio.

— Atrapalha na hora de... você sabe... quando a ação acontece — responde sem jeito. — Deu tudo certo, o seu plano funcionou — cochicha satisfeito e retribuo o sorriso dele. — Agora eu sou um dos homens de confiança do Caldeira e ele está cogitando me dar mais poder.

— Uau! — Eu me empolgo ao saber que ele está livre de suspeitas. — Fiquei tão preocupada com você, mas as notícias correram pelo bar de Lourdes e me deixaram mais tranquila por não ouvir o seu nome entre os mortos.

— Eu matei o Pampa e um dos caras do grupo de extermínio — revela, me deixando com uma cara de espanto, enquanto ando mais um pouco para disfarçar, pois uma senhora entrou no corredor.

Ela passa empurrando o carrinho, com um andar semelhante ao de um pinguim. Usa um vestido florido e meias de compressão até os joelhos. Para na prateleira atrás de nós, pega algum produto, depois continua em direção às frutas.

— Você bem? Ainda não tinha matado ninguém — pergunto quando a senhora sai do corredor em que estamos.

— Não entrei no tráfico para plantar flores — diz de um jeito sério. — E você? Fiquei sabendo sobre o deputado. Está tudo bem? Ele te machuca ou algo do tipo? — Seus olhos ficam pesados. — Eu teria vindo antes, mas não podia arriscar, precisei esperar tudo acalmar.

— Ele é somente um tipo de benfeitor, eu estou bem — digo com um olhar triste, tentando justificar que não passa de negócios. Não quero que ele pense que foi substituído ou algo do tipo. — Nada aconteceu, ainda, só não sei até quando o deputado ficará satisfeito em só conversar. — Dou um longo suspiro pensando no quanto gostaria de ser livre para abraçar Dom. Acho que nisso de ser garota de programa, vendi muito mais do que o meu corpo. — O tempo todo sinto saudade de ficar no almoxarifado, mas você sabe...

A vida no morro começa cedo — falamos em uníssono com um certo saudosismo. Não tivemos tempo de ser jovens e o caminho que nos restou, impõe um comportamento que vai além da nossa vontade.

— Sabe que agora eu tenho poder, não é? — A pergunta dele me parece um convite que eu não sei exatamente para o quê. Uma vida de amor, crimes e proteção em troca de virar alvo?

— Viver dentro do tráfico não é muito convidativo para mim — digo, mesmo que meu peito tenha inflado ao imaginar os meus dias sendo ao lado dele. Dormir e acordar em seus braços parece um sonho.

— Eu sei que não... você vai alcançar muito mais longe de mim, tenho muita fé na sua capacidade. Você é muito foda, Dalena — fala, imprimindo orgulho em cada palavra.

— Ah, Dom... — Amoleço com suas palavras e apoio a mão em uma das prateleiras da gôndola.

— Vou sempre te acompanhar de longe, e quando precisar, saiba que pode contar comigo. — Ele me desmonta ainda mais. — Nunca esqueça que estou disponível a qualquer momento, mesmo que não pareça, já que vou ficar distante, porque não quero te comprometer.

— Eu queria... — Respiro fundo e engulo as palavras. Às vezes, a necessidade aprisiona a confissão de um desejo, porque a vida real é maior que nossos sentimentos.

O silêncio é a escolha que fazemos quando a verdade não basta, quando ela não é a solução, mas, somente um peso para quem a ouvir. Nem tudo precisa ser dito, porque de qualquer forma os sentimentos pairam no ar. Então evito dizer que ele está fixado no meu coração e que é a pessoa mais importante da minha vida, pois não vai mudar nada.

Isso deveria ser tema de uma redação, eu iria bem ao ler: disserte acerca de momentos difíceis de se viver, onde a vida adulta sufoca os seus sonhos e os seus sentimentos, o título será de sua escolha. Eu intitularia como: "A felicidade tem duas cores, azul e laranja, mas a vida é uma merda."

— Eu sinto muito por ter te metido numa grande confusão.

— Se não fosse as suas ideias malucas, a gente não teria se conhecido. — Solto um riso curto, como se fosse um susto, com algumas lágrimas felizes. Vejo que ele também está feliz.

A mão de Dom cola junto da minha e entrelaçamos os dedos em meio as embalagens de amaciante. Eu poderia jogar tudo para o alto com o simples toque dele, mas o meu projeto de vida é não trilhar os passos da minha mãe. Só posso amar alguém por completo, quando não precisar dele para absolutamente nada. Solto a sua mão e nos afastamos sem olhar para trás.


|NOTA DA AUTORA|

Me conta, essa despedida partiu seu coração? E esse tal de Otávio? Me conta também o que acharam de Lourdes? Como sempre, quero saber tudo o que se passa na cabecinha de vocês. kkkkk

Sexta tem sim capítulo novo de TE ESPERO NOS MEUS SONHOS e quem tá com saudades de Miranda e Flávio ou ainda não leu, passa por lá.

Até breve, flores do meu jardim. Espero que esteja curtindo a leitura, apesar dos momentos mais tensos ✿◕‿◕✿


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